O medo brasileiro

Publicada originalmente em 24/10/2003

Quando tinha cinco anos, minha filha me dizia que acordava de noite com medo, por causa de “sonho ruim”. A Mariana, hoje com 27, também passou por esses medos. Mas tinha uma babá que a embalava ao som de “boi, boi, boi do curá / pega essa menina que não quer mamá”.

O medo sempre fez parte da nossa cultura. Foi companhia permanente das nossas infâncias, muitas vezes trazido por babás e empregadas e suas histórias maravilhosas.

Menino ainda, provavelmente com a idade da Beatriz, tinha “sonhos ruins”. Imaginava o vendedor de amendoim fazendo plantão na frente de casa, em plena madrugada. A casa, então, não tinha grades e dava para o largo do São Benedito, um enorme terreiro onde, nos meses de abril e maio os congos traziam seus cantos rituais. Mas nem os espíritos dos congos que povoavam o São Benedito nos protegiam do medo do vendedor de amendoim.

Espalhou-se na época que o vendedor de amendoim era “tarado”. A gente imaginava que ele entregava amendoim enfeitiçado para os meninos que, depois de ficarem grogues, eram algemados e chicoteados. Nosso conceito de tarado não ia muito além disso.

Quando se reuniam minha mãe, minha avó Martha e minha tia-avó Mariana, aí o medo e a tragédia corriam soltos. Eu ficava encolhido enquanto elas contavam a história da linda normalista de São Paulo, que pegou o ônibus para casa, foi seguida por um marginal que a matou. Os crimes eram tão escassos na época que, cada qual, rendia uma novela caseira. São Francisco de Assis e o Sagrado Coração de Jesus me ajudaram a enfrentar os pesadelos que sempre se seguiam aos “causos” das três.

Nos anos 50, em Poços de Caldas, estávamos a léguas de distância de ter medo de ET. Nosso medo era concreto, de personagens que habitavam as fazendas –como sacis, caiporas, lobisomens e mulas sem cabeça. Tio Zito Vilela quase quebrou quando descobriram uma criação de sacis em sua fazenda em São Sebastião da Grama e houve uma debandada de colonos.

A história da região começou a mudar lá pelo início dos anos 70. Fui a São Tomé das Letras a serviço, por ocasião daquele fiasco que foi a visita do cometa Kohoutec, para saber o que os moradores achavam do cometa, da perspectiva de fim do mundo, e dos teosofistas que se mudaram para lá atrás de uma carona de disco voador, antes que o tal do mundo se acabasse.

Subi a pedreira, abri a porta da igreja, dei de cara com a pintura de um barão de olhar alucinado. Ao lado, uma velhinha quase nonagenária que tomava conta da igreja. Indaguei se era verdadeira a história. “É verdade”, confirmou. “E eles viram algum disco voador”. A velhinha, taxativa: “Nenhum”. “E a senhora, já viu algum?”. E ela, com ar de enfado por trás das lentes grossas dos óculos: “Eu? Estou cansada de ver”.

Foi o período em que os sacis começavam a ser expulsos do sul de Minas pelos discos voadores. Era o prenúncio do ET de Varginha.

Com o tempo, esses medos maravilhosos, mágicos, parte intrínseca da cultura brasileira, parte essencial de um país que ainda não se urbanizara, vão cedendo lugar a outras formas, mais contemporâneas e cruéis de medo.

Primeiro, o medo de enfrentar a metrópole, a primeira profissão, o medo das primeiras opções de vida. Em muitos, vi o medo do desemprego.

Nos anos 70, havia o medo permanente da tortura, pelo menos na nossa profissão.

E quem era o pai que nos confortava a todos? Quem me refresca a memória é o leitor Celso Dival Moreira Lima que me enviou e-mail sobre o caso Galdino, desses da gente guardar para sempre, sobre a necessidade da coragem para enfrentar o estabelecido, a unanimidade e a sede de sangue: “O maior cristão, talvez o único, que eu conheço é Dom Paulo Evaristo Arns, que teve até parte da sua Igreja voltando-se contra ele por ser o porta-voz dos oprimidos. Um preso político certa vez comentou: “Ele colocava a mão em meus ombros e falava apenas três palavras: coragem, coragem, coragem”. Esta é a única oração que eu até hoje aprendi”.

Para incluir na lista Crônica Semanal

Luis Nassif

7 Comentários

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  1. NASSIF

    A sua maravilhosa
    NASSIF

    A sua maravilhosa crônica fez-me alçar vôo para a cidadezinha do norte de Minas, onde nasci, como se tivesse tomado o tapete mágico das Mil e Umas Noites, emprestado.
    As lembranças foram surgindo aos borbotões como se ali ainda estivesse e, na impossibilidade de manter as palavras nos limites do cérebro, assim como incapaz de conter meus dedos que teimam em dançar no teclado do computador, peço-lhe permissão para tomar carona nas suas lembranças, que não deixam de ser as mesmas de muitos de nós.

    Na minha mais tenra infância, vivendo num lugarejo onde não havia luz e tampouco chegara a caixinha mágica e, onde se imaginava que “comunista” comia gente e que “judeu” significava capeta, o divertimento predileto da criançada era ouvir histórias (incluindo aí as de piratas, princesas, monstros e assombrações).

    A velha Joaquina, piladora de arroz e café de nossas famílias, descendente de gerações e gerações de escravos (livre de direito, mas escrava de fato) era a nossa “babysitter” noturna, quando nossas famílias acotoveladas em frente ao rádio, ouviam alucinadas as novelas radiofônicas. Impedidas de ouvir os gemidos sonoplásticos de “Bianca” e João Luiz”, a criançada aproveitava para viajar no mundo fantasioso da nossa vovó Joaquina, preceptora “habilitadíssima” para lidar com aquelas cabecinhas que não conheciam o limite entre a realidade e a fantasia.

    Causava-nos terror, principalmente, as histórias de assombrações com seus zumbis e mortos-vivos. Não sei o porquê, mas a turnê pelo desconhecido acabava sempre com uma história de arrepiar os cabelos da cabeça (uma vez que não os tínhamos em outro lugar). Hoje, imagino que a nossa habililodosa historiadora, já manejava, embora de uma forma empirista, a dita psicologia, na época conhecida como “segundas intenções”. Tacava-nos uma de “fazer xixi na cama”, para se livrar mais cedo de nossas choramingas, sempre pedindo mais uma, e descansar o corpo moído de moer os alimentos da burguesia (para ser burguês naquela época, bastava ter uma “vendinha”, ou um minúsculo açougue, ou duas vaquinhas, ou, ainda, ser professora primária).

    Dentre as histórias narradas pela nossa vovó Joaquina (que Deus a tenha num bom lugar), uma ainda arrepia a alma de todos os seus antigos protegidos.
    Contava ela, que nas sextas-feiras a “mula-sem-cabeça”, após a meia-noite, entrava na cidade para levar crianças com ela, principalmente as desobedientes (trocando em miúdos: todas nós). O sinal seria dado quando uma cancela batesse. E para se livrar do feitiço da endemoniada, nenhum menino ou menina podia deixar dentes ou unhas de fora (não sei o porquê de a boa Joaquina não gostar de dentes, uma vez que os seus, contrastando com sua pele de ébano, pareciam um colar de pérolas brancas, quando sorria. As unhas, sim, eram encardidas e quebradas pelo manejo diário com a mão de pilão).
    Meu Deus, qual era o vilarejo que não tinha uma cancela por perto. Assim sendo, passei longas e calorosas noites de sextas-feiras, olhos esbugalhados, com meias nos pés e mãos e com uma fralda na boca, debaixo de um suarento cobertor de lã, quer fizesse frio ou calor.
    Preferia “12 mil” vezes que fosse o seu romântico vendedor de amendoins.

    Nassif, graças a Deus os meus medos sufocantes jazem com a velha Joaquina.
    Desenvolvi, com o tempo, uma couraça, incapaz de deixar entrar o medo em meu coração, pois o medo é a porta que deixa o mal entrar no coração, é o oposto do amor. Mais que um sentimento, o medo é uma escolha.
    Alguns há que o escolhem e o transformam numa visão de mundo histérica, para criar um estilo de vida egocêntrico, como forma de evitar viver em comunhão com a humanidade.
    A ignorância alimenta o medo, que alimenta o egoísmo, que fortalece a desumanidade e fomenta a violência.

    Tomás de Aquino já dizia: “É preciso discernir o medo puro (responsável por preservar nossa vida) do medo pueril (discriminatório e personalista)”.

    Quando perguntaram a Martin Luther King como ele ousava marchar em lugares onde as pessoas desejam matá-lo, ele respondeu:

    -DEVEMOS AMAR ALGUMA COISA MAIS DO QUE O MEDO DA MORTE, SE DESEJAMOS VIVER.

  2. Caro Mouro

    Tai um assunto
    Caro Mouro

    Tai um assunto interessante, MEDO, trazido na Tua bela crõnica..

    Certa vez , disse aos meus alunos:

    ” O medo é um sinal de respeito pelo desconhecido, o qual passa a ser superado pela coragem de enfrenta-lo ”

    Quanto as miragens de supostos personagens ficticios , na sua crônica, só tenho a lhe dizer.

    Existe mais coisa entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia.

    Pois a nossa capacidade de enxergar certas diversidades, só vão até a linha do horizonte.

    ” Como diria Nietsche . ” Se deus existe, limitou-nos “

  3. “Medo do que?”
    Nassif,ainda
    “Medo do que?”
    Nassif,ainda não contei-lhe,porque isso não vinha ao caso,que perdí o medo das coisas,das quais todos somos vitimados,na época da ditadura e do regime opressor,que deixou minha geração,da qual fazem parte os saudosos companheiros vítimas da opressão,e dos agora famosos e reconhecidos, Jose Dirceu,Olívio Dutra,Jacó Bittar,Vladimir Palmeira, José Genoíno,Airton Soares,Leila Abramo,Aldo Rebello,Jair Meneguelli,Luiz Inácio Lula da Silva,Celso Dival Moreira Lima,etc,etc,que a exemplo do que foi citado por um leitor,abaixo,tivemos sempre na pessoa do cardeal Dom Evaristo Arna,a compreensão dos nossos ideais,e da nossa luta,por uma nação mais justa e fraterna,e que acolheu-nos,assim com tambem o fez o Bispo dABC,dom Mauro Morelli,nas suas igrejas,onde pelo menos,conforto espiritual e votos de “coragem”eles nos davam.Que Deus os recompense !

  4. Luís,
    Estive em julho e ele
    Luís,
    Estive em julho e ele estava lá vivo e com a cestinha no braço. Devo voltar agora para o feriado do dia 7 de setembro, vou verificar novamente, e se continua vender amendoim torrado.
    Abraço,
    Marcelo

  5. Sr Nassif
    Me encontro em suas
    Sr Nassif
    Me encontro em suas cronicas, pelos fatos tb vividos
    Incrivel as histórias, que nos amedrontavam, eu era o homem do saco, que viria nos pegar e as histórias nos cafés de final de tarde de minha mãe e suas amigas, sempre com bolos deliciosos, mas a marca que ficavam eram das histórias.Na juventude me deparei com a repreensão militar e o que entendia dela, que medo das peruas vans, que passavam e viamos somenbte as potnas das metralhadoras e os olhares dos que estvam dentro, que medo..Mas medo senti nestes dias, lendo as histórias do Frei Tito, triste realidade .Preferia as histórias contadas na infâancia

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