Urariano Mota
Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".
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Bastidores do romance “O filho renegado de Deus” *

 

 


 

                                                                                      

 

Comecei a escrever o livro em 10 de janeiro de 2011, em letrinha miúda nas páginas de um caderno de capa vermelha, numa escrita quase hieroglífica. Quando se tornou legível na digitação do micro, o livro se concluiu em 3 de fevereiro de 2012. Mas até agora não consigo ter distância crítica de “O filho renegado de Deus”.  

 

 

 

Em muitas páginas as suas linhas foram mais desenterradas que escritas. O romance possui pontos que fazem um iceberg íntimo. Na capa do caderno anotei um chamamento: ver frase da página 76 do manuscrito.  E lá se escreve circulado: “Jimeralto nunca se disse por que embora ateu guardava fundada uma noção de pecado – é que ele começou a ser louco por mulher a partir do sexo da mãe”. Ainda que de um personagem, palavras assim não formam frases, são arrancos que não se dizem em público.  Em outro lugar, para dar significação ao que o menino via, escondido, quando testemunhava o amor da mãe pelo irmão gêmeo, ao observá-la  em cochichos na cozinha, ele se fala, ao narrar na maturidade o visto na infância, que era um “secreta de Deus”. Isso porque os seus olhos viam o que Deus se negava a ver, logo Ele para quem uma só folha não caía longe dos olhos. Jimeralto, o secreta de Deus, substituía a justiça divina, que nunca chegou para Maria. O secreta via e compreendeu na maturidade  aquele amor compensatório de Maria pelo irmão homossexual.    

 

 

 

Um mês depois de começado o romance, em 10 de fevereiro de 2011, copiei com paciência esta iluminação de Manuel Bandeira: “Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante”. O poeta se referia ao período dos seis aos dez anos de idade. Anotei o insight porque descortinava os desdobramentos do romance. Então pude ver que o livro se apoiava em três colunas: os personagens Filadelfo, Maria e a luz da frase de Bandeira.

 

 

 

De Filadelfo eu sabia que era um mulato escuro, “quase negro”, vindo de uma sociedade de classes mais brutal que a média das pessoas brutalizadas. Havia sido guia de cego, filho único, bastardo, de mãe negra filha de escravos. O pai oculto de Filadelfo,  um português evangélico, pastor, engravidou a negra e fugiu para pregar em outras freguesias. É um milagre, anotei, que Filadelfo não tenha se tornado um criminoso, como tantos da sua condição. Salvou-o do crime legal o “espiritismo”, ao qual foi convertido por um padrinho tardio, o vidente e médium Manoel de Carvalho.

 

 

 

Da sua mulher, Maria, apontei que dela haveria duas visões. Uma, a que lhe davam os vizinhos do beco onde morava. Para eles, Maria era mulher gorda, baixinha, impulsiva, valente, mulher que ao ser comparada a vizinhas sensuais, desejadas, não passava de uma “albacora”. Anotei que mesmo em tal visão estética, deformante e deformada, reconheciam nela generosidade e valentia. Davam-lhe as qualidades daqueles predestinados à morte logo cedo. No crescimento do romance, ela será a mãe vista pelos olhos de Jimeralto. Então ela será como lhe aparecia em sonhos e num retrato retocado na sala, mulher bela, bonita, expressão última de coragem em um rosto feminino. Dona de um leite farto que distribuía a outras mães, tão generosa e socializada era na própria carne.                

 

 

 

É desse casamento que nasce Jimeralto, o narrador que se torna o filho renegado de Deus, a Máxima Autoridade, o pai que assassinava pessoas, infância e mulher.

 

 

 

Ouvi muito Bach enquanto escrevia o romance. Ouvi muito Beethoven nas horas mais difíceis, quando precisava serenar sob os concertos para violino e orquestra, nos momentos em que vinha uma vontade danada de tudo largar e ficar de frente olhando o oceano, idiota e insone, das 7 da manhã até a madrugada. Mas era preciso continuar, o livro devia ser digno da memória de uma certa Maria, que ordenou ao personagem no começo do romance:     

 

 

 

“- Senta, filho, que os mortos voltam.

 

 

 

Ela nada lhe disse assim, de viva voz, mas ele obedeceu à ordem. O que faz um homem quando reencontra a sua mãe falecida? Obedece-lhe, contrito, grato, louco doido de amor, de carinho e saudade. Os dados factuais insistem em dizer que eram quatro da tarde, no cemitério de Santo Amaro, fins de dezembro. Mas o que são os dados factuais? Eles nada dizem que correu um fio daquele encontro. Fio de sangue, cujo sal ele sentiu na boca, na língua, embora o sangue, pelo tempo, já houvesse perdido a sua organicidade fresca, animal. Mas os animais não sabem que bicho estranho é o homem. O sangue houve, fluindo daquele encontro. Sangue represado que rebentava”.

 

 

 

Tendo assim começado o livro, difícil foi encerrá-lo, pois nele também se transformava o amador na coisa amada. Não havia coragem de fechar a narrativa de Maria, “porque o fim do discurso também fechava a mágica, que era o fim da ressurreição de Maria”. Então o livro não findou. Então o personagem saiu do cemitério sabendo que os tempos se uniam, de 2012 a 1958.

 

 

 

*Publicado no Pernambuco Suplemento Cultural de junho de 2013.

 

 

Urariano Mota

Escritor, jornalista. Autor de "A mais longa duração da juventude", "O filho renegado de Deus" e "Soledad no Recife". Também publicou o "Dicionário Amoroso do Recife".

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