Jornalismo em estado de comunicação: é essa nossa agenda

 

O assunto chega em forma de polêmica e, como tal, provoca muito incômodo e praticamente nenhum esclarecimento: o diploma deve ser obrigatório para o exercício do jornalismo? Penso que o incômodo vem principalmente do fato de que este assunto chega com o potencial – para não dizer propósito – de desviar a atenção do outro assunto que realmente interessa: a liberdade de comunicação. Essa é a agenda que nos interessa, porque é mais ampla e porque abre o debate do jornalismo em relação direta com a sociedade, questionando sua responsabilidade na formação democrática de uma cidadania ativa. E isso, claro, tem impacto no reconhecimento profissional. Proponho fazer aqui uma breve reflexão sobre os desdobramentos que percebo nos dois enfoques.

Sobre a questão do diploma, não é vão o exercício de pensar a quem interessa a discussão. O assunto foi pautado pelos donos de jornais. Eles estabeleceram a agenda e nos colocaram em posição reativa, em uma polêmica, estéril por definição, sobre se é preciso exigir diploma ou não para o exercício da profissão. Essa pauta não é nossa, embora nos afete diretamente, na medida em que cria problemas de desvalorização profissional. Mas não é isso que queremos discutir, ou não deveríamos discutir, porque nos interessa saber qual é o papel do jornalista na sociedade.

Outro problema é que a polêmica se reveste de um viés corporativo. Soa como reserva de mercado. Nós jornalistas queremos ter um pouco mais de controle sobre o processo de contratação das grandes empresas de mídia. Os empresários querem fazer isso do jeito deles. Reivindicam, em sua defesa, o direito de liberdade de expressão: pois ninguém pode impedir o acesso aos meios de comunicação e o diploma poderia cercear essa liberdade. Sabemos que os argumentos são falaciosos, mas eles não só pautaram o assunto como deram o enquadramento.

Se insistirmos no embate entre diploma e liberdade de expressão, podemos desmontar o argumento dos empresários com alguma facilidade: sem nenhuma garantia legal de acesso do cidadão comum aos meios de comunicação, a ameaça à liberdade de expressão vem justamente das empresas, quando funcionam em ambiente desregulamentado. Nessa situação, o que os proprietários da grande mídia querem é manter o controle de quem entra e quem sai e, mais ainda, estabelecer os próprios critérios da formação do profissional pela empresa. Nessa situação de total desregulamentação, a ameaça da liberdade de expressão não é o diploma, é o dono da empresa.

Mas essa é também uma polêmica sem fim. Pois, para discutir quem ameaça a liberdade de expressão, temos de discutir o que é liberdade de expressão e quais são as condições para que ela seja, de fato, um direito democratizado. Essa discussão também não está sendo feita. Pelo menos não nos espaços dominados pelas grandes empresas de comunicação.

O problema da desvalorização é anterior ao diploma. O diploma é uma questão que atinge uma corporação e prioriza a discussão do jornalismo pela ótica das majors. No entanto, há muito tempo que a discussão da comunicação e do jornalismo ultrapassa essa fronteira. É fundamental discutir a organização das empresas de mídia. Mas é importante que a discussão seja feita sem perder de vista questões organizadoras, como direito à informação, o direito à comunicação e a universalização da liberdade de expressão. Portanto é necessário pensar também no papel das mídias comunitárias, nos canais alternativos de comunicação, no direito de antena, na regulamentação do setor, nos processos e modelos de comunicação pública. Bem antes da popularização das inovações da tecnologia da informação, essas questões, que priorizam o jornalismo pela ótica da sociedade e da política, já estavam em pauta pelos movimentos sociais.

A agenda da democratização do direito à comunicação é antiga, tem uma forte ênfase nos anos 70 do século 20 e tem uma inflexão na década seguinte com a hegemonia do neoliberalismo. Esse movimento, embora “vencido”, não é eliminado e mantém-se vivo, tanto é que ganha novo fôlego neste início de século a partir das inovações tecnológicas que apresentam novas possibilidades de comunicação. A reivindicação desse movimento afeta as grandes empresas porque não há liberdade de comunicação quando há concentração de propriedade. Mas vai além, porque requer discutir como estimular e fortalecer mecanismos alternativos de comunicação e a defesa da pluralidade de vozes no espaço público. Isso exige pensar o papel do Estado e sua relação com a sociedade civil. As simplificações do modelo liberal, que insistem nas dicotomias, não dão respostas suficientes.

Nesse contexto de interesse crescente pelas questões da comunicação, ampliam-se, na mesma proporção, as críticas ao jornalismo, o que é muito bom. Historicamente nós, jornalistas, sempre fomos alvo de críticas e questionamentos, sobretudo éticos. Mas há tempos não havia tanta crítica.

Podemos interpretar isso como uma voz da sociedade, que pede jornalismo em estado de comunicação, gerando um importante impasse. Seguiremos em diálogo com essa sociedade ou nos fecharemos em questões técnicas e corporativas? Essa opção vai definir a importância de se ter ou não profissionais que se dedicam ao estudo e pesquisa do jornalismo. Quanto mais nos dedicarmos a esses estudos, mais ganharemos com isso. Entender o processo de comunicação e o papel do jornalismo nesse processo de transformação social é talvez a grande questão que está posta para todos nós.

A reivindicação pela democratização do direito à comunicação é um assunto fundamental para os impasses de crise de representação pela qual passam nossas democracias liberais. Esse assunto é nosso. Ele nos afeta diretamente e tem reflexos para o futuro da profissão e da democracia. 

 

Redação

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