O Rei e eu

 

  Tudo, absolutamente tudo, estava aparentemente fora de  contexto: Festival, valsinha cheia de harmonias para madrastas  e um cantor de “roquinhos” numa praia musical desconhecida. Mesmo que não sendo pra “mamãe” a letra do Renato Teixeira  fez com que o Roberto Carlos viajasse emocionado.   

 E o sujeito que não precisava, num dia de 68 subiu num palco onde todos o patrulhavam e, vaiando muito, estavam questionando sua liberdade de cantor e compositor. Subiu e cantou uma valsinha de melodia rebuscada cometida por mim e feita pra uma madrasta, o símbolo da “maldade”.

 Meu causo fala desse dia de gravação. Aquele é o meu violãozinho que se ouve ao fundo, um Di Giorgio que andava comigo. 

 

Mas, fala também de um cantor que teve sua vida devassada todo tempo pela mídia e era, e ainda é, julgado por sua aparência, repertório e comportamento extra-palco. 

 Aqui,falo é disso. Falo de uma faceta de um grande cantor – que deve ter muitas outras, tanto quanto eu, você ou outros – mas tem alguns diferenciais que conheci. E falo de uma amizade que eu prezo muito, reafirmando meu prazer em ouvi-lo.

Claro que algumas das musicas do cantor e compositor me tocam mais. Aliás, já escrevi um pouco sobre isso aqui no portal, falo de “por onde acho que entram em nós as canções que nos pegam”.

Todos pensam e julgam muito o RC. Mas creio que perdem muito tempo falando sobre sua vida (que”invade” a vida delas, pessoas, pela mídia), mas gostei de poder contar essa passagem que vivenciei com ele a milhares de anos atrás.  Ele é bem isso que conto, como pessoa e profissional.

 

       Aproveito pra contar outro “causo”, meio Zen:

 

Ele,fala dum comprador de cavalos que volta com a notícia pro imperador, de que encontrara o melhor cavalo do reino: um garanhão negro.

Mas,quando o animal chega, é uma égua baia.

O imperador dá a maior bronca em quem recomendou o tal comprador de cavalos.

Mas o “recomendador”,  responde admirado.

 – Então, ele é muito melhor que eu pensava! Não vê mais o exterior das coisas! Seu talento o deixa ver somente a essência delas. Ele não julga mais, só “sente” as qualidades. Esse homem sabe muito das coisas, das qualidades que escondem… e de cavalos!

   E a égua provou que era mesmo o melhor animal do reino.

 

Outros comentários no blógui “Palavras Avoantes” e aqui no Portal, falam do Caetano Veloso, que já foi bem mais amigo meu, e sua admiração pelo Rei.  E “amizades fora”, reconheço-o como dos maiores compradores de cavalos de quem ouvi falar.

 

Eu, que comprei cavalos e os criei muitos anos, ainda estou aprendendo e escolher e “sentir” os melhores.

 

 *****

De repente o telefone tocou muito de manhã, muito cedo pro horário em que eu havia dormido. Eram onze horas.

– Bicho, ta acordado?

Naquela época, bastava ser meio marginal pra usar o termo “bicho”, todos nós nos chamávamos assim. Podia ser qualquer músico amigo, mas “aquela voz” me despertou.

Não é qualquer dia nem pra qualquer um poder ser acordado pelo Rei em pessoa.

– Tudo bem aí?

O telefone preto tava pesando na mão e deitei em cima dele.

-Tudo, irmão!

– Se acordei você, desculpa. Mas é que tinha que falar com você hoje ainda pra ver se pode vir ao Rio.

No meu estado, de quem estava na Transilvânia com um sono pesado, sair pro Rio só se fosse no dia seguinte. Havia passado a noite inteira gravando uma trilha para um comercial da Kolynos.

– Ué, porque? Algum pepino?

– Olha, faz dois dias que estamos tentando gravar o play-back da “Madrasta” pro disco. O Evandro e eu achamos melhor você vir pra fazer o violão.

(Pausa, necessária. Nem sempre as idéias vêm em ordenadas…)

No Festival da Record, com o arranjo do Nelsinho Ayres e comigo ao violão, havia dado tudo certo. A canção, uma valsa, lerdinha, delicada,  e com a letra linda do Renato Teixeira, ficara com a cara que prometera ao Roberto,  sem muitas firulas Festivalescas. 

 

Na primeira noite, eu tremia como vara verde, ainda mais, quando ele me perguntou no camarim se era “por aqui” ou “por ali” no fim da letra.

Eu respondi e ele anotou na mão esquerda em letra miudinha. Não deu tempo pra ficar mais nervoso ainda, nos chamaram pro palco.

Entramos sob vaias estrondosas – o Roberto num Festival de MPB causava furor na platéia. Mas, aos poucos, uns 12 compassos, mais por curiosidade que qualquer respeito a ele ou a música, elas foram serenando e ficando mais tímidas. O arranjo, também super delicado com cordas e flautas,  e ele com a voz pequena, puderam ser ouvidos. Ao final, todos aplaudiram muito e saímos do palco super felizes. O cantor, satisfeito.

Durante a execução não o vi procurar a letra escondida e, quando fui reclamar do meu nervosismo com o detalhe da letra na sua mão,  ele explicou que sempre fazia isso só pra sentir-se mais tranqüilo quando ia cantar uma música por primeira vez .

(Pausa pra uma reflexão curtinha…)

Por ser quem é, uma figura rara e especial na história da música brasileira, todos têm lá sua opinião a respeito dele. Fala-se muito que ele é isso ou aquilo, um cara cheio de manias, ingênuo ou sei lá o quê mais, mas por sorte,  apesar de muito “falado”,  ele sempre foi mais “ouvido”.

Mesmo depois de tantos anos, já são quarenta e quatro anos desde esse dia em que ele me acordou, minha audição me afirma peremptoriamente que, quanto mais velho melhor o Roberto canta. E é isso que me deixa feliz, ouvi-lo cantando bem.

Ainda me emociono com ele.

Pela história da letra anotada na mão, eu já deveria saber o quanto ele levava a sério sua profissão.  Mas, como sempre, eu não prestei atenção..

(Outra pausa, mas, também necessária pra voltar ao começo do causo…)

O Rei continuou.

– Já tentamos com outros violonistas, mas nunca fica legal como ficou ao vivo. É melhor você vir pra gravar.

– Posso ir amanhã?

– Acho que não, pensei em colocar a voz de tarde. Faltam poucas músicas e deixei a sua pro fim. Ô  preguiçoso!! – e deu aquela risadinha.

Peguei a passagem, deixei o carrinho Renault rabo-quente amarelo “banana” que tinha no estacionamento, e lá fui eu.

Como não gosto de voar, peguei um jornal e disfarcei meu medo lendo-o de cabeça pra baixo por 50 minutos. Não consegui dormir durante o vôo.

(Pausa no meio da pausa…)

Há poucos meses, me convidaram pra um sarau aqui onde moro e de onde vou mudar-me.

Fui meio quê a contragosto – depois de uma operação de carótida, onde o Professor-Cirurgião mais-mais de São Paulo errou a pontaria e me lesionou uma corda vocal,  nem o violão pego mais (um dia conto esta história).

Mas, amadoristicamente, eu peço desculpas e “falo” minhas músicas. Fiquei mudo dois anos, e acabei reaprendendo a falar. Agora, quando é necessário, me desforro meio cantando e meio falando.

Mas, neste sarau, eu nem tive que cantar. Estava lá no fundão, quieto, quando a dona da casa me chamou. Fez uma apresentação meio estranha, tipo, longa demais. Contou que havia lido um livro sobre a vida do Roberto Carlos, e que  “aqui, neste momento está uma pessoa famosa que “fez” umas músicas pro Rei…”

 

Minha vaidade foi pro calcanhar. Eu, naquela noite, era ninguém. Era só “compositor” do Rei.

Mas foi bom, tive que contar quem ele era, desmistificar sua figura um pouco e, foi por isso que lembrei desse causo que estou contando agora.

(Voltando a pausa do causo original…)

Quando, de violão em punho – um Di Giorgio dos antigões, macio, de braço estreito e um grave especial –  desci no velho Galeão, um sujeito desconhecido me abordou.

– Seu Beto?

Estranhei o “Seu”, mas concordei.

– O Seu Evandro Ribeiro e o Seu Roberto Carlos me mandaram buscá-lo, eu trabalho na CBS.

Afundei no ar-condicionado do banco do carro e dormi “de babar” até Copacabana.

(Outra pausa…)

O Evandro Ribeiro, além de produzir os discos do Roberto, sabia tudo. O Concerto Numero 2 do Rachimaninov nos aproximou.

Várias vezes, nos intervalos dos trabalhos, falamos do Stravinski, do Villa-Lobos, do Mozart. Falei do George Gershwin e ele me veio com o Johnny Mandel em “Adeus as Ilusões” com a produção do Quincy Jones.

Cada detalhe de tudo, ele conhecia.

Quando auxiliei na produção de um disco do Rei, sugeri “Inolvidable”, um bolero maravilhoso. O Evandro conhecia. Ficamos horas discutindo a harmonia correta,  a que eu havia aprendido no México era diferente da original, e o Roberto, gravou como ele achava certo. 

 

Bem educadíssimo, refinado e atilado, com sua cara de ratinho atento, nunca me pareceu que era o Presidente de Gravadora. Chegamos a sair juntos pra papear e ele me ensinou muito.

(Voltando da última pausa…)

Quando entrei no hotel, meio sonambúlico, por primeira vez na vida percebi o quê a falta de sono poderia fazer com um vivente.

O atendente me deu a ficha e, na hora de escrever meu nome, fiquei em dúvida.Deu um branco e eu, meio de brincadeira, assinei Napoleão Bonaparte.

Foi quando o Rei apareceu no hall querendo saber se eu havia feito boa viagem.

– Bicho, desculpe! Mas teve que ser assim. Percebi que estava cansado.

Ele exigiu que eu ficasse embaixo da suíte presidencial onde estava hospedado, trocou meu apartamento. Discretamente, arrumei a  minha ficha.

– Você não vai sair mais, né? Acho melhor dormir.

Subi,  e quando coloquei o estojo do violão no chão, o telefone tocou.

Era ele.

– Você jantou, Beto? – estava preocupado.

– Olha, mandei garçom aí. Lembra do strogonoff do Cave? Posso dar uma opinião? O daqui é uma maravilha!

Agradeci e caí morto na cama. Até que a campainha, de tanto tocar, me acordou. Era o strogonoff.

– O Seu Roberto mandou pro senhor.

Comi quase dormindo e lembrei do Cave, uma boate muito conhecida em São Paulo. Recordei dele e do Erasmo, do Jorge Ben, do Marcio Branco, do Vitor Manga e do Tim Maia. O dia amanhecendo na calçada da Consolação e nós, tocando violão

Ia dormir quando tocou o telefone.

– Ô Bicho, tava bom?

Era ele outra vez acompanhando minha convalescença, ou certificando-se que eu não sairia mais.

(O Rio era uma tentação pra moleques bem alimentados)

Às dez, começamos a gravar. Grande orquestra de cordas. Quanto ficou “bom”,  o Evandro pediu pra gente fazer “outra”, mas em outro andamento. A pedido do cantor, fizemos o play-back em três andamentos diferentes. Ele colocou a voz em todos.

 

 

Era o Evandro Ribeiro conduzindo e auxiliando, sempre.

Coloquei o Di Giorgio na caixa, dei um abraço nos dois e fui dormir mais. Desmaiei no hotel.

No outro dia, dormi muito mais em casa.

Isso que conto aqui pode parecer meio gratuito, mas, não é. É uma homenagem ao “cara” Roberto, sempre profissional e carinhoso. Outras histórias tivemos e, em todas, ele foi, antes de mais nada,  um exemplo de profissionalismo, aplicação e amizade.

Sujeito raro, esse, e gosto dos raros que conheci.

Nem precisava tão cantar bem.  Mas canta… um pouco, não?

 

Luis Nassif

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