A História do Mundo – parte VII, por Gustavo Gollo

Até pouco tempo, costumava ser difícil tecer concepção diversa da que estabelece a primazia dos indivíduos, compreendidos como criaturas unas, fisicamente interligadas.

A História do Mundo – parte VII, por Gustavo Gollo

O modo de reprodução sexual permitiu o desenvolvimento de criaturas que não se empenhavam em se reproduzir o mais rápido possível, atentando mais para a qualidade que para a quantidade da descendência. O custo para a construção de um elefante, por exemplo, é enorme, equivalente ao da produção de uma infinidade de bactérias. Criaturas assim, extremamente caras, existem porque não competem com as simples e baratas. Essa complexidade das criaturas sexuais, que as resguarda da competição com as outras, acabou gerando uma diversidade sem precedentes de modo que virtualmente, todas as criaturas conhecidas popularmente reproduzem-se sexualmente; seres assexuais, embora inúmeros, são conhecidos apenas por biólogos.

Até pouco tempo, costumava ser difícil tecer concepção diversa da que estabelece a primazia dos indivíduos, compreendidos como criaturas unas, fisicamente interligadas. A disseminação da tecnologia wireless nos habituou a considerar a existência de entidades compostas através de redes sem fios.

Além de propiciar o aumento de complexidade dos indivíduos que a praticam, a reprodução sexual, estabeleceu conexões entre os indivíduos de cada espécie, compondo redes wireless de criaturas interligadas por um mesmo pool gênico.

Foi o aperfeiçoamento de uma dessas redes, consistente no enriquecimento das interações entre os indivíduos, que acabou se transformando na espécie de cornucópia que resultou em um conjunto explosivamente diverso de consequências. Tratava-se da linguagem, uma forma de conexão wireless desenvolvida inicialmente por nossos antepassados.

Costumamos considerar a nós mesmos criaturas ímpares, de sagacidade muitíssimo superior a todas as demais, avaliação decorrente, talvez, de uma autoindulgência exagerada; individualmente, acho bastante provável que a inteligência dos animais nos supere com certa frequência, aqui e ali, apesar de praticarmos há certo número de gerações a seleção de indivíduos inteligentes entre nós.

Coletivamente, no entanto, somos inigualáveis graças ao desenvolvimento da linguagem, essa forma de conexão wireless muitíssimo mais rica que a conexão existente anteriormente entre seres de mesma espécie, estabelecidas pela reprodução sexual, interação capaz de propiciar, fundamentalmente, um único tipo de interação.

Existem vídeos de animais que demonstraram capacidade inventiva estarrecedora, digna de inventores treinados e hábeis, verdadeiros gênios do mundo animal. Quase todas essas invenções mirabolantes idealizadas por eles, no entanto, perdem-se, esvaem-se, com a morte da criatura.

Nossas invenções, no entanto, podem ser retidas por válvulas decorrentes do uso da linguagem. Novidades, em geral, invenções de todos os tipos, podem, por meio da linguagem, ser ensinadas a outras pessoas, difundidas desse modo entre muitos e, assim, imortalizadas e acrescidas, umas a outras. O resultado de tudo aquilo que é retido por válvulas linguísticas é chamado cultura.

A linguagem transforma as comunidades linguísticas, os falantes de uma mesma língua, em uma rede análoga a um cérebro gigante. Comunidades equivalentes e diversas conectam-se através de traduções, e de falantes bilíngues, compondo a imensa rede humana.

Embora a linguagem tenha sido criada para conectar indivíduos, sendo essa sua função mais laureada, a linguagem tem outras aplicações. Uma gigantesca consequência da linguagem foi a criação de todo o mundo institucional, simbólico, para o qual nossas atenções são hoje mais dirigidas que para o mundo material, anterior à linguagem. “Coisas” como o dinheiro, países e empresas possuem uma existência apenas simbólica, e não teriam sentido sem a linguagem.

Outra aplicação tão ou mais significativa da linguagem decorre de seu potencial para estruturar nossos pensamentos. (Acredito que o papel original da linguagem tenha sido o de ornamento sexual, acabando por ganhar, posteriormente, as funções de comunicação, estruturação de pensamentos e construção de mundos).

Atarraxados a concepções centradas na primazia dos indivíduos, temos dificuldade de conceber outra visão, que não a de nossos ancestrais iniciando o desenvolvimento da linguagem, produto da coletividade humana.

Contudo, sob ponto de vista alternativo, a linguagem surge como uma espécie de parasita originado em nossa mente, e, se é certo que podemos conceber a coletividade humana desenvolvendo a linguagem a partir de certo período, também podemos descrever o entrelaçamento das mentes à maneira dos zumbis. Sob esse modo de ver, fomos escravizados pela linguagem, transformados em zumbis, por ela.

Sob qualquer ponto de vista, a linguagem, um produto imaterial – um software –, adquiriu uma importância extraordinária, passando a governar o planeta, hoje, todo ele delineado por ela – horrendamente, diga-se de passagem, aparentemente, nós humanos louvamos a feiura: como emporcalhamos e enfeiamos o mundo!

Comandados pela linguagem – essa eficientíssima válvula de retenção de complexidade – passamos a tecer o salto evolutivo seguinte.

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Gustavo Gollo é multicientista, multiartista, filósofo e profeta

# Biologia generalizada, # Replicadores # Linguagem # Complexidade

Redação

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