Choque neoliberal jamais levou países latino-americanos à “luz no fim do túnel”, como quer Milei 

Renato Santana
Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.
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Terapia de choque defendida pelo presidente argentino Javier Milei jamais tirou países do abismo da pobreza, aumentando desigualdades e caos

Javier Milei, novo presidente da Argentina. Foto: Flickr Ilan Berkenwald

A posse do presidente eleito da Argentina, Javier Milei, suscita reflexões a respeito da história de governos na América Latina que chegaram ao poder prometendo ajustes dolorosos, arrochos e interrupção de gastos sociais como desvio da rota ao abismo econômico e social, mas que apenas aceleram a chegada até ele, com aumento da desigualdade, pobreza e violência.     

Para a colunista de diversos veículos latino-americanos, Nathali Gómez, há mais de três décadas presidentes recém-empossados como Milei, em termos gerais, disseram a mesma coisa. Na sua primeira mensagem como presidente em exercício, Milei expressou que a dor será preferível à “sensibilidade do progressismo”.

A conta de Milei parece ser simples e de resultado óbvio: percorrer um caminho de trevas para os argentinos que, em suas palavras, levará a nação a uma situação que começará a melhorar até ver a “luz no fim do caminho”. A colunista listou exemplos na América Latina que mostram como o discurso de Milei tenderá ao fracasso. 

Terapia de choque: suas origens na América Latina

O fundador da agremiação de extrema-direita A Liberdade Avança afirmou que “não há alternativa possível ao ajustamento” e que “não há espaço para discussão entre ‘choque’ e gradualismo”, porque considera que “do ponto de vista empírico todos os programas gradualistas terminaram mal , enquanto todos os ‘choque’, exceto o de 1959 [durante o governo desenvolvimentista de Arturo Frondizi], foram bem sucedidos”.

“A conclusão é que não há alternativa ao ajustamento e não há alternativa ao ‘choque’”, alertou Milei. Ele também previu a estagnação/inflação como “a última bebida ruim para iniciar a reconstrução da Argentina”.

Nathali Gómez lembra que o termo ‘terapia de choque’ é atribuído ao economista americano Jeffrey Sachs, arquiteto do plano para acabar com a hiperinflação na Bolívia em 1985. Porém, essa mesma prática já havia sido utilizada pelo monetarista americano Milton Friedman, no Chile, após o golpe de Estado que derrubou Salvador Allende, em 1973.

Segundo Friedman, “só uma crise – real ou percebida – dá origem a uma verdadeira mudança” e, quando isso ocorre, devem ser tomadas ações de forma rápida, repentina e irreversível para provocar reações psicológicas que “facilitariam o processo de ajustamento”, disse a jornalista canadense Naomi Klein coleta em seu livro ´A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo desastre´, que saiu no Brasil em 2008 pela editora Nova Fronteira.

No trabalho, publicado em 2007, Klein refere-se a vários casos no mundo e na região – entre os quais Argentina, Bolívia e Chile – de governos que tentaram deter a hiperinflação “com a aplicação de medidas corretas, duras e drásticas”.

O caso chileno

Entre os chamados casos modelo de aplicação da terapia de choque na América Latina está o Chile, conforme lista Klein citado no artigo de Nathali Gómez. No país sul-americano, o impacto gerado pelo “violento golpe de Estado de Pinochet” se misturou ao trauma causado pela hiperinflação aguda, escreve Klein.

Friedman aconselhou o ditador a impor um “pacote de medidas rápidas” que incluísse “reduções fiscais, mercados livres, privatização de serviços, cortes nas despesas sociais e liberalização e desregulamentação”.

Pinochet, afirma Klein, realizou “seus próprios tratamentos de choque, realizados pelas múltiplas unidades de tortura do regime”, que foram o terreno fértil para a vulnerabilidade psicológica da população.

O ex-presidente Jair Bolsonaro já tinha classificado as práticas econômicas de Pinochet como “bem sucedidas”, o que foi negado por vários analistas, incluindo o economista chileno Ricardo Ffrench-Davis, da Universidade do Chile.

Conforme Natahli Gómez explica, as reformas econômicas neoliberais dos militares têm um saldo “altamente negativo”, que foi acompanhado por “duas recessões graves, baixo investimento produtivo e elevado investimento especulativo”. 

O que resultou no aprofundamento da “desigualdade, o excesso de importações, a desindustrialização, a deterioração da educação e do investimento público na saúde” e causou “elevado desemprego”.

A situação argentina

Klein descreve o caso argentino como “paradigmático” e lembra que em 1983, após a dissolução da Junta Militar, foi eleito o presidente Raúl Alfonsín, ameaçado pela chamada “bomba da dívida”, cujo estopim foi aceso nos anos de ditadura, produto dos elevados gastos envolvidos na manutenção de um regime repressivo e que estabeleceu uma guerra interna.

A alarmante situação econômica que viveu Alfonsin só piorou durante os sucessivos anos da sua administração, em que a dívida e a estagnação andaram de mãos dadas.

Assim, ao chegar à Casa Rosada em 1989, Carlos Saúl Menem (1989-1999) prometeu “grande cirurgia sem anestesia” com o neoliberalismo segurando o bisturi.

Durante a sua administração, promoveu-se “a concentração, a centralização do capital e a estrangeirização da economia” e a intervenção estatal foi através “da libertação do mercado interno, do acesso ao capital transnacional e da privatização”, destaca publicação do Fundo de Cultura Económica (FCE) da Argentina citada por Nathali Gómez.

Estas medidas neoliberais tiveram o apoio dos investidores internacionais, de Washington e do Fundo Monetário Internacional (FMI), que as venderam ao resto do mundo como um exemplo a seguir.

O seu sucessor, Fernando de la Rúa (1999-2001), manteve a mesma linha e “recorreu repetidamente a solicitar grandes empréstimos internacionais ao FMI”, segundo o FCE, o que inevitavelmente levou à sua saída da Presidência após o chamado ‘corralito bancário’, em 2001. Este surto social, no contexto de uma grave crise multifatorial, estendeu-se até a chegada à Presidência de Néstor Kirchner, em 2003.

O ‘pacote’ na Venezuela

Nathali Gómez, ainda com base no texto de Klein, lembra que o que aconteceu na Venezuela está localizado na mesma narrativa da aplicação de políticas neoliberais na região, com consequências trágicas que foram vistas quase imediatamente.

O recém-eleito presidente venezuelano Carlos Andrés Pérez propôs, em fevereiro de 1989, a necessidade de uma “mudança de rumo” e de uma “grande virada” que levasse o país aos braços do FMI, que já havia ditado a sua receita para aprovar ajuda de US$ 4,5 bilhões a pagar em três anos.

“Não haverá hesitação ou hesitação no caminho exigido pela construção da Venezuela moderna”, disse o CAP – como era conhecido o falecido ex-presidente – ao anunciar o chamado “pacote” que, como em outros países, incluía privatizações, liberação de preços e taxas de juros, aumento no custo dos serviços públicos e transporte público.

A promessa de aumento da gasolina para 26 de fevereiro de 1989, desencadeou o chamado ‘El Caracazo’ na véspera, cuja repressão pelas forças de segurança do Estado deixou pelo menos 3 mil mortos.

Apesar da resistência popular, o acordo com o FMI foi assinado no dia 1º de março e as manifestações continuaram até o dia 8 daquele mês. Embora este movimento popular espontâneo sem precedentes não tenha levado CAP a abandonar a Presidência naquela altura, foi descrito como o ponto de viragem para a sua saída e para o nascimento do chavismo.

Peru e outras experiências

Estas experiências na América Latina também foram replicadas em países como o Peru, onde Alberto Fujimori (1990-2000), que apesar da sua minoria parlamentar, também optou por acabar com os subsídios, liberalizar preços e privatizar empresas.

Nathali Gómez avalia que agora, 30 anos depois do boom neoliberal na região e das terapias de choque, através de golpes dolorosos que tiveram fortes respostas da população, o novo presidente argentino coloca sobre a mesa o ‘déjà vu’ de uma solução que considera bem sucedida, apesar do que a história mostra.

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Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

2 Comentários

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  1. Não há novidade alguma em afirmar que o fantoche do imperialismo e do sionismo carniceiro fracassará.
    Contudo,como sempre,os falcões do norte e seus patrões sionistas sairão mais ricos e carniceiros.

  2. O Ogro põe um bode na sala da Argentina:

    “Milei afirmou que, no curto prazo, a situação deve piorar até que as primeiras medidas comecem a dar resultado. E reiterou que o governo não tem dinheiro: “Lamentavelmente tenho que dizer, ‘no hay plata'”.

    “Isso impactará de modo negativo a atividade, o emprego, a quantidade de pobres e indigentes. Haverá estagflação [situação em que há estagnação da economia e inflação alta], mas é algo muito diferente do que tivemos nos últimos 12 anos. Será o último gole amargo para começar a reconstruir a Argentina”.

    Não há nada tão ruim que não possa piorar

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