Augusto Aras e a literatura russa em vigor no sistema de (in)justiça, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O Direito Penal não deveria ser tão ambíguo quanto um romance russo do século XIX, nem produzir situações absurdas típicas da literatura fantástica recente

O procurador-geral da República, Augusto Aras. Foto: José Cruz/Agência Brasil

por Fábio de Oliveira Ribeiro*

Ontem a imprensa noticiou que o PGR finalmente ajuizou ação contra o decreto de indulto através do qual o ex-presidente Bolsonaro perdoou os policiais que cometeram a chacina do Carandiru. A petição foi autuada no STF e distribuída ao Ministro Luis Fux. 

Na inicial da ADI 7330, Augusto Aras sustentou a possibilidade da questão ser objeto de ação direta de constitucionalidade e no mérito fez a seguinte afirmação:

“As previsões normativas, nos termos em que formuladas, alcançam, ainda que não somente, os agentes públicos condenados no chamado Massacre do Carandiru. 5 Trata-se de triste capítulo da história brasileira, ocorrido no dia 02.10.1992, quando 341 agentes de Polícia Militar do Estado de São Paulo foram enviados para conter uma rebelião no Pavilhão 9 da Casa de Detenção, no Complexo do Carandiru, operação que resultou num total de 111 mortos e na consequente condenação de 74 policiais militares por homicídio qualificado, com penas variando de 96 a 624 anos de pena privativa de liberdade. 

Posteriormente ao episódio, o homicídio qualificado foi incluído, pela Lei 8.930/1994, no catálogo dos crimes hediondos previsto na Lei 8.072/1990. Sem embargo, os agentes estatais sentenciados pelas mortes dos detentos no complexo do Carandiru foram, por diversas vezes, condenados como incursos nas sanções do art. 121, § 2º, IV, do Código Penal, quando o homicídio doloso qualificado ainda não era considerado crime hediondo. 

É, portanto, caso de o Supremo Tribunal Federal definir se o decreto de indulto pode abranger crimes hediondos que, na data do fato delituoso, não eram previstos em lei como tal, e se o indulto pode ser levado a efeito em favor de condenados por crimes considerados de lesa-humanidade no plano internacional.”

Um pouco adiante o PGR foi ainda mais específico:

“O art. 6º, caput e parágrafo único, c/c art. 7º, § 3º, do Decreto 11.302/2022, ao permitir, especificamente no caso do Massacre do Carandiru, que os policiais militares condenados sejam beneficiados com o indulto natalino, afronta a dignidade humana e princípios basilares e comezinhos do direito internacional público, apresentando-se como afronta às decisões de órgãos de monitoramento e de controle internacionais relativos a direitos humanos, sendo capaz de ocasionar a responsabilização do Brasil por violações a direitos humanos. 

Os órgãos do Sistema Interamericano de Proteção a Direitos Humanos estabeleceram que a concessão indevida de benefícios na execução da pena pode resultar em uma forma de impunidade, especialmente quando se trata de graves violações a direitos humanos. O direito internacional proíbe a aplicação de indulto ou outras excludentes de punibilidade a pessoas que foram declaradas culpadas pela prática de crimes de lesa-humanidade.” 

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn”      

A petição inicial de Augusto Aras me parece é juridicamente irretocável. Mesmo assim, resolvi fazer algumas considerações que considero relevantes para a solução da questão debatida na ADI 7330.

Há alguns anos, ao julgar o processo vulgarmente chamado de Mensalão a atual presidenta do STF condenou José Dirceu afirmando o quanto segue:

“Não tenho prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite.

Não tenho provas de algumas coisas que direi ao longo do presente, mas não deixei de citar a fonte do fragmento de texto literário que pretendo utilizar para desenvolver meu raciocínio.

“… Lembro-me também de que eu, no meu artigo, desenvolvia a idéia de que todos… digamos, por exemplo, os legisladores e os fundadores da humanidade, começando pelos mais antigos e continuando por Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão etc. etc., todos, desde o primeiro até o último, tinham sido criminosos, mais não fosse senão porque, ao promulgarem leis novas, aboliam as antigas, tidas por sagradas pela sociedade e pelos antepassados, e certamente que não se teriam detido perante o sangue, sempre que isso (derramado às vezes com toda a inocência e virtude, em defesa das velhas leis) pudesse ser-lhes útil. Também é significativo que a maior parte desses benfeitores e fundadores da humanidade fossem uns sanguinários, especialmente ferozes. Em resumo: eu concluía daqui que todos os indivíduos, não só os grandes, como também aqueles que se afastassem um pouco da vulgaridade, isto é, também aqueles que são capazes de dizer qualquer coisa de novo, teriam a obrigação, pela sua própria natureza, de serem infalivelmente criminosos… em maior ou menor grau, naturalmente. De outro modo, ser-lhes-ia difícil saírem da vulgaridade, e eles não podem conformar-se a ficar nela, até pela mesma razão da sua natureza e, a meu ver, têm até a obrigação de não se conformarem. Em resumo: como o senhor vê, até aqui, isto não tem nada de particularmente novo. Isto já se imprimiu e foi lido milhares de vezes. Pelo que diz respeito à minha distinção entre homens vulgares e extraordinários, concordo em que é um tanto arbitrária; mas eu não citava números exatos. Eu só tenho fé na minha idéia essencial, que é aquela que consiste em dizer concretamente que os indivíduos se dividem, segundo a lei da natureza, em duas categorias: a inferior (a dos vulgares), isto é, se me permite a expressão, a material, que unicamente é proveitosa para a procriação da espécie, e a dos indivíduos que possuem o dom ou a inteligência para dizerem no seu meio uma palavra nova. …” (CRIME E CASTIGO, Fiódor Dostoiévski, p. 281 – domínio público http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/services/e-books/Fiodor%20Dostoievski-1.pdf)

Em razão de seu comportamento durante a pandemia, o presidente da república Jair Bolsonaro pode ser considerado responsável por centenas de milhares de mortes. Essa foi a conclusão do Relatório da CPI da Covid (https://www.cnnbrasil.com.br/politica/leia-a-integra-do-relatorio-final-da-cpi-da-pandemia/), o qual está sendo soterrado pelo PGR. É difícil dizer qual a motivação de Augusto Aras para perdoar Jair Bolsonaro como se não tivesse o dever funcional de denunciá-lo. Sendo assim, sustentarei uma hipótese literariamente plausível. Aras perdoou o presidente genocida porque ele pode ser considerado o mais novo membro daquela lista de homens proeminentes que o personagem Rodion Românovitch Raskólnikov chamou de “benfeitores e fundadores da humanidade”, todos eles “sanguinários, especialmente ferozes.” 

Qualquer observador isento da história recentíssima do Brasil pode dizer sem medo de errar que Jair Bolsonaro é o pai fundador do neoliberalismo autoritário genocida, pois ele atendeu um clamor do mercado. Clamor esse que foi sumarizado de maneira bastante eloquente pelo Presidente do Banco Central no início da pandemia https://theintercept.com/2020/04/16/banco-central-presidente-coronavirus-economia/.

Assim como foi perdoado pelo PGR, o presidente brasileiro – cuja menor virtude e maior defeito foi ajustar seu comportamento à tese Raskólnikov acreditando que poderia se igualar a outros homens excepcionais que “teriam a obrigação, pela sua própria natureza, de serem infalivelmente criminosos” – decidiu indultar os policiais paulistas que cometeram a indiscrição de assassinar centenas de presidiários desarmados, muitos deles abatidos pelas costas. O crime que os policiais cometeram foi grave, sem dúvida. Todavia, no entender do próprio PGR que arquivou o Relatório da CPI da Covid aquele crime foi menos grave do que o genocídio pandêmico comandado pelo por Jair Bolsonaro. Portanto, entendo que a pretensão deduzida pelo PGR na ADI 7330 pode ser considerada paradoxal. 

Esse paradoxo, todavia, tem sua origem num precedente do próprio STF. Afinal, como anteriormente salientado foi a Ministra Rosa Weber que consagrou entre nós a tese de que a literatura pode substituir tanto o Código Penal quando a Constituição Federal. 

Mudar subitamente o foco do debate para confundir, surpreender e/ou deleitar o interlocutor é uma artimanha retórica essencial. Ela tem sido utilizada com maior ou menor eficiência tanto na literatura quanto na advocacia. Portanto, nesse ponto há algo importante que não pode ser esquecido quando a ADI 7330 for julgada: ao contrário da velha agiota Alyona Ivanovna que foi assassinada a sangue frio por Raskólnikov, as vítimas dos policiais paulistas indultados e do genocídio pandêmico perdoado pelo PGR não eram apenas personagens. Os brasileiros assassinados, abandonados à própria sorte para morrer sem vacina e induzidos a cometer suicídio consumindo remédios ineficazes durante a pandemia eram pessoas de carne e osso, cujos pais, esposas, filhos, netos, primos, tios, etc… tem razões de sobra para acreditar que o Brasil é um país injusto que quando não pune os crimes se dedica à tarefa macabra de premiar homens “sanguinários, especialmente ferozes.”

Ao julgar a ação comentada o STF pode decidir que o pedido é procedente ou improcedente. Entretanto, qualquer que seja a decisão proferida a Suprema Corte poderá ser e eventualmente será acusada de deixar-se influenciar mais pela literatura do que pelo texto da Constituição Cidadã. 

Se anular o decreto de indulto, o STF dirá que o crime menos grave praticado pelos policiais indultados é paradoxalmente mais grave que o do presidente que cometeu um genocídio e ficou impune. Se preferir julgar constitucional o indulto, todo o nosso sistema (in)justiça poderá doravante ser tratado como um puxadinho do quarto pobre em que o faminto e ressentido personagem de Fiódor Dostoiévski desenvolveu teses passíveis de serem consideradas delirantes. 

O Direito Penal não deveria ser tão ambíguo quanto um romance russo do século XIX, nem produzir situações absurdas típicas da literatura fantástica recente. Bem… pelo menos foi isso que eu mesmo aprendi quando cursou a Faculdade de Direito no final dos anos 1980. 

Admito, porém, que talvez que meu professor de Direito Penal não tenha conseguido me ensinar nada, pois em meados de 2004 – quando o procurei para ser aconselhado em razão de ter sido criminalmente denunciado com base na Lei de Imprensa – ele me disse que eu era muito jovem para ficar falando coisas desagradáveis e inconvenientes. Quem sou eu para esculhambar os preclaros membros do MPF e veneráveis Ministros do STF…

Ontem mesmo a presidenta do STF proferiu o seguinte despacho na ação comentada:

“Diante da natureza da medida liminar requerida, a qualificar a urgência da análise dos pedidos, e da relevância do problema jurídico constitucional posto, requisitem-se informações prévias ao Senhor Presidente da República no prazo de 48h (quarenta e oito horas) que correrá mesmo no período de recesso forense. Abro, ainda, prazo, pelo idêntico período, para manifestação do Advogado-Geral da União.”

A Ministra Rosa Weber poderia ter concedido a liminar, mas preferiu tomar cuidados que podem ser – como dizer isso de uma maneira educada – dignos da teoria literária. Não seria o caso do relator da ADI 7330 requisitar o parecer de um especialista em literatura russa?

*Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

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  1. Se todas as rebeliões fossem tratadas desta maneira, não teríamos tantas delas se proliferando pelo país, nem se quer, chefes de organizações criminosas comandando o crime de dentro da cadeia – não há inocentes nesta história, apenas heróis cumprindo o papel de manter a ordem e a decência onde não se pode oferecer flores…

    Essa velha raposa senta no próprio “rabo” para falar dos outros. Quantos pareceres pouco republicanos e manifestações destorcidas do texto da lei esse canalha e sua equipe emitiu com cunho de oposição política.

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