O Gênio do livre-arbítrio no crime e no justo – do “caos interno” ao “desejo ordenado”

            Existe uma trilha de conduta individual, na qual anda o homem-médio, e se traça do domínio tirânico (dita ordem) rumo ao desconhecido (dito caos). E de maneira a se facilitar a compreensão da analogia, sugere-se a observação do símbolo de união entre Yin-Yang conforme ilustra o taoísmo, paralelo ao que se expõe – não sendo o fim deste raciocínio a explicação em si destas forças opostas, sugere-se ainda o estudo ao menos en passant do símbolo como complemento.

 

 

            O limite ideal do alcance dessa linha de conduta e destino pretendido ao fim dela é no que se pauta o potencial de sabedoria de quem detém o poder de escolha. Se por um lado deve se saber, ao menos minimamente, qual será o reflexo causal das condutas a serem empreendidas na escuridão do futuro desconhecido, por outro deve se estar claro que o ponto de partida toma base dentro do absoluto já conhecido – importante isso estar definido desde o momento do traslado da conduta ordenada para as águas turvas, mais importante ainda é a motivação que não deve ser a de consumar a conduta no caos, mas de se exauri-la na ordem. Isso definitivamente nunca será branco no preto – e com a ajuda da abstração no símbolo taoísta, os dois pontos controvertidos são justamente estas esferas menores em contraste com seus domínios predominantes, no caso a esfera branca no domínio caótico e a esfera negra no domínio ordenada. O que se ilustra é nada mais nada menos que: a esfera negra “menor” ser a representação do infinito, que, por ter como início a volição interna no subjetivo, seria algo eternamente insabido, seria este o gênio que todos nós carregamos em nossas “garrafas” (almas) e capaz de nos conceder desejos: em suma, isso é dizer ser este “gênio” interior forte na medida em que se exerce o livre arbítrio; é dizer que esse gênio se instrumentaliza na vontade de potência dentro da gama infinita do livre-arbítrio, sendo precisamente o infinito do arbítrio o que há de obscuramente impreciso e “negro”.

 

 

            Há como precisar este impreciso, revelado na vontade de potência, naquilo definido por Nietzsche como Justiça. Segundo ele, na origem, a justiça sempre se fundou no pressuposto de que evitar o inconsequente dano mútuo é a premissa mais razoável para se garantir a paz necessária na construção da sociedade civilizada e ordenada (vive-se em sociedade porque se vive antes ordenadamente do que caoticamente). Indo adiante na ideia, ele explica que isso se dá em cima de outro pressuposto: o de que todos possuem “mais ou menos” a mesma “vontade de potência”, sendo possível traduzir essa vontade de potência como poder volitivo e inerente dentro de cada um e o aspecto do “mais ou menos” o resultado da soma das variedades de pessoas fortes e fracas das quais se compõe a sociedade (hodiernamente plasmado no termo jurídico do “homem médio”). Então é verdade dizer, ao menos em caráter dinâmico, que conquistamos uma medida de justiça mais favorável na proporção em que exercemos com brio nossa vontade de potência na construção daquilo entendido como poder. Uma força interna adequada e ligeiramente superior ao do homem médio seria o bastante para elevar o indivíduo das trevas infinitas de seu livre-arbítrio para a concretização primorosa de seu desejo interno, claramente não sem antes disso ter de percorrer o caos interno (esfera negra menor) para chegar ao desejo ordenado dentro do caos externo (esfera branca menor). Assim, se queremos evitar o dano inconsequente de qualquer terceiro baseado na lei, temos que nos fazer, através da vontade de potência, legítimos destinatários dela (da lei) enquanto “homens médios” e isso no nível concreto, para que o exercício da nossa (co)existência transborde no mundo da aparência; daí ser a vontade de potência o embrião do senso de justiça. Se foi uma quantia mais ou menos igual de vontade de potência, dentro de todos nós, a premissa maior para a construção da justiça, e por conseguinte da sociedade, é de rigor que nos façamos destinatários dessa justiça através de nossa vontade. Vontade de poder e presunção de inerência desse poder a cada um de nós: mais fácil pensar que podemos gerenciar isso do que aceitar a impotência, mais fácil crer nisso do que na legalidade nua e crua: porque no fim de todo julgamento, a Lei é sempre mais justa para quem detém o monopólio do poder interno; não é que a Justiça é cega, é a Lei que pende sua espada para o lado mais fraco que se deixou ser mais fraco – e só arde os olhos de quem isto lê se são estes os olhos de quem desconhece o índice de Pareto, este índice que já constatou o inevitável de, em toda sociedade, existirem alguns mais dispostos (em vontade de potência) do que outros a buscar a felicidade na completude material, daí a interpretação necessariamente perigosa de que a Lei é sempre mais injusta para os mais fracos, quando em verdade é natural existirem indivíduos que são felizes sendo material e espiritualmente mais fracos, o que, por outro lado, também não nos permite crer ser essa lógica a fórmula infalível para a ordem perene das sociedades, se por exemplo sobrevém tirania exacerbada de quem detém o monopólio do governo (é quando os “gênios” de quem atingem determinado patamar de poder tornam injustas as Leis em face do “homem médio”, e a hierarquia social torna-se insustentável contra a sociedade, não mais em seu favor).

 

 

            E isto é o que se há a dizer sobre a vontade de potência ser “justa” no caminho de conduta, desde o obscuro infinito do livre-arbítrio, passando pelo domínio ordenado da lei, até o caótico futuro incerto que se revela na medida em que se exerce com proeza o “gênio” interior até o desejo ordenado.

 

 

            E acredito também serem todas espécies de artes pautadas nessa dinâmica (obviamente cada qual dentro de seu ramo específico), sendo possível medir o nível de excelência do praticante em (i) o quanto ele excede a média normal dos demais praticantes na distância percorrida da ordem para o caos e (ii) a porção de ordem construída (note-se que quando se parte do caos para a ordem tem-se destruição, sendo o contrário a construção dentro de termos adequados de significação, já que caos por si leva o algo ao nada e a ordem é levar o nada para algo útil e bom) dentro do caos quando da efetiva ligação entre ponto ordenado com o ponto caótico. Não se faz matematicamente essa diferenciação das águas claras das negras nesse nado do artista rumo ao desconhecido, justamente por se tratar de valoração de conduta humana em cima de aspectos culturais circunscritos a específica época atrelados ao universal e absolutamente bom. A fórmula aqui é outra e não é escalável em números na ponta do lápis, justamente por ser rica a vastidão de possibilidades nas artes e nas condutas na esfera do livre arbítrio – esse conjunto de possibilidade tende ao infinito e tem seus fatores influentes numa constante flutuação, fazendo impraticável a previsão do resultado final da conduta, sendo essa, ao menos em partes, a explicação para as tentativas frustradas de “algoritimação” do crime em nível individual (muito embora ser possível mapear o índice de criminalidade por área em cima de “big data”, é intransponível essa barreira na pessoa do “potencial” delinquente na criação de máquinas de previsão do crime).

 

            Sim, pois o crime nada mais é do que a decisão do nado ao desconhecido em busca da vantagem indevida, já que emerge-se “ordem” na esfera individual do perpetrador enquanto que na projeção maior e coletiva-social a conduta permanece estancada em solo caótico, reverberando seu efeito destrutivo nos demais (sendo as pessoas mais diretamente afetadas as vítimas imediatas do delito).     

            Pode-se indagar o porquê da apologia da excelência da conduta artística com esse outro tipo de conduta que é a criminosa.

            Pois bem explicado fica se se considera a arte como ofício medido objetivamente nesse grau do que é belo dentro da margem do produto final logrado. Não se medem os efeitos deletérios do produto da arte em demais indivíduos para fins de valoração de sua perfeição, mas tão somente no produto em si. 

 

            O crime, por outro lado, para se dar como existente, embora paute-se nessa conduta injusta do delinquente para com os demais no convívio social (e não na medida de vantagens obtidas pelo criminoso), não deixa de ser conduta, conduta esta que se resultante das qualidades inerentes do praticante pode também ser objetivamente lida como potencial artístico. Então é verdade dizer que mesmo uma conduta genialmente criminosa nesta reunião de qualidades técnicas do perpetrante, independente de sua hendiondez e reprovabilidade social, poderá ter, ironicamente um “acerto” objetivo nas esferas de conhecimento objetivo da ordem para o caos. Todavia, é elevando essas condutas para a esfera coletiva que demonstram seus efeitos maléficos, pois que contaminam de tal maneira maligna a ordem social com caos (é uma conduta que parte da ordem rumo ao caos, e que, se analisada da perspectiva moral na intenção consciente do “artista”, parte do caos para só depois percorrer um caminho ordenado rumo ao caos). Daí ver-se a glamourização no mundo novelesco-fictício do estelionatário, do “serial killer”, e de outros tantos arquétipos sombrios de anti-heróis, porque existe essa trajetória perigosamente carismática que nos hipnotiza de tal maneira a ponto nos fazer ignorar seu ponto de partida maquiavélico-vil. Tal personagem torna-se inquietantemente uma alegoria atraente por basear-se nessa atrelação entre conduta objetivamente bela mas trágica no campo Moral, convidando o telespectador para um questionamento: seria esse personagem antes um herói do que um criminoso ou antes um criminoso herói de si mesmo?

 

            A composição harmônica-maniqueísta dessas narrativas é justamente o que tornam tão celebradas algumas obras românticas, e é o que tende a eternizar a maioria delas, meio que tornando-se um convite místico para o apreciador experimentar uma viagem interior, essa viagem de se ver e se projetar dentro da história e na pele das personas na teia de interação do “plot”. Essa ida e volta, do hiperreal da personagem ao real concreto do telespectador é o que há de “mágico” e transformador; a obra fictícia é a diluição substancial-verossímil, é uma história “possível”, que, quando saboreada deste lado do mundo concreto nos convida para reflexões acerca da vida e das complexidades mundanas de se sofrer e se deleitar enquanto se existe como humano.

 

 

 

 

Redação

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