Constitucionalismo latino-americano: entre as belas declarações de princípios e a hipocrisia descarada

“art. 60: O trabalho é um direito inalienável do indivíduo. O Estado empregará os recursos que estiverem ao seu alcance para proporcionar ocupação a toda pessoa que dela careça e assegurará a todo trabalhador manual ou intelectual as condições econômicas necessárias a uma existência digna.” (História das Américas, volume  XIII, publicada sob a direção de Ricardo Levene, Gráfica Editora Brasileira Ltda., 1959, p. 377)

O texto acima transcrito pertence à Constituição de Cuba, mas não àquela que foi promulgada por Fidel Castro após a Revolução Cubana. O artigo acima transcrito pertence à Carta Magna cubana em vigor durante o regime de Fulgencio Batista e que havia entrado em vigor em 10/10/1940. A extensa constituição promulgada pelo ditador tinha nada menos do que 25 artigos contendo princípios e garantias aos trabalhadores cubanos.

A Constituição Socialista de Cuba, em vigor desde 24 de fevereiro de 1976, pode ser facilmente encontrada na internet (http://www.cuba.cu/gobierno/cuba.htm) e também contém garantias aos trabalhadores:

“artículo 45o.- El trabajo en la sociedad socialista es un derecho, un deber y un motivo de honor para cada ciudadano.

El trabajo es remunerado conforme a su calidad y cantidad; al proporcionarlo se atienden las exigencias de la economía y la sociedad, la elección del trabajador y su aptitud y calificación; lo garantiza el sistema económico socialista, que propicia el desarrollo económico y social, sin crisis, y que con ello ha eliminado el desempleo y borrado para siempre el paro estacional llamado “tiempo muerto”.

Se reconoce el trabajo voluntario, no remunerado, realizado en beneficio de toda la sociedad, en las actividades industriales, agrícolas, técnicas, artísticas y de servicio, como formador de la conciencia comunista de nuestro pueblo.

Cada trabajador esta en el deber de cumplir cabalmente las tareas que le corresponden en su empleo.”

A comparação entre os dois textos sugere que o regime de Fulgencio Batista era mais democrático e trabalhista do que o de Fidel Castro. Afinal, ao contrário do socialismo em vigor o capitalismo do ditador deposto em 1959 não reconhecia o “…trabajo voluntario, no remunerado, realizado en beneficio de toda la sociedad, en las actividades industriales, agrícolas, técnicas, artísticas y de servicio”.  Batista, aliás, havia transformado em princípio constitucional que o Estado “assegurará a todo trabalhador manual ou intelectual as condições econômicas necessárias a uma existência digna” , algo que pode ser considerado semelhante ao que consta da atual Constituição Socialista de Cuba.

As belas declarações constitucionais de Fulgencio Batista, porém, contrastavam com a odiosa realidade cubana antes de 1959. Sob a ditadura capitalista que privilegiava o latifúndio apenas os amigos do presidente tinham privilégios e garantias legais. A maioria dos cubanos afundava no desemprego, sub-emprego, analfabetismo e total desamparo social. A realidade cubana fermentou a revolução socialista e fomentou a vitória de Fidel Castro apesar de ele ter começado seu movimento com um punhado de guerrilheiros.

O reconhecimento de trabalho voluntário e não remunerado, parece não incomodar os habitantes de Cuba. Nada indica que eles pretendam destituir o governo socialista que fez uma verdadeira reforma agrária e tem proporcionado educação e saúde de qualidade à maioria dos cubanos. No tempo de Fulgencio Batista, Cuba exportava açúcar, rum e charutos. Hoje Cuba tem uma pauta de exportações bem mais diversificada (http://www.brasilexport.gov.br/wp-content/uploads/publicacoes/indicadoresEconomicos/INDCuba.pdf). Além disto, Cuba também exporta médicos e profissionais altamente qualificados para atuar em países latino-americanos e africanos, inclusive em situações de risco e durante crises humanitárias.

Ao avaliar textos constitucionais, especialmente se os mesmos forem latino-americanos, é preciso tomar muito cuidado. Comparações abstratas, que levem em conta apenas a literalidade dos textos, podem conduzir a conclusões equivocadas. A nossa CF/88, por exemplo, contém a seguinte garantia:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

…………………………………………………………………………………………………………….

IV – salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;”

Este texto é tão belo quanto o da Constituição Cubana de 1940. Entre a realidade e a declaração do princípio constitucional há, porém, um abismo. O salário mínimo em vigor é apenas R$ 788,00 (setecentos e oitenta e oito reais), uma quantia notoriamente incapaz de atender às necessidades básicas do trabalhador e de sua família. Se levarmos em conta a realidade, podemos até dizer que na atualidade os pobres trabalhadores brasileiros sem qualificação e mal-empregados (a maioria, inclusive no Estado de São Paulo) estão realizando muito trabalho gratuito e não remunerado em benefício de seus empregadores. O capitalismo brasileiro é um socialismo cubano pelo avesso.

Os governos petistas parecem não se importar muito com o abismo entre a CF/88 e a realidade. Tanto que Lula e Dilma abandonaram a bandeira histórica do PT de garantir aos brasileiros o salário mínimo do Dieese, que deveria ser R$ 2.975,00 (dois mil novecentos e setenta e cinco reais) desde 2014 (http://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html). Portanto, podemos concluir que no atual estágio constitucional brasileiro, o cumprimento do disposto no art. 7º, IV, da CF/88 tem sido objeto de uma hipocrisia descarada.

 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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