‘Banalidade do mal’ é reeditada nos discursos de ódio difundidos nas redes sociais

À luz do conceito de Arendt, tese defendida na Faculdade de Direito sustenta que as novas mídias potencializam violações à dignidade humana

Hannah Arendt tratou da banalização da razão e da coerência do ser humano em nome de uma ideologia

da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais

‘Banalidade do mal’ é reeditada nos discursos de ódio difundidos nas redes sociais

O conceito de banalidade do mal foi inaugurado pela filósofa Hannah Arendt no livro Eichmann em Jerusalém, publicado em 1963, em que a autora descreve suas percepções sobre o julgamento de um oficial nazista. Na obra, Arendt propõe que Adolf Eichmann era desprovido de pensamento crítico, ético ou moral, uma vez que o acusado sustentava sua defesa no argumento de que estava apenas cumprindo ordens.

O fenômeno da banalidade do mal transcendeu o tempo e hoje é reeditado, entre outras formas, nos discursos de ódio que ganham vulto nas redes sociais. “A potencialização espacial da liberdade de expressão através das mídias digitais causou um dano marginal extremamente perverso. A aldeia global se mostra inflamada com frequentes discursos febris de intolerância, e não há possibilidade de contenção por fronteiras nacionais ou pelas empresas proprietárias dos aplicativos”, observa a jurista Thaisa Carvalho de Moura. 

Ela é autora da tese A banalidade do mal entre o direito e a internet: o discurso de ódio a partir de uma releitura arendtiana nas redes de relacionamento social, defendida em dezembro do ano passado no Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG. 

Recorrendo ao pensamento de Hannah Arendt, a autora da tese argumenta que a raiva parece ser a força motriz nos ambientes virtuais, capaz de determinar relações afetivas, de transformar o padrão de integridade física, moral e psíquica das pessoas e, sobretudo, de motivar a propagação do ódio e o declínio da razão. 

“Na pesquisa, o ‘mal banal’ foi revisitado, assumindo como matéria-prima os discursos de ódio no ambiente virtual. Essas manifestações extrapolam as barreiras institucionais e se difundem na sociedade por meio das redes”, completa Thaisa Carvalho.

Vulnerabilidade
Como aponta a autora, as mídias sociais funcionam como ferramentas catalisadoras de reações violentas, principalmente, contra indivíduos em situação de vulnerabilidade ou minorias formadas por mulheres, negros, pessoas LGBTQIA+, imigrantes e pessoas abaixo da linha da pobreza.

“Os avanços tecnológicos, a utilização de computadores pessoais e as interações on-line multiplicaram as relações inter-humanas, ampliando o contato entre culturas dessemelhantes e diferentes sistemas normativos”, analisa Thaisa Carvalho.

A jurista avaliou o Facebook, o Instagram, o YouTube e o Twitter em relação ao engajamento e à proatividade no combate ao discurso de ódio. Foram levados em conta critérios como a clareza das informações disponibilizadas, a publicidade, a facilidade de acesso e o aprimoramento constante das regras, bem como a imposição de sanções aos infratores e a disponibilidade de dados sobre o desempenho da plataforma no enfrentamento à intolerância.

“O Grupo Meta, responsável pela gestão do Facebook e do Instagram, demonstra nível mais alto de organização e atenção no combate ao discurso odioso. No caso do YouTube, que é vinculado ao Google, são detalhadas as condutas inadequadas que devem ser evitadas, mas não existem informações sobre o número de denúncias e de contas suspensas. Quanto ao Twitter, as diretrizes são desconexas, disponíveis em um blog onde toda e qualquer notícia sobre a plataforma é divulgada”, sintetiza Thaisa Carvalho.

Novo sentido
O pensamento arendtiano, como reflete a autora, criou meios para que o exame da dinâmica do discurso de ódio não ficasse restrito à ciência jurídica. “A História, a Filosofia e a Ciência Política também são vias para compreender muitas das situações experienciadas na atualidade. As múltiplas formas de manifestação do mal ilustram o caráter atemporal da categoria que Arent formulou”, afirma.

Nesse cenário, a ciência jurídica é questionada quanto à real contribuição na busca de respostas sobre a aplicabilidade das leis no ambiente virtual. “As normas internacionais ainda não são plenamente adequadas para tutelar os direitos violados. É preciso vislumbrar outras possibilidades de combater as novas formas de agressão à dignidade humana”, conclui Thaisa Carvalho.

Tese: A banalidade do mal entre o direito e a internet: o discurso de ódio a partir de uma releitura arendtiana nas redes de relacionamento social
Autora: Thaisa Carvalho Batista Franco de Moura
Orientador: Fabrício Bertini Pasquot Polido
Defesa: 2 de dezembro de 2022, no Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG

Matheus Espíndola

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Redação

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  1. Se o desprovimento de pensamento crítico, ético ou moral, é a base sobre a qual se sustenta a banalidade do Mal, eu me pergunto: não seria essa mesma condição a base sobre a qual se assenta a banalidade do Bem? Adolf Eichmann, e mais algumas centenas de oficiais nazistas, estava apenas cumprindo ordens. Que dizer daqueles milhões de cidadãos que, diariamente, e em plena liberdade, se submetem ao consenso manufaturado da Mídia Corporativa e sua incessante propaganda subliminar, aqui no Ocidente Cristão? O simples fato de usar o conceito de “Mal” já denuncia Hannah Arendt como uma pensadora que divide – até certo ponto, pelo menos – o Mundo entre Bem e Mal. E essa é uma conclusão, ou visão de mundo, a que só chegam aqueles que julgam estar do lado do Bem. Ou que julgam ser o próprio. Ninguém deliberadamente se posiciona como o Mal. Nem o satanás. É de supor que Hannah Arendt, judia europeia exilada nos Estados Unidos, considerasse esse país como o lado justo e certo da História. Mas isso é só uma suposição. Diversos de seus escritos apontam para isso, e a sua caracterização do Totalitarismo é explícita, ao opor a Democracia Capitalista ocidental ao monolítico império soviético. Os soviéticos certamente não concordavam com isso, e muito menos algumas dezenas de outros povos espalhados pelo mundo. O Grande Satã dos iranianos certamente evidencia que o paraíso democrático capitalista não é, afinal, nenhuma unanimidade. Mas essa é outra história, e volto à questão inicial: quando o Ocidente cristão afirma ser o paradigma da Liberdade e das Oportunidades, e todos nós sabemos (eu, pelo menos, sei, mas boa parte de meus contemporâneos apenas desconfiam, ou supõem) que essa condição foi alcançada às custas da exploração (e espoliação, bem entendido) das riquezas e recursos naturais de outras terras, mediante o uso da invasão, da violência, do massacre, do genocídio, em resumo, do Mal, isso também não é sacrificar o pensamento crítico, ético ou moral, em nome de desfrutar – ao menos teoricamente – das benesses que essas conquistas proporcionaram? Eichmann não se sentia culpado pelas horrorosas consequências de sua cega obediência ao dever. E os que acolheram, e ainda acolhem, candidamente, as conclusões da Sra. Arendt não fazem o mesmo, ignorando o que há de sanguinário e abjeto nas fundações da prosperidade da nossa civilização cristã-ocidental? Não seriam, por acaso, os indígenas americanos, os negros africanos, os orientais (que punham pouco valor na vida, segundo o preclaro General Westmoreland), além de inúmeros outros povos e etnias, do presente e do passado, o que os judeus eram para o oficial burocrata alemão? Qual a diferença entre as montanhas de cadáveres dos desvalidos do Terceiro Mundo que tiveram o azar de estar no caminho da prosperidade do Ocidente, e as pilhas de cadáveres de judeus nos campos de concentração nazistas? Não seria essa uma espécie de Banalidade do Bem? Se as situações são, no mínimo, semelhantes (e eu acho que são uma única e mesma coisa), por que não aplicar os mesmos critérios? Será porque se, pensando dessa maneira, aboliríamos essa primitiva estupidez de Bem e Mal, e assumiríamos que o que nos move nesse mundo é o nosso interesse, e na perseguição e defesa desses interesses nós agimos, praticando indistintamente o Bem e o Mal, simultânea e concomitantemente? Olhemo-nos no espelho, amigos. Não somos bons, nem maus; somos humanos. Perseguimos nossos interesses. Se o meu Bem for causa de seu Mal, dane-se. E se você recalcitrar, jogo-lhe uma bomba de Hiroshima nas fuças. Nada melhor do que um massacre para impedir um massacre. Mais uma vez, cito: “Minha disposição é a mais pacífica. Os meus desejos são: uma humilde cabana com um teto de palha, mas boa cama, boa comida, o leite e a manteiga mais frescos, flores em minha janela e algumas belas árvores em frente à minha porta; e, se Deus quiser tornar completa a minha felicidade, me concederá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos enforcados nessas árvores. Antes da morte deles, eu, tocado em meu coração, lhes perdoarei todo o mal que me fizeram. Deve-se, é verdade, perdoar os inimigos – mas não antes de terem sido enforcados”. Heinrich Heine, poeta alemão (1797-1856). E mais uma vez convido algum amigo leitor a contestar a verdade dessas palavras. Se o Mal é banal, o Bem também o é. Vamos aprender a lidar e controlar nossos interesses, eu diria. Mas não tenho muita esperança que isso um dia possa acontecer.

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