Chile promete cumprir sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, já o Brasil…

Corte Interamericana de Direitos Humanos

Santiago do Chile

Exclusivo para Jornal GGN

 

Completando pouco mais de meio ano no poder, o governo Michelle Bachelet já foi atingido por dois petardos jurídicos de efeito retardado. Primeiro, o Chile foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em San José, Costa Rica, por aplicação abusiva, em 2003, da famigerada “Ley Anti-Terrorista”, forjada pela ditadura Pinochet, mas empunhada por governos democrátidos para enquadrar representantes da etnia Mapuche. No final de agosto, foi advertido pela ONU, devido ao escandaloso espancamento de detentos na penitenciária de Rancagua, em 2013. O Defensor Público Alberto Ortega descreveu as cenas veiculadas pela TV como “imagens de um campo de concentração da Alemanha nazista”.

Apesar de ocorridos em gestões anteriores à de Bachelet, os dois casos ilustram de modo emblemático a atropelada “transição democrática” de países egressos da longa noite das ditaduras, como é o caso particular do Brasil e do Chile, cujas polícias – a PM brasileira e os Carabineros chilenos – parecem intocadas pelo Estado Democrático de Direito e sua garantia dos Direitos Individuais, espancando, torturando e fuzilando cidadãos, como se ninguém lhes tivesse contado que Augusto Pinochet e Garrastazú Médici são entidades do além e não exercem mais seu comando.

Os desmandos se sucedem entre outros, porque em ambos países a transição apressada e conchavada travou a desmilitarização das polícias, cujos abusos são mal investigados e arquivados por corregedorias corporativistas – no caso do Chile, a Justiça Militar – perpetuando a impunidade e solapando as liberdades individuais.

No entanto, a violência policial é a perna menor das deformações congênitas engendradas pela chamada “transição democrática”, porque Congresso, Governo e Poder Judiciário pouco ou nada fizeram para desestimular a sobrevivência do espírito herdado das ditaduras, acomodando a legalidade, no caso brasileiro, entre a Constituição de 1988 e a Lei da Auto-Anistia e, no caso chileno, à anacrônica sobrevivência da Lei Anti-Terrorista da ditadura Pinochet, tornando ambas as democracias reféns de duvidosas “prerrogativas” do estamento militar.

O medo dos sucessores civis de “cutucar onça com vara curta” – o desmonte do arcabouço legal das ditaduras e a reeducação democrática de FFAA e órgãos de segurança, como ocorreu na Alemanha Ocidental e na Itália, pós-fascistas – produziu mais injustiça. No Brasil travou as investigações sobre presos políticos desaparecidos e a punição de torturadores e assassinos, e no Chile empurrou com a barriga o pagamento da centenária dívida política, econômica e cultural do Estado com a etnia Mapuche.

Os socialistas e as leis pinochetistas

O Chile cumprirá a sentença da Corte Interamericana, garantiu o ministro da Justiça, José Antonio Gómez, no final do passado mês de julho, o que significa anular as condenações de 2003 por suposto “terrorismo” de sete militantes comunitários Mapuches, pagando-lhes reparações no valor aprox. de 600 mil dólares, e expungir da legislação penal a famigerada Lei Anti-Terrorista.

A mal afamada “Lei 18340” data de 1984, quando a ditadura enfrentava os primeiros protestos massivos, mas também a resistência armada da Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), que protagonizou vários atentados fracassados contra Pinochet. Com o fim da ditadura, em 1991, os aspectos eminentemente ideológicos foram eliminados, mas em sua essência a lei continua em vigor e representa um dos mais estapafúrdios anacronismos do Estado de Direito inacabado, no Chile. Endurecendo as penas previstas pelo Código Penal (para crimes de incêndio, homicídio ou sequestro), durante a investigação criminal, a “Lei Anti-Terrorista” permite o uso de testemunhas “sem rosto”, restringe o acesso a medidas cautelares, extende prisões preventivas e dobra as penas previstas pelo código penal; tudo somado, uma draconiana lei de exceção.

Que a lei pinochetista tenha sobrevivido a transição e, pior, aplicada em seus governos por vítimas da ditadura Pinochet, como os presidentes socialistas Ricardo Lagos e Michelle Bachelet, causa enorme espécie no Chile dos dias atuais. Em campanha para seu segundo mandato, em abril de 2013, a atual Presidente – filha de um brigadeiro assassinado pela ditadura, e ela mesma torturada – admitiu ao semanário “The Clinic”, de Santiago, que “aquilo foi um erro”. E tentou explicar-se: “Em meu governo foi apresentado um projeto de modificação da Lei Anti-Terrorista que não prosperou no parlamento”, garantindo que, se eleita, “em caso algum” voltaria a empregar a lei, como o fez no marco do chamado “conflito mapuche” – estigma rejeitado pela etnia, argumentando que o agente conflitador é o Estado chileno, que não reconhecem como seu.

Território Mapuche e criminalização do protesto social

Pano de fundo das prisões de lideranlas Mapuches é sua mobilização pela “reintegração de posse do território ancestral”. É consenso entre a maioria dos historiadores e antropólogos chilenos, contemporâneos, a tese da “dívida histórica” do Estado chileno face à maior e mais combativa etnia indígena do país, cujo território ancestral, estimado em 5,0 milhões ha (segundo algumas fontes Mapuches seriam 10,0 milhões ha), foi usurpado pelo exército chileno entre 1860 e 1883, violando os centenários acordos de autonomia territorial celebrados entre a Coroa espanhola e as lideranças dos então Araucanos. Declaradas “terras fiscais”, depois distribuídas entre colonos europeus – com os Mapuches confinados a uma reserva de 500 mil hectares, fragmentada como a faixa de Gaza – na historiografia oficial a expropriação territorial é descrita eufemísticamente como a “Pacificação da Araucânia”, mas na percepção dos Mapuches foi uma usurpação.

O caso “Norín Catrimán e outros contra o Chile”

Data de 2003 a prisão dos líderes comunitários Aniceto Norín Catrimán, Pascual Huentequeo Pichún Paillalao, Víctor Manuel Ancalaf LLaupe, Florencio Jaime Marileo Saravia, Juan Patricio Marileo Saravia, José Huenchunao Mariñán, Juan Ciriaco Millacheo Licán e a ativista Patricia Troncoso Robles, conhecida como “La Chepa” – todos acusados de atentado incendiário, depredação e tentativa de homicídio culposo.

Em 2013, no Chile 34 pessoas cumpriam pena por suposto delito de terrorismo nas prisões de Concepción, Temuco, Valdivia e Angol, e outras 400 eram acusadas dos mais diversos crimes contra a propriedade ou de agressão; todas Mapuches.

No “Caso Norin Catrimán”, os supostos réus foram enquadrados pela Lei Anti-Terrorista e condenados a penas que variaram entre 5 e 10 anos de reclusão. Após sofrerem toda sorte de cerceamento de seus direitos como réus perante o Judiciário chileno, em 2011, Aniceto Norín Catrimán, protocolou ação de denúncia na Corte Interamericana de DDHH, que, três anos mais tarde, corroborou a avaliação da diretora do Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile, a advogada Lorena Fries, para quem os Mapuches foram vítimas de “preconceitos e estereótipos na fundamentação das sentenças”, o que configuraria a “violação do princípio da igualdade e da não-discriminação”.

Rose-Marie Belle Antoine, representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), questionou a própria legalidade do processo, alertando: “O Chile violou direitos humanos dos Mapuches ao discriminá-los por sua pertença étnica e ao não lhes garantir o devido processo”. A CIDH foi criada em 1959 mediante resolução da 5a. Reunião de Consulta de Ministros de Relações Exteriores – ironicamente em Santiago do Chile – como órgão da OEA, com a missão de promover a observância e a defesa dos Direitos Humanos e servir como órgão consultivo da OEA na matéria.

O governo chileno tem o prazo de um ano para cumprir o disposto na sentença da Corte, que prevê o pagamento das custas processuais, de indenizações financeiras aos réus – declarados vítimas pela Corte -, além de assistência psicológica aos mesmos e a suas famílias e a revogação das sentenças, em cuja fundamentação a Corte comprovou justificativas que denotam estereótipos e preconceitos que violam o princípio da igualdade e da não-discriminação, assim como os da legalidade e do direito à presunção de inocência e à defesa.

O Chile cumprirá a sentença, mas com enorme mau humor.

“Temos que respeitar a sentença, ver como a implementamos”, admitiu Rodrigo Peñailillo, ministro do Interior do Chile, mas em seguida cometendo ato falho com uma ameaça velada, ao avisar que “aqui ninguém se engane, o governo do Chile vai fazer tudo o que estiver ao seu alcance, porque quem está por trás de atos violentos terá a punição que lhe corresponde” – estaria Peñailillo se referindo aos Mapuches inocentados pela Corte ou à militarização da Araucânia pelos Carabineros ?

Brasil não cumpre

Há alguns meses, familiares de vítimas da ditadura militar no Brasil e ativistas de DDHH denunciaram à CIDH o descumprimento da sentença que obriga o Estado brasileiro a punir os responsáveis pela repressão neste período, em particular na Amazônia.

Em setembro de 2010, a CIDH condenou o Estado brasileiro a processar os responsáveis pela repressão desencadeada entre 1972 e 1975 pelo Exército na região do Araguaia, e a procurar os restos mortais de 69 guerrilheiros do PCdoB “desaparecidos” na região.

Segundo a denúncia de familiares das vítimas, como Victoria Grabois, que perdeu o marido, o pai e o irmão durante a repressão no Araguaia, o Estado brasileiro não desenvolveu ações para o acatamento da sentença da CIDH. “Não há vontade política, o Brasil é o país da impunidade”, lamentou Victoria.

Alertados, segundo Victoria, os juízes da Corte interpelaram severamente os representantes do Brasil, e segundo sua avaliação a pressão do tribunal deverá finalmente obrigar o país a acatar sua decisão.

“50 anos após o Golpe Militar e passados quase quatro anos da sentença da Corte, o Estado está em dívida com o esclarecimento dos fatos, com a devolução dos restos dos desaparecidos a suas famílias e com a punição dos responsáveis da repressão”, adverte Viviana Krsticeviv, diretora-executiva do Centro Pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), que interage diretamente com os familiares.

Blackout do Executivo ou do Judiciário?

A título de elucidação de algumas razões do descumprimento das sentenças da CIDH, agrego aqui as conclusões do ensaio “Cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no âmbito interno” de Marcela Harumi Takahashi Pereira http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6491:

A Constituição da República, no art. 7º dos Atos das disposições constitucionais transitórias, determina que “O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional de direitos humanos”. Na verdade, a norma chegou tarde. A proposta de criação da Corte Interamericana de Direitos Humanos havia sido formulada pelo Brasil e aceita décadas antes, e, sem embargo, demoramos a admitir a jurisdição da corte, o que só aconteceu em 1998. Também consta da nossa Constituição que o Brasil buscará a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4o, IX), ideal que, por mais difícil que seja precisá-lo, certamente inclui o respeito aos tratados e às decisões dos tribunais internacionais. Quando o Brasil for condenado pela CIDH, a sentença deverá ser cumprida espontaneamente. Se isso não acontecer, e se se tratar de condenação a pagar indenização, será executada na forma do art. 68.2 do PSJCR, ou seja, tal qual uma sentença nacional contra a Fazenda, independentemente de homologação. Por outro lado, se se tratar de uma condenação diversa, caberá aplicar o mesmo dispositivo por analogia, já que não há norma específica para as demais condenações. No que toca ao cumprimento da sentença internacional, como em outros relevantes temas do direito internacional, o ordenamento brasileiro é lacunoso. Aplica-se aos brasileiros, portanto, a advertência de Cançado Trindade:“[…] a grande maioria dos Estados Partes na Convenção Americana ainda não tomou qualquer providência, legislativa ou de outra natureza, nesse sentido. Por conseguinte, as vítimas de violações de direitos humanos, em cujo favor tenha a Corte Interamericana declarado um direito —quanto ao mérito do caso, ou reparações lato sensu,— ainda não têm inteira e legalmente assegurada a execução das sentenças respectivas no âmbito do direito interno dos Estados demandados. Cumpre remediar prontamente esta situação.”

 

Redação

4 Comentários

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  1. Segundo Alessandre Argola, o

    Segundo Alessandre Argola, o STF pode determinar que o Brasil desrespeite seus compromissos internacionais.

    Pedi para o rábula reacionário explicar onde a Constituição confere esses poderes ao STF, mas, até o momento, não tive resposta.

  2. Nenhum pais que tenha

    Nenhum pais que tenha pretensao de ser protagonista no cenario internacional deve considerar a ideia de se submeter a corte desse tipo.

    Sobre a lei é obvio que acatar testemunho de pessoas anonimas é algo bizarro.

    Deve ser reformalada nao porque a corte internacional pediu e sim porque é algo evidentemente totalitario.

    Sobre a tal etnia Mapuche, tiveram sua historia e isso é lindo etc e tal.

    Mas agora  são cidadãos chilenos e devem se contentar em culturar sua historia mas sem esse papo de ” outra naçao “

    Os tempos sao outros , se bobear daqui a pouco vao querer restabelecer o imperio Inca…rs

     

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