Se aprovado, marco temporal exigirá dos indígenas uma prova impossível, diz Raquel Dodge ao GGN

Suspenso no STF, julgamento do marco temporal terá repercussão sobre cerca de 800 povos indígenas no País, estima Dodge

Brasília – A procuradora-geral da República, Raquel Dodge concede entrevista após reunião com os ministros Raul Jungmann, Torquato Jardim e Sérgio Etchegoyen, sobre a segurança no RJ (Wilson Dias/Agência Brasil)

Uma das principais autoridades no País em questões indígenas, a subprocuradora da República Raquel Dodge falou com exclusividade ao jornalista Luis Nassif, na TVGGN, sobre o julgamento do marco temporal pelo Supremo Tribunal Federal.

Retomado nesta semana, o julgamento foi suspenso por um pedido de vistas do ministro André Mendonça. A proposta visa obrigar indígenas a comprovar que estavam em posse das terras que ocupam desde outubro de 1988, quando a Constituição Cidadão foi promulgada.

Se aprovado, explicou Dodge, o marco temporal “exigirá dos indígenas uma prova impossível”.

“No Direito, a gente chama de prova diabólica, aquela impossível de ser feita. Como é que os indígenas vão provar, sob os moldes não-indígenas, que estavam na posse daquela terra no dia 5 de outubro? Será que nós exigiremos testemunhas de cartório?”

Para Dodge, a proposta é uma “inversão” de valores que “leva a um retrocesso”, pois a própria Constituição de 1988 garantiu os direitos dos povos originários sobre as terras que ocupam, e estipulou prazo para a União cumprir o dever de “dar segurança jurídica e dizer para os indígenas quais as terras são deles”.

Autora de um dos pareceres que estão em discussão no STF, Dodge ainda apontou que o julgamento terá repercussão geral e poderá atingir 800 povos indígenas em todo o País.

Confira, abaixo, os principais pontos da entrevista ao jornalista Luis Nassif.

Luís Nassif: O Supremo está em julgamento sobre o marco temporal. Como é que está correndo essa questão?

Raquel Dodge: A questão do marco temporal foi pautada no passado, houve o voto do relator, e houve um pedido de vista. E agora haverá um julgamento simultâneo, de um recurso extraordinário e de uma ação civil originária, ambas do mesmo relator, que é o ministro Edson Fachin.

Eu tive a oportunidade de me manifestar nos autos do recurso extraordinário, que são essas ações judiciais que correram em paralelo, e a uma certa altura, houve a junção delas para um julgamento conjunto. E elas dizem respeito a esse conflito que se estabeleceu quando o estado de Santa Catarina criou o parque nacional, com o objetivo de proteger uma espécie vegetal, que ocorre em determinada região de Santa Catarina, chamada Canela Sassafrás.

Temos o Parque Estadual Sassafraz, uma reserva biológica, e a uma certa altura, o Ministério da Justiça declarou uma parte coincidente desse território como terra indígena pertencente a três povos indígenas distintos, que por razões diversas acabaram ocupando essa área. O povo Cangalha, o povo Xokleng e o povo Guarani.

A disputa que se estabelece nesta Corte é exatamente sobre a precedência dos direitos indígenas sobre esse território, ou a possibilidade do governo estadual declarar essa terra como reserva biológica, com o objetivo de proteger uma determinada planta, que está realmente ameaçada de extinção, e se essas duas proteções podem conviver.

Quase a totalidade dos conflitos que se estabelece com os povos indígenas é em razão de propriedades privadas que vêm sendo utilizadas para agricultura, para pecuária, ou outro tipo de atividade econômica, com o interesse dos povos indígenas em preservar a integridade do seu território.

“O estado de Santa Catarina, no interesse de preservar essa planta, instituiu uma reserva biológica sobre uma terra indígena. E os indígenas dizem: ‘não, essa terra é nossa. E não há, por parte dos indígenas, nenhuma intenção de não preservar essa planta ameaçada de extinção.”

Raquel Dodge

O Supremo Tribunal Federal deu a este julgamento, no recurso extraordinário, uma consequência jurídica relevante, que ele chamou de tese 1031, em que se vai examinar a repercussão geral de uma discussão sobre marco temporal.

Então nós vamos ter que enfrentar esse problema, com a possibilidade desta decisão estender-se para várias outras terras indígenas. No meu parecer, faço uma referência a quase 800 terras indígenas que podem sofrer os efeitos dessa decisão.

Luís Nassif: O marco temporal considera apenas a terra que indígenas habitavam na Constituinte e depois? Eles são muito nômades?

Raquel Dodge: A primeira observação importante a se fazer é que nós, não indígenas, generalizamos muito. São inúmeros povos indígenas no Brasil com culturas diferentes, organização social diferente, religião diferente, e que falam línguas diferentes entre si. Então, entre si, eles são muito diferentes. Então uns perambulam, outros são agricultores.

Esse é um outro problema do marco temporal: a ideia de homogeneizar uma solução, tentar fazer caber naquele figurino povos indígenas muito diferentes entre si. É uma tendência colonizadora.

Eu gostaria de relembrar algumas questões muito importantes que compõem a nossa história no Brasil e a formação desse país, e que estão diretamente relacionadas com essa questão do marco temporal.

A primeira referência que gostaria de fazer é sobre uma prática que foi inaugurada em 1680 por um alvará régio, onde a Coroa Portuguesa dizia que aqueles que viessem para o território brasileiro podiam ocupar todas as terras, menos aquelas onde estavam os povos indígenas.

Cem anos depois, em 1755, veio uma lei em que se confirma este mesmo alvará. Em 1850, uma lei de terras no Brasil estabelece o mesmo princípio.

Em seguida, em 1928, aqui um pouquinho antes, talvez por causa do efeito da República, a Lei de Terras dos Índios, que é o decreto 5.484 de 1928, reafirma o mesmo princípio.

A matéria é tratada, portanto, no estado brasileiro e no ordenamento jurídico vigente no Brasil, sob o instituto que foi descrito por um grande jurista chamado João Mendes, em que ele chamou isso de “indigenato”.

“O indigenato é o direito originário dos povos indígenas às terras que ocupam”.

Raquel Dodge

A Constituição Brasileira de 1988, que nós estamos discutindo neste recurso extraordinário, diz no artigo 231 que os indígenas têm direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. E o efeito dessa ocupação é garantir posse permanente.

Os que defendem o marco temporal dizem: os índios têm que comprovar posse no dia 5 de outubro de 1988, data em que entrou em vigor a atual Constituição, para dizer que têm direitos originários sobre as terras.

É a exata inversão do que a lei brasileira diz, desde 1680, neste alvará régio. A ideia do indigenato é exatamente oposta a ideia da ocupação.

Os índios têm direitos originais. Os que ocupam têm que provar a razão dessa ocupação legítima: ou eles já compraram ou tiveram o usucapião ocupando a terra por um determinado número de anos, ou eles adquiriram por herança ou receberam por doação.

Então quem ocupa uma terra no Brasil sempre teve, desde o alvará régio de 1680, que provar que a ocupa legitimamente.

Então, os que defendem o marco temporal estão dizendo: me prove como foi que você adquiriu a sua posse. Mas a Constituição diz: a posse é efeito jurídico da ocupação.

Se o marco temporal for aprovado agora, ele exigirá dos indígenas uma prova impossível. No Direito, a gente chama de prova diabólica, aquela impossível de ser feita. Como é que os indígenas vão provar, sob os moldes não-indígenas, que estavam na posse daquela terra no dia 5 de outubro? Será que nós exigiremos testemunhas de cartório?

Que inversão é essa que leva a um retrocesso? E mais: a gente tem que lembrar que essa Constituição excelente que nós temos, de 1988, marcou um prazo de 5 anos para a União declarar as terras indígenas; está no artigo 67. Ele diz: no prazo de cinco anos a União tem que cumprir o seu dever, que é dar segurança jurídica e dizer para os indígenas quais as terras são deles, segundo os critérios que estão em vigor desde 1680 e nunca foram modificados.

Nós temos uma ideia de que são povos indígenas apenas os povos amazônicos. Mas há uma enorme quantidade de povos indígenas em todos os biomas brasileiros, inclusive os conflitos mais agudos se estabelecem fora da Amazônia, no sul do Brasil, em toda região sul e no Mato Grosso do Sul, no centro-oeste, em São Paulo e todo o nordeste brasileiro.

Esse é o aspecto interessante da Constituição de 1988, porque ela rompe com a ideia de assimilação e integração e de reserva indígena. Reserva, naquela política (não na lei), os atos administrativos destinados a realizar política pública, eles confinavam os índios em territórios que eram chamados de reserva, com a ideia de controlá-los, vigiá-los, de assimilá-los à comunidade nacional (colonizadores).

“A Constituição de 88 reconhece o direito à terra dos povos indígenas, mas também reconhece a língua, a cultura, a religião, a organização social desses povos. Ela estabelece os direitos fundamentais para os povos indígenas”.

Raquel Dodge

Assista a entrevista completa:

*Isadora Costa é estagiária em jornalismo sob supervisão de Cintia Alves

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