Viva a Morte!

A morte nunca é surpresa. A morte é vida. Não no sentido místico, culposo, banal. Ela nunca é um mistério, posto que ao nascermos já a carregamos como virtual que se atualiza quando do ato de morrer. Morrer é confirmar a vida. É raciocínio elementar, mas só morre quem vive (AFIN).

                Paradoxo? Não seria a morte, como disse a AFIN, inerente à vida? Nada mais presente, mais vivo do que a morte, nada mais cotidiano. No ato da fecundação, salva-se um espermatozoide, mas morrem milhões. Fundem-se espermatozoide e óvulo, já vão mais dois. Ao nascer, mesmo sob excelentes condições, a taxa de mortalidade infantil nunca é inferior a dois bebês para cada mil nascidos (isso se tratando da Noruega ou da Suécia).

                Ao respirar, aspiramos fungos, ácaros, bactérias, muitos dos quais assassinamos inocentemente. E tem mais: matamos animais e plantas para comer, para nos vestir, dormimos entre células, pelos e cabelos mortos. Bilhões de células e microrganismos em nosso corpo morrem diariamente.

                E nós? Vivemos sob o pensamento mágico que escamoteia a ideia da morte. Nossa cultura, marcada por uma weltanschauung cristã, refuga a iminência da morte. Se digo “cara, você pode morrer daqui a cinco minutos”, lá vem alguém pra dizer “Ai, vira essa boca pra lá!”, como se o fato de eu ter dito isso pudesse apressar a morte do interlocutor. Se um velho (recuso-me, como Hemingway, a usar o eufemismo “idoso”) de 80 anos diz “eu que estou próximo da morte”, sempre tem um mentiroso dizendo “o que é isso, vovô, você ainda vai viver muito”! Como diria Octávio Paz: ao matar a morte a religião nos tira a vida.

                E como, segundo o pensamento mágico de alguns, só se morre depois de velho, vai-se adiando a vida para um breve futuro, para “depois que eu me formar”, “quando eu entrar de férias”, “o ano que vem”, “quando eu ficar rico”, “quando tiver um emprego”. Dizia o finado Rubem Alves que é mais ou menos como se os seus instantes presentes fossem provisórios, preparatórios. Mas eles são a única coisa que existe…

                Na dúvida, não costumo deixar nada para um eventual pós-morte, para a eternidade ou coisa que o valha. Prezo muito a vida como os suicidas Gilles Deleuze e Walmor Chagas (falso paradoxo novamente) que, tendo conhecido a vida em sua plenitude, decidiram dar cabo de suas existências numa fase em que nada do que viviam lembrava a magnífica vida que tiveram. O primeiro, paciente terminal, antes do suicídio, estava sendo mantido vivo tetraplégico e ligado a tubos para comer e respirar e o segundo igualmente rejeitando a ideia de viver doente, dependente dos outros e incapacitado, atuou, com seu último sopro de energia, como um amante da vida, eutanasiando-se.

                Oras, viver é o oposto de ficar se poupando, se preservando, evitando os “perigos” da vida que, afinal, constituem a própria vida: o risco, correr riscos, arriscar, arriscar-se. Recentemente, uma morte (não preciso nem dizer de qual se trata) no Brasil, deu vida, encheu de mudanças, consternou, entristeceu, mexeu no tabuleiro eleitoral. Afinal, essa é a morte, sem capuz preto, sem foice, sem morbidez. Simplesmente a morte, simplesmente a vida!

Redação

11 Comentários

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  1. Muito bem, Mestre Yoda, aqui

    Muito bem, Mestre Yoda, aqui quem fala é o gafonhoto. Você daria um excelente escritor de livros de auto-ajuda.

    Sempre podemos fazer acusações aos vivos que conhecemos bem. Aos mortos, porém, agradecemos por não nos censurarem as lembranças.

    Elias Canetti, Sobre a morte.

  2. maniel bandeira fecha seu

    maniel bandeira fecha seu poema Morte  Absoluta assim:

    morrer mais completamente ainda

    – sem deixar sequer esse nome.

    em Consoada, chama a morte de “indesejada das gentes”, coletivizando=a, temendo-a, rejeitando-a;mas brinca, “alô, iniludível’.

    já mario quintana diz que a morte não melhora ninguém.

    viniciusdiz que

    eu morro ontem

    nasço amanhã

    ando onde há espaço

     – meu tempo é quando

     

     

    1. Grato, Altamiro, por

      Grato, Altamiro, por compartilhar essas passagens. Que bom que você também seja um dos raros mortais que decidiram refletir sobre a morte, ao invés de tentar negá-la.

  3. A vida é um dom de Deus´,

    A vida é um dom de Deus, porque Deus tem um propósito para cada um: viver ao conhecê-lo. Oséias 4:6. “O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento.” 

    Quem tem vida até hoje não é para ir morrer bem velhinho, mas é porque Deus oferece uma oportunidade para não morrer, mas tenha  a vida eterna. – Pelo conhecimento da sua palavra.

    Jesus venceu a morte para que possamos ter a mesma vida de filhos, ao ressuscitar.

    “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça mas tenha a vida eterna”. (Evangelho de João 3.16) 

     

    1. sobre a vida e o cristianismo

      Vida não é um conceito assim tão simples. Crescemos com a ideia de vida que é apregoada pelo cristianismo, aquela que, como diria Caetano “vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal”.

    1. assim é fácil

      desqualificar o texto sem apontar qualquer motivo é um bom recurso para um sofista, mas basta uma mínima leitura de mundo para compreender uma crítica assim, rasa como um pires.

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