No Coração do Mar

Ontem fui ver “No Coração do Mar”. O filme é bom e vale o ingresso.

“No Coração do Mar” narra duas histórias: a do encontro entre Melville e o último sobrevivente do Essex e a desafortunada aventura dos marujos deste navio que foi afundado por uma baleia. É impossível dizer o quanto há de veracidade nas duas narrativas, mas ambas foram contadas de maneira bastante envolvente e nos deixam antever algumas características importantes do capitalismo norte-americano.

A primeira  questão que salta aos olhos é a natureza extremamente hierarquizada da sociedade de Nantucket, Massachusetts. Hierarquia que irá se reproduzir dentro do Essex. Em razão dela, o homem mais qualificado para comandar o navio é relegado à condição de primeiro imediato. O comando é reservado a um jovem inexperiente em razão de sua origem familiar e melhor condição econômica.

Nos EUA as oportunidades não são iguais. De fato, as desigualdades são reforçadas pelo sistema econômico. O capitalismo norte-americano também funciona com base no compadrio. Os donos do navio quebram a promessa que haviam feito ao primeiro imediato (um homem experiente de origem humilde) ao ceder o comando do Essex a outro rapaz (de origem nobre). O predomínio da melhor condição sócio-econômica do candidato durante a escolha do capitão da embarcação é ao mesmo tempo americana (adequada às características da sociedade de  Nantucket, Massachusetts) e anti-americana (contrária à ideologia veiculada pelos produtos culturais “made in USA”).

O conflito entre ideologia e realidade, que se encontra enterrado na estrutura profunda do filme, é para mim o elemento mais importante de “No Coração do Mar”. Este conflito se expressará novamente quando do Inquérito fraudulento realizado para acobertar o que ocorreu com a finalidade de preservar os lucros da indústria de óleo de baleia. A saga do Essex foi, sem dúvida alguma, reproduzida durante a era Bush Jr., período em que predominaram as fraudes empresariais (ERON, ADELPHIA, WORLDCOM, DYNEGY, HARKEN e outras)  e, é claro, o naufrágio dos EUA em razão do país ter perseguido havidamente controlar o petróleo iraquiano estropiando sua economia.

A viagem do Essex começa mal. Durante a primeira tempestade o capitão incompetente insiste em navegar com as velas abertas produzindo danos na embarcação. Ele decide voltar, mas é convencido a seguir em frente pelo primeiro imediato. Entretanto, a ganância insana só entrará em cena quando ambos encontrarem o capitão de uma embarcação espanhola que foi afundada por uma imensa baleia branca. Ele conta que numa região distante há centenas de baleias. Como o Essex está com os porões vazios, o capitão e o imediato decidem correr riscos desnecessários.

A temeridade desta decisão é seguida por uma temeridade ainda maior. Quando o Essex encontra a baleia branca – que seria transformada por Melville em Moby Dick – o primeiro imediato arpoa a fera amarrando a corda no mastro do navio. O mastro é quebrado e o barco afunda em razão dos danos que sofreu. Os marinheiros salvam o que podem e começa então sua longa e solitária jornada no abismo da sede, da fome e do canibalismo. Alguns deles conseguem sobreviver à privação e retornam para casa. Mas a indústria do óleo está mais interessada em sobreviver do que em permitir que a verdade seja contada. O mesmo está ocorrendo com a indústria do petróleo norte-americana em relação à guerra do Iraque?

“No Coração do Mar” é uma história de incompetência, preconceito hierárquico, ganância, temeridade, resiliência, canibalismo, fraude e superação. Moby Dick, o romance de Melville, é uma obra em que predominam características que não existem na história que o inspirou: vingança, religiosidade, blasfêmia e a luta do bem contra o mal. O divórcio entre realidade e ideologia (existente na estrutura profunda de “No Coração do Mar”) encontra seu duplo perfeito no divórcio absoluto entre religião e ideologia (contida no livro Moby Dick).

Os personagens de Melville encontram a tragédia porque se afastam da religião. Os de “No Coração do Mar” são trágicos justamente porque agem de acordo com os cânones do capitalismo norte-americano (a única e verdadeira religião existente nos EUA). Após ter visto “No Coração do Mar” é preciso rever o filme de 1956, com Gregory Peck interpretando Ahab, para entender melhor como se articulam as relações entre literatura e sociedade nos EUA https://www.youtube.com/watch?v=gLvU_UWnlJw .

Fábio de Oliveira Ribeiro

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