Migalhas sobre as ilusões e insanidades evangélicas

No ano de 2007 a prisão de dois pastores evangélicos brasileiros no exterior gerou muita polêmica. Alguns não entendem como e porque os mesmos abusaram tanto de seus fiéis e sempre ficaram impunes dentro do Brasil. Outros criticaram o excesso de rigor das autoridades norte-americanas. A única explicação que me ocorre para esta percepção distorcida da realidade é que a história deles (e de outros vigaristas travestidos de religiosos) é absolutamente compatível com as tradições brasileiras.

Em 1500 os portugueses cá chegaram e rapidamente abusaram dos índios. Os invasores se apropriaram da terra e das índias e privaram os indígenas de sua língua, crença e cultura. Mas eles diziam que eram “colonos” e não invasores.

Alguns séculos depois os descendentes dos primeiros invasores (colonizadores como nos dizem os livros de História) para cá trouxeram os africanos, que como escravos e, portanto, coisas, sofreram abusos tão grandes ou maiores que os legítimos possuidores da terra. O mundo girou e cá estamos nós na atualidade.

Somos todos descendentes de índios, negros e portugueses. Ao longo dos séculos fomos também misturados aos netos e bisnetos de italianos, japoneses, alemães, polacos, etc, que aqui chegaram a partir do final do século XIX e rapidamente se integraram ao patrimônio genético nacional. Racialmente somos quase integrados. Socialmente vivemos numa rígida estratificação social: de um lado os ricos, que controlam o Estado; de outro os pobres, que suportam o peso das instituições públicas e delas pouco ou nada auferem.

Em 2005 publiquei no CMI as seguintes observações:-

“Recentemente num destes programas evangélicos televisivos, um destes que prometem a salvação, libertação, descarrego ou coisa que o valha, um dos membros da platéia se levantou e se disse curado. Atrás do infeliz, que foi imediatamente capturado pelas lentes das câmeras havidas de propaganda fácil e possivelmente enganosa, vinha alguém carregando uma cadeira de rodas. O tal curado, que seria paralítico, paraplégico ou vítima de poliomielite, andou claudicante em direção ao púlpito sob efusivos aplausos da platéia.

Ver a cena tão comovente, providencial e provavelmente bem ensaiada, sugeriu-me algumas questões interessantes. Coisas estúpidas como, e se o dito curado estivesse apenas representando, não estaria ocorrendo propaganda enganosa ou estelionato.

A primeira hipótese não descartei de plano, pois se a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos espectadores de programas religiosos é duvidosa não é tão induvidosa sua não aplicação à relação entre o canal de TV e os telespectadores. As redes de televisão prestam um serviço e como tal podem muito bem estar sujeitas às regras do CDC.

A hipótese de estelionato também não descartei imediatamente. Meus conhecimentos de Direito Penal são limitados, mesmo assim não posso deixar de notar que estes programas evangélicos visam indiretamente a arrecadação de fundos para as igrejas que os patrocinam.

O episódio mencionado no início pode não passar de uma encenação. Isto pode ser facilmente provado mediante uma Perícia Médica no indivíduo que abandonou a cadeira de rodas e andou ou através da análise de seu histórico médico anterior e posterior ao milagre. Comprovada a fraude somos obrigados a concluir, sem dúvida alguma, que as pessoas foram induzidas a colaborar com a igreja que patrocina o programa mediante um ardil. Se os elementos do estelionato, quais sejam, vantagem ilícita e fraude ocorreram ou podem ter ocorrido, porque o Ministério Público do Estado de São Paulo não fez nada. Mistério!?!

O MP paulista declarou guerra a baixaria na TV. O João Cleber, cujo programa não assistia nem assistiria, que o diga. Todavia, se considerarmos os abusos que podem estar sendo cometidos nos saravas evangélicos televisados, que vão ao ar todas as noites, sou obrigado a concluir que o João Cleber pode ter sido vítima de uma injustiça. Afinal, porque seu programa, que continha apelações, aberrações e fraudes com conotação sexual, não pode ir ao ar se a população de baixa renda pode estar sendo vítima de engodos religiosos igualmente apelativos e fraudulentos que visam indiretamente arrecadação de fundos? “

O comentário acabou sendo publicado no Monitor das Fraudes: http://www.fraudes.org/clipread.asp?BckSt=1&CdClip=92. Mas nada foi feito. Os pastores evangélicos continuam enriquecendo e se apoderando de parcelas cada vez maiores do poder público. A bancada do templo apoiou o golpe de 2016 e agora quer impor sua moral ao conjunto da população brasileira através de Projetos de Lei que revogam a natureza laica e pluralista da Constituição Federal de 1988.

Os acontecimentos recentes envolvendo  personalidades do mundo evangélico (depoimento de Malafia na PF, prisão de Eduardo Cunha, etc…) confirmaram minhas observações. É possível responsabilizar os desvios e desmandos cometidos por quem explora a fé para enriquecer de forma ilícita. Todavia, nossa trágica tradição parece não permitir que a legislação seja rigorosamente aplicada contra alguns cidadãos, ou como diria um célebre autor inglês, contra os mais iguais.

Eduardo Cunha foi preso somente depois de ter tido a oportunidade de derrubar Dilma Rousseff. Malafaia continua solto fazendo o que sabe fazer melhor; lucrar disseminando o ódio ao PT e aos petistas.

Todos os anos nós vemos pastores e bispos evangélicos comandando marchas para Jesus. Mas eu nunca vi um único pastor organizar um protesto porque seus fiéis ficaram doentes ou foram demitidos injustamente de uma empresa. Eles sabem que é mais lucrativo ensinar o conformismo aos fiéis comuns e realizar cultos especiais dedicados aos empresários.

Sou advogado há 25 anos. Certa feita, ao fim de uma Reclamação Trabalhista o cliente me pediu para receber dois cheques: um referente à parte dele (90% do total líquido) e outro (10% do líquido) que ele entregaria ao pastor da igreja. Tentei convencer o tal a não dar nada para a igreja, mas ele afirmou resolutamente que isto não seria honesto. Fiquei irritado e fiz um cheque só. “O que você faz da porta para fora do meu escritório não interessa, peque seu cheque, assine o recibo e passe bem.” Acreditem…  alguns pastores já são ousados o suficiente para cobrar o dízimo sobre as parcelas recebidas pelos fiéis nos processos que eles movem.

O Brasil tem uma constituição escrita. Entretanto, alguns estão acima dela, outros nem são tratados como titulares dos direitos assegurados pela mesma. O abuso que alguns (os ricos e seus proxenetas) cometem a outros (os pobres) é uma instituição antiga e se perpetuou após o fim da Colônia, do Império e da primeira, segunda e terceira Repúblicas.

Os donos do Estado (dentre os quais destacamos todos que tem condições familiares de passar em concursos para juiz, promotor e procurador ou cabedal financeiro para concorrer aos cargos eletivos ou podem se dar ao luxo de financiar campanhas eleitorais) desfrutam privilégios ilegais. Estão acima da Lei. Cometem crimes e ficam impunes.

Mesmo quando cometem abusos, eles se dizem vítimas e o Estado os indeniza. A mídia e a população reconhecem esta distinção de certa maneira. Que estranhamento causou a prisão domiciliar do Juiz que recebeu propina para superfaturar obras do TRT/SP? Quão severa foi a punição dada aos mocinhos bem nascidos que queimaram o índio Galdino? Quanta indignação despertou a apreensão das montanhas de dinheiro com a filha do senador Sarney e com um deputado evangélico? Alguém ameaçou responsabilizar o PGR porque o MPF não é capaz tomar qualquer providência no caso do helicóptero com 450 Kg de cocaína? O que costumamos fazer diante da omissão das autoridades? Nada.

Ao lado e abaixo dos privilegiados estão os brasileiros que tem condições de invocar a proteção Estatal, que podem pagar advogados, custas processuais, etc. Os varões da média tradicional, contudo, tem horror aos mais pobres e tentam imitar os brasileiros ricos. Eles se encolhem para desfrutar alguns direitos. Em 2015 a classe média começou a ir às ruas para derrubar um governo eleito por pobres e que governava levando em conta os interesses dos seus eleitores. Desde que não afrontem os privilégios dos donos do Estado, os medíocres cidadãos de classe média podem viver em paz.

Sim. A classe média vive em paz. Entretanto, está sempre intranquila em razão da percepção de que há algo de muito errado neste país que paradoxalmente existe porque se desmancha a olhos vistos a cada chacina dentro e fora dos presídios. O medo da queda na pobreza é constante. A ascensão da classe C durante os governos Lula e Dilma a deixou a classe média horrorizada.

Na base da pirâmide social estão os menos iguais. São os pobres, desvalidos, cortiçados e favelados que não tem privilégios porque suas contas bancárias são magras e não têm direitos porque raramente tem acesso ao Estado. A soberania popular deles não tem qualquer valor jurídico, como ficou provado em 2016 (ano em que centenas de deputados perseguidos pela justiça e dezenas de senadores mafiosos deram um golpe de estado com ajuda do STF).

Dentre os brasileiros pobres, muitos com justiça encaram o Estado como o inimigo que cobra tributos indiretos por serviços que não fornece em razão dos privilégios que distribui aos mais iguais (políticos tucanos eternamente impunes, juízes e promotores que ganham salários acima do teto, etc…). A única face do Estado que milhões de brasileiros conhecem é a do policial fardado que abusa da violência e fica impune ou do servidor público carrancudo, dentre os quais se destacam alguns policiais, médicos e servidores do judiciário, que atendem mal as pessoas pobres porque são oriundos das classes mais favorecidas ou porque renegam a origem humilde em razão do recalque ou do orgulho advindo da nova condição.

“O senhor sabe com quem está falando?” parece ser a frase preferida dos policiais militares e da maioria dos servidores de alto escalão. O que comprova que uns e outros são os modernos capitães-do-mato.

Neste contexto, ninguém deve estranhar os abusos (políticos, sexuais, criminosos, financeiros, etc…) cometidos por vários pastores e bispos evangélicos. O campo em que eles semeiam é bastante fértil. Sua platéia está acostumada a sofrer e a todos os abusos sempre disse amém!

Os políticos, que sempre estão a abusar dos eleitores (cuja maioria é oriunda da mesma classe de que saem os fiéis) fornecem aos religiosos paradigmas importantes. Os pastores observam e copiam os políticos, os quais, por sua vez, tiveram a oportunidade de aprender com seus colegas mais velhos de profissão toda sorte de traquinagens. Na fase atual, os pastores estão mais e mais se tornando políticos. Se controlarmos o Estado não vamos mais precisar de intermediários, imaginam.

Vítimas de pastores e políticos, os eleitores fiéis são também os operários moídos e mal pagos nas fábricas brasileiras. E nem é preciso ser muito perspicaz para perceber que os nossos empresários copiam os modelos fornecidos pelos seus antepassados escravocratas e pelos empresários internacionais que aqui se instalam para fazer aos empregados o que não ousam sequer imaginar nos seus países de origem.

O Brasil é uma tragifesta. Estamos tão acostumados às tragédias que achamos que elas são naturais, desejáveis… e porque não dizer até divinas e carnavalescas.  

Não podemos contar com os políticos. Não devemos acreditar nos pastores. Não temos razão para confiar no Estado. E nunca seremos tratados como iguais pelos ricos. Vivemos porque vegetamos. Curiosamente nunca conseguimos fazer uma revolução à francesa. Somos brasileiros… Então continuamos vendo futebol na TV, bebendo cerveja de milho nos bares e sonhando com novos amores carnavalescos. Quando, enfim, acordarmos com um presidente evangélico tão ou mais bestial que Jair Bolsonaro ciceroneado pela maioria dos deputados e senadores será tarde. Todos nossos carnavais serão proibidos.

Observamos em silêncio o crescimento dos evangélicos na política, toleramos golpes de estado e não nos insurgimos contra o usurpador que reduz nossos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. Rimos quando fomos desdenhados por turcos que mataram e morreram para evitar na Turquia o que aqui nós aceitamos pacificamente. Êta vida besta sô!

Fábio de Oliveira Ribeiro

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