A Justiça Federal do Rio: tão atual quanto a Inquisição

Fatos curiosos aconteceram nos últimos dias. Aos acontecimentos da nossa vida cotidiana são dadas as possibilidades de muitas interpretações, tal qual os aforismos, que cada vez que lidos podem nos trazer uma mensagem diferente daquela que havíamos compreendido a princípio. Falávamos de escravidão. Dos grilhões sociais que agora invisíveis, continuam a sustentar e erguer desigualdades sociais entre sujeitos, claramente de etnias diferentes. Para que a escravidão pudesse justificar-se, eram necessárias razão lógicas (ideológicas – o que significa um certo falsear/maquiar da realidade) que dessem sustento as atrocidades cometidas. Isso é importante de ser lembrado para que se possa lançar luz sobre os tais acontecimentos.

Bem, voltando aos fatos acontecidos e sendo mais claro, divulgou-se amplamente nas redes sociais duas notícias no mínimo intrigantes. A primeira, em verdade, apenas uma foto, revela um menino negro por traz de uma cartaz publicitário de divulgação de apartamentos que tinha a figura de um homem branco de olhos azuis e sorridente (não por acaso, ele só poderia ser de papel mesmo para estar ali). A outra, se refere a decisão da Justiça Federal do Rio de Janeiro que emitiu uma nota declarando que “cultos afro-brasileiros” não se constituem como “religiões” visto que não possuem estrutura hierárquica, um texto base e um Deus central a ser venerado. Por critério de complementariedade e visto a pretensão que este texto tem, fique-se apenas com a segunda notícia.

Não é a primeira, nem a segunda vez que falo a respeito do preconceito e perseguição as religiões de matriz africana. Não tanto porque esse seja um assunto que eu seja versado, mas muito mais porque ele se apresenta repetidamente na sociedade brasileira e assume as mais diferentes formas. Pois é. Retornando ao início do texto, um dos processos de colonização implicou na desapropriação dos negros de toda a sua raiz cultural, dentro disto da sua dimensão espiritual e religiosa. A Igreja Católica, mensageira potente da verdade em especial no processo de conquista do Brasil, habilmente associou toda manifestação religiosa contrária a sua (negra e/ou indígena) como associada a figura do demônio, do inferno, do mal. Obrigados pelas circunstâncias de opressão a fé do povo africano foi sobrevivendo como pôde, nos cantos escondidos e travestidos por meio de sincretismos com as figuras dos santos católicos. O tempo e a miscigenação foram dando tons próprios a essa diversidade de crenças que foram se constituindo como uma religião autenticamente brasileira.

Porém, esse mesmo tempo não diminuiu o jugo sobre essas religiões. Lembro da cidade que nasci e cresci no interior de Pernambuco. Formada por uma população majoritariamente católica e protestante, uma única mulher eu sabia como “catimbozeira”. E não que o termo a designasse como praticante de um culto específico, mas era uma forma de ofensa e de aviso: aquela mulher era má e deveríamos ficar longe dela. Ainda crianças passávamos sempre correndo pela frente da casa, porque tínhamos medo da catimbozeira e do que poderia nos fazer.  Medo fundando na inverdade secular, que transformou ser macumbeiro ou catimbozeiro (que são coisas diferentes, diga-se de passagem) em ser alguém minimamente desqualificado socialmente e de quem se deveria ter distância.

E quais os avanços hoje em dia? Muito pouco, quase nada… Ainda se ofende chamando o outro de macumbeiro e dizer isso de alguém é claramente referenciar que essa não é uma boa pessoa. Invade-se os terreiros, quebra-se santos e louças, subjuga-se espaço sagrado. “Macumbeiro” desce da comunidade, porque roupa branca estendida é sinal pra morte. Ocupa-se os lugares remotos e periféricos da cidade porque terreiro e barracão é visto como algo ruim de se ter em um bairro. Tenta-se legislar sobre a ritualística afirmando o que pode e não pode ser feito. E por fim, a Justiça Federal do Rio coloca a cereja, ante as agressões que sustentam tudo isso fala: isso não é religião. Da mesma forma que um dia se disse: “isso não tem alma”.

A Justiça agiu da mesma forma que uma certa jornalista também polêmica em outro assunto, justificando e ratificando a violência contra as religiões de matriz africana. Porque sua atitude não implicou apenas na negação desse espiritualidade, mas na corroboração com as ofensas que lhe eram e são dirigidas. Novamente, justiça de inquisição. Reside por fim, a crença esperançosa de que a cultura religiosa desse povo já resistiu a algoz pior, e que o tambor vai continuar a tocar e o santo vai continuar a dançar. Porque sobre isso, o preconceito de uns (muitos ou poucos) não tem autoridade.  

 

Por Johny Brito, colunista do blog O Trem

Redação

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