Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Enormes necessidades assistenciais

Por uma Conferência Nacional sobre  “Perspectivas estratégicas para a força de trabalho no SUS”

O programa “Mais médicos”, como sabemos, está focado essencialmente na garantia de oferta de profissionais para a Atenção Básica onde efetivamente não há médicos. Esta importante iniciativa, entretanto, não deve fazer crer que as necessidades assistenciais estejam resolvidas ou equacionadas nos demais níveis da Atenção. É crítica a situação, por exemplo, da Atenção Hospitalar em todo o Brasil. A Rede Cegonha, grande esperança na Atenção Materno-Infantil, está fortemente condicionada e limitada pela baixa disponibilidade de profissionais em diversas regiões.

De fato, diversas áreas da medicina estão ameaçadas de estrangulamentos atuais ou num futuro próximo e são capazes de levar a rede ao colapso em diversos estados. Esta falta se exprime sobretudo nas especialidades gerais: cirurgia geral, clínica médica, pediatria, ginecologia e obstetrícia e mesmo terapia intensiva. Por vezes ela não é percebida nas capitais e grandes cidades, mas já o é em cidades importantes que por isto encaminham os seus pacientes para grandes centros.

Agrava a situação o fato de que o “mercado” paga mais a algumas subespecialidades, sobretudo àquelas que incorporaram grande aparato tecnológico.

A oferta de serviços, em algumas cidades ou estados, poderá colapsar em áreas cruciais num horizonte de 5 a 10 anos (e talvez menos) em especialidades gerais que já não atraem, de longa data, as preferências dos profissionais. Não tem sido fácil substituir, por exemplo, os cirurgiões gerais da “velha guarda” de grandes hospitais de urgência, que começam a se aposentar, pois há poucos cirurgiões gerais disponíveis hoje. Estes profissionais generalistas salvaram e estão salvando a vida de milhares de pessoas nas nossas urgências e há poucos substitutos…

O “mercado”, portanto nos conduziu até aqui a uma extrema precariedade na oferta de certos profissionais chave e continua conduzindo o barco rumo a um abismo que poderá produzir situações há muito tempo não vistas: o colapso da assistência onde é crucial. A solução pelo mercado parece difícil, pois a remuneração salarial, mesmo que venha a ser aumentada, dificilmente compensará o ganho pressentido nas subespecialidades.

É evidente que situações semelhantes a estas já foram vividas por outros países onde os médicos locais, já de algum tempo, não se interessam por certos trabalhos, como acontece na Europa e nos EUA. A crise de oferta de profissionais é, pois, uma realidade econômica que precisa ser alterada por alguma iniciativa política e estratégica global de grande peso e longo prazo, já que o que se constata é que quanto mais avançado o país e quanto maiores os níveis de cidadania, mais impositiva a incorporação de médicos. Uma realidade incontornável.

O Brasil mudou e está mudando. As necessidades assistenciais são gigantescas e tremendas e tendem a crescer com o envelhecimento populacional. Ou aderimos plenamente à condição de país desenvolvido que começamos a ser, respondendo às necessidades assistenciais que batem à nossa porta e as que já vemos no horizonte, ou viveremos muito em breve um caos de difícil remédio, pior em algumas regiões do que em outras.

Há poucas soluções sobre a mesa, elas não são excludentes e podem ser compostas para dar alcance a uma política global. O aumento de vagas em escolas médicas, a vinda de profissionais estrangeiros, o aumento do número de residências médicas públicas em especialidades gerais, a adoção de uma carreira médica, o fim da precarização de contratos de trabalho ou a melhoria salarial devem ser analisados de maneira desapaixonada e objetiva, que permitam o estabelecimento do seu impacto para a solução dos problemas postos.

É hora de abrirmos um debate nacional sobre o tema, com a participação de todos os interlocutores para gerar novos consensos e continuar avançando na construção do SUS.

Uma Conferência Nacional sobre  “Perspectivas estratégicas para a força de trabalho no SUS” seria certamente muito bem vinda. As Conferências de Saúde podem ser convocadas extraordinariamente e podem produzir a oportunidade da discussão abrangente sobre o problema em toda a sua magnitude, soldar consensos e alinhar vontades. Ela fortalecerá o SUS, o processo democrático e poderá evitar o grande iceberg assistencial que nos aguarda.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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