Conceitos-chave para a interpretação da realidade III, por Marcio Valley

A noção de poder que interessa à crítica da realidade político-social é aquela marcada pela prevalência da vontade de um ser humano sobre a do outro.

Conceitos-chave para a interpretação da realidade

Parte III

por Marcio Valley

Esta é a décima parte da série “Indivíduo, sociedade e a interpretação da realidade”. Os textos possuem um encadeamento lógico, porém permitem a leitura autônoma. Os links para os que desejarem a leitura das nove primeiras partes estão disponibilizados no final do artigo.

  • Poder

O instinto de sobrevivência induz os animais ao desejo de priorizar a própria necessidade em relação a dos demais seres vivos. Um nome plausível para essa vontade de impor ao mundo o próprio desejo é “poder”. O poder é possivelmente o elemento mais importante a ser considerado na compreensão da realidade. Dada a condição animal do ser humano, não somente carrega essa inclinação egoística, como, em função do estágio de consciência e cultura no qual se encontra, nele ela é potencializada. Pessoas poderosas já mostraram ser capazes de destruir o mundo para a satisfação da própria vontade; estiveram perto de fazê-lo em algumas ocasiões da história. O poder, porém, não está presente somente no ambiente macro. A ambição por controle é um sentimento que permeia praticamente todas as inter-relações humanas; está presente na disputa entre reinos por territórios, mas também quando mendigos competem pelo conteúdo da lata de lixo. Compreender isso é de suma importância para escapar da ingenuidade na análise quanto às motivações, a fim de extrair as camadas de fraude e hipocrisia que encobrem certas ações políticas, muitas vezes realizadas sob os falsos motes de justiça, liberdade e democracia.

A noção de poder que interessa à crítica da realidade político-social é aquela marcada pela prevalência da vontade de um ser humano sobre a do outro. Não se concebe poder algum em um indivíduo solitário numa ilha, ainda que possa realizar todas as suas vontades, exercendo a liberdade em toda a sua amplitude. Em suma, poder não é sinônimo de liberdade, mas, substantivamente, representa uma supremacia entre vontades; poder é imposição da própria vontade. Na verdade, poder é, essencialmente, uma antítese de liberdade para os que a ele se encontram submetidos.

Michel Foucault (1926-1984) enfatizou que “o poder não se exerce senão sobre “sujeitos livres” (1), donde decorre que a ação do poder objetiva a limitação da liberdade do outro. Segundo o filósofo, os que detêm o poder querem mantê-lo. No período anterior ao Iluminismo, quando pensamento e comportamento humano eram mais toscos, esse propósito era alcançado pelo uso direto, massivo e sem misericórdia da violência física. Todavia, a partir da valorização do ser humano trazida pelas novas luzes do pensamento, a barbaridade física passa a ser considerada desumana, o que obriga o poder a traçar uma nova tática. Cria-se um sistema de ideias para legitimar, através do discurso, o exercício de um controle velado capaz de limitar dois fatores que, totalmente livres, são capazes de destruir a hierarquia estabelecida: comportamentos e pensamentos. Trata-se, grosso modo, do adestramento coletivo à servidão voluntária, ou seja, a construção da resignação individual por meio de instituições direcionadas para esse propósito (escolas, hospitais, hospícios, prisões, etc). O adestramento visa a naturalização do sistema, ou seja, sua aceitação tal como se apresenta, pronto e acabado, orientação resumida pela máxima “as coisas são assim mesmo”.

Ocorre que, da necessidade de criar um sistema de ideias surge uma contradição dialética: a concessão de certa liberdade aos que devem se sujeitar ao poder viabiliza uma fresta de independência, possibilitando o surgimento de discursos contrários ao sistema. Justamente por conta disso é que, em Foucault, “onde há poder, há resistência” (2). Quando a resistência atinge um ponto no qual o mero uso do discurso não é capaz de detê-la, volta-se ao princípio do uso puro e simples da violência física: fere-se, tortura-se e mata-se. Tem-se, assim, que o poder se inscreve como uma força coativa, psicológica ou física, exercida sobre outrem. A vontade de potência prevalente é de quem tem a maior capacidade de exercício da violência (força) e sempre se imporá, ainda que sob a forma velada de condescendência (aquiescência com a ação do mais fraco). Ou seja, na imensa maioria das vezes em que o indivíduo supõe agir segundo sua própria vontade, suas ações estarão alinhadas aos interesses da elite dominante, pois foi adestrado, desde o nascimento, a pensar e agir de forma a manter as coisas como elas são.

A sociedade contemporânea é marcada por uma complexidade de extrema magnitude, geradora de uma pletora de fontes distintas de poder. Tal multiplicidade de potências torna o poder uma força difusa, mal percebida, mal compreendida, porém determinante sobre os rumos da coletividade. Todavia, todo o poder aparentemente dissipado em tais potências coativas difusas decorre, basicamente, de duas fontes primárias de força que atuam, em regra, como aliadas: o poder econômico da elite, controlador da repartição da riqueza, e o poder militar, detentor do monopólio ou supremacia da violência utilizada para garantir o predomínio do poder econômico. Entende-se por “poder militar” o conjunto das forças de segurança do Estado, internas e externas (polícias, forças armadas, guarda nacional e outras).

Embora a aliança dessas forças seja regra, seus interesses fundantes não são exatamente idênticos e, eventualmente, podem conflitar, disso resultando disputa sobre a hegemonia. Em geral, generais são serviçais da elite, mas ocasionalmente resolvem demitir seus patrões. A Primeira Guerra Mundial, por exemplo, deveu-se ao recrudescimento de um sentimento nacional-imperialista tipicamente militar e que, na origem, não era exatamente interessante para os capitalistas, embora, ao final, tenham sido beneficiados, como sói acontecer. Ocorrendo disputa sobre a hegemonia, a vantagem inicial óbvia será da força controladora de soldados e armas. Roma sempre esteve ciente desse risco e proibia seus generais de conduzir as tropas para além do rio Rubicão, assim buscando evitar que chegassem à capital do império com toda a força militar que comandavam. O general Júlio César, porém, não tinha dúvida alguma sobre a verdadeira fonte do poder. Desobedeceu a ordem, atravessou o Rubicão e tornou-se o imperador, após Pompeu, então cônsul, ser assassinado.

O poder em estado bruto não possui preocupações éticas, mirando apenas no objetivo perseguido, ou seja, a conquista e a manutenção do poder em si. O discurso ético somente emerge em momento posterior da civilização, quando a ação política se inicia. Contudo, a influência da ética, mesmo quando o poder passa a ser mediado pela política, depende da natureza da força vitoriosa na disputa. O poder nazista, como exemplo, embora gestado e parido politicamente em uma democracia, tinha pouco ou nenhum apego às questões éticas, tudo importava menos que o objetivo.

O propósito primacial do poder não é, como aparenta superficialmente, alcançar a acumulação de riqueza ou de dinheiro; o seu alvo é o controle sobre o coletivo e, consequentemente, sobre os modos de obtenção e repartição dos meios materiais garantidores da sobrevivência. Supondo-se um hipotético coletivo humano que não possibilite a acumulação, apenas a satisfação da necessidade de sobrevivência imediata, a disputa pelo poder continuaria a existir e com o mesmo objetivo: definir os modos de aquisição dos meios materiais de sobrevivência e sua divisão após obtidos. Em outras palavras, a acumulação é um subproduto da vontade de alcançar o poder, um modo de garanti-lo e de perpetuá-lo, transmitindo-o aos sucessores. Algumas famílias da Europa são ricas há seis séculos (3), o que lhes permite transferir hereditariamente o poder desde então. Na verdade, a lógica é contrária: persegue-se riqueza e dinheiro porque esse é o meio moderno mais rápido e fácil de alcançar o poder. Parece ingenuidade afirmar que enriquecer é um meio fácil de ser poderoso, afinal, são poucos os que ficam ricos, mas, pense de novo: é muito mais difícil ter habilidades conjuntas em termos de condição física, técnicas de combate e persuasão discursiva capaz de exortar uma multidão a formar um exército poderoso obediente a um comandante; o desenvolvimento de tais habilidades sequer depende exclusivamente da vontade, possuindo um viés genético; a pessoa pode simplesmente não possuir inclinação para ser um orador brilhante e persuasivo ou para dominar a arte marcial com vistas a sobrepujar os oponentes.

Um outro modo de aquisição do poder, a política, é bem mais difícil do que parece. De fato, o poder verdadeiro, mais substancial, não se alcança em cargos públicos regionais, como vereadores, ou muito fracionados, como os parlamentos. E quanto a cargos majoritários, como presidente da república, é bom lembrar que uma só pessoa, dentre centenas de milhões, no caso do Brasil, o ocupará por até oito anos. Ganhar sozinho na loteria é mais fácil. Além disso, não é fácil ser indicado por um partido político para disputar a presidência. Além de depender de condições pessoais nem sempre presentes, como uma história de vida e retórica agradável ao eleitor, é imprescindível financiamento milionário para a campanha. Financiamento de campanha nos faz retornar à riqueza como fonte de poder. Superado tudo isso, ser eleito dificilmente representa poder de fato. Isso porque, de muitos modos distintos, em geral o político eleito é um títere das forças não aparentes que o elegeram, como veremos no tópico seguinte.

  • A política

Política é compreendida como o meio não violento de mediação de interesses sociais conflitantes. Surge na civilização com dois objetivos principais: (a) evitar a guerra intestina e constante entre membros da elite governante que detenham visões distintas sobre o modo de repartição do tesouro nacional, ou seja, terra, produção e riquezas; e (b) obter a docilidade do povo através da ilusão de que o poder emana da divindade ou, modernamente, de que é exercido através e em busca de uma divisão multitudinária e equânime (democracia e justiça social, respectivamente). Substancialmente, trata-se de um modo de gestão das riquezas de um dado território e sua divisão entre os cidadãos, ou seja, um instrumento para a solução de problemas corriqueiros em tomadas de decisões e partilhas de bens.

Trata-se a política de longa manus do real poder em suas duas vertentes harmônicas: o poder econômico e o poder militar. Em última análise, encontra-se submetida a quem detém o controle sobre o aparato de violência do Estado, os militares. Revoluções civis vitoriosas não demonstram o contrário, pois, nessa hipótese, trata-se de um confronto de forças que estabelece um novo comando no poder militar, que continua a preponderar. As cabeças guilhotinadas pela Revolução Francesa e os russos assassinados ou enviados para o exílio pela Revolução Russa comprovam isso. Em resumo, a política funcionará livremente enquanto os quartéis decidirem respeitar o comando civil. Por outro lado, a obediência ao poder civil somente subsiste se respeitados os limites impostos pelo poder econômico. Golpes militares contra governos considerados desfavoráveis aos ricos e muito próximos dos interesses do povo são comuns na História e no mundo; por outro lado, são raríssimos os golpes para destituir governos favoráveis aos ricos e sem preocupação com o povo. O atual modelo de golpe, que utiliza o sistema judicial para dar credibilidade institucional à mudança de governo sem participação do eleitor, não é outra coisa senão militar, pois depende da garantia de que a decisão judicial terá sua eficácia garantida pelas forças internas.

Quem define a ação administrativa do Estado em relação, por exemplo, a serviços e obras públicas, é a política. Numa visão ampla, são ações que se encontram inseridas no registro geral de gestão e repartição da riqueza, pois a decisão política pertinente ao mobiliário urbano ou à assistência social, como exemplos, decorre do modo adotado para a repartição da riqueza. Se muita riqueza for destinada às classes privilegiadas, a ação estatal em relação às iniciativas de interesse coletivo necessariamente será reduzida e vice-versa. Esse é, na verdade, o verdadeiro cavalo de batalha da política.

Não há relação necessária entre política e forma ou sistema de governo, sendo inerente a praticamente todas as sociedades complexas, organizadas em divisões sociais hierarquizadas. Uma monarquia absolutista utiliza a política, assim como as repúblicas democráticas e os modelos totalitaristas. A diferença na ação política praticada em formas de governo distintos reside, basicamente, na definição das pessoas que poderão exercê-la. Quanto menos democrático o país, menos pessoas estarão aptas a participar da política, sendo que isso ocorre abertamente, com simples proibição de participação política do cidadão (como em ditaduras), ou veladamente, através da imposição de dificuldades para o acesso às decisões coletivas (como na maioria dos países democráticos, Brasil inclusive).

O detentor do poder político também o utiliza para exercer um poder secundário, porém importante para o controle social, o poder ideológico, sobre o qual se falará oportunamente. Adianta-se, porém, ser ilusão supor que o poder político emana do povo e seja exercido em seu nome. Paulatina e progressivamente, a partir das frestas de independência discursiva da qual se falou no tópico sobre o poder, isso vem ocorrendo e é de se supor que venha a ser plenamente assim um dia. É desejável que assim seja. Porém, não há precedente atual ou no passado desse cenário e a sociedade humana dele ainda está distante. Desde sempre, o exercício da política constitui uma prerrogativa da classe dominante, mesmo em países democráticos.

É importante ressaltar, todavia, que a política é essencial para a vida em sociedades complexas, não devendo ser descartada como instrumento imprescindível para a tomada das decisões coletivas. Suas fragilidades não recomendam sua extinção, mas a implementação gradativa de melhorias. Simplesmente não existe opção menos traumática. Revoluções sangrentas podem mudar a face política de uma nação de um dia para o outro, porém o custo é impensável. O cidadão não deve perseguir a aniquilação da política, invocando ditaduras de direita ou de esquerda. A meta deve ser utilizar a contradição interna do poder, a necessidade de um sistema de ideias, para, aproveitando-se da relativa liberdade de pensamento que dela resulta, ampliar a efetiva participação do cidadão na democracia.

  • A democracia

Democracia é um dos modos possíveis de exteriorização da política. Tradicionalmente definida como o “governo do povo”, o significado remonta à origem etimológica grega da palavra (demos, povo, e kratos, poder). Na plenitude do conceito, democracia é o sistema que busca mitigar a preponderância dos poderes econômico e militar na ação política, o que ocorre através da pulverização do poder entre os cidadãos, concedendo-se a cada um do povo idênticas liberdade e oportunidade para efetivamente participar do governo e da escolha das políticas públicas. O sistema confere a cada cidadão, se assim desejar, o direito de participação política, adotando-se a ação pública escolhida pela maioria, todavia com salvaguardas para os direitos das minorias. De fato, a democracia não pode ser reduzida ao desejo prevalente da maioria, o que atropelaria o direito das minorias, merecendo menção constitucional, nos países civilizados, a salvaguarda das minorias. Numa hipótese extremada, imaginar que o desejo da maioria deve se impor, sempre, justificaria coisas inadmissíveis como o genocídio. Afinal, a maioria decidiu, democraticamente, voto a voto, que aquele tipo de gente não deve existir. Tal extremo demonstra, claramente, que a democracia, como governo do povo, jamais deve se voltar contra parte do povo.

Vale destacar que o conceito de “minoria” não guarda relação necessária com a quantidade de pessoas nele enquadradas, mas com a quantidade irrisória, mínima, de representatividade política que o sistema lhe confere. Ainda que formem a maioria da população brasileira, as mulheres são sub-representadas politicamente, o que importa em dificuldade ou impossibilidade de influírem no modo de ser da sociedade e, portanto, a própria vida, situação bastante para que sejam consideradas uma minoria. Condição similar pode ser dita de outras categorias de pessoas, como negros e homossexuais, por exemplo. Algumas categorias são minoria em ambos os aspectos (quantidade e representatividade política), como os indígenas e pessoas com deficiência.

Ao menos no que toca ao aspecto formal, democracia com submissão ao estado de direito é a forma majoritária de organização política experimentada pela sociedade ocidental no presente. Estado de direito, por sua vez, é entendido como o cabedal jurídico que limita a atuação estatal ao garantir os direitos e liberdades individuais, assim impedindo ou mitigando o despotismo e o esmagamento do cidadão pelo peso do Estado. Justamente por constituir uma espécie de antípoda de ditaduras e tiranias, o ex-primeiro-ministro inglês Winston Churchill (1874 — 1965) afirmou que a democracia é o pior dos regimes políticos, porém não existe nada melhor (4). De fato, a democracia, idealmente, dá voz potencial a todos os cidadãos na escolha do próprio destino, sendo que a participação nos rumos da coletividade é um dos principais fatores de elevação da autoestima. Mesmo os que advogam pelo socialismo ou comunismo devem ter a democracia como indispensável para alcançar a felicidade comum, sob pena de repetição do fracasso de diversas experiências comunistas reais.

A definição de democracia, sob tal angulação, não se esgota e nem cabe simplesmente na “caixinha” descritiva do permissivo legal de “votar e ser votado”, ou seja, no exercício do sufrágio universal. A sociedade que suprima ou mitigue a isonomia democrática dos cidadãos não pode ser classificada de verdadeiramente democrata. No rigor dessa conceituação, o mundo jamais testemunhou o surgimento de um país verdadeiramente democrático, tratando-se a democracia absoluta de uma utopia ainda por realizar. Uma autêntica democracia jamais se desenvolverá na plenitude em ambiente social no qual o poder econômico seja privilegiado na escolha dos representantes políticos. E essa é a realidade no cenário mundial. O modelo político que autoriza a supremacia do poder financeiro possui outro nome, plutocracia, que é, em suma, o que se concretiza no mundo atual.

O efeito corruptivo da influência financeira culmina por submeter o comando político, o controle do governo, aos poderes oligárquicos, vale dizer, a uma parcela infinitesimal da população, representativa das facções de segmentos sociais minoritários, que busca se apropriar da res publica para satisfazer interesses próprios pela via do controle sobre o modo de divisão da riqueza. Uma sociedade fundada na prevalência política do interesse financeiro padece de um grave câncer que, se não tratado, sofrerá metástase, enfraquecimento geral do organismo e, finalmente, redundará na morte da democracia. A sociedade, todavia, não morre; transforma-se em outra coisa. Morta a democracia, nasce o lobo do totalitarismo, disfarçado ou não de cordeiro da liberdade.

O nível de interferência do poder financeiro na política é de tal magnitude que mesmo o país considerado o mais democrático do mundo, os Estados Unidos da América, é definido como uma oligarquia, segundo um estudo acadêmico realizado por pesquisadores das universidades de Princeton e Northwestern (5). O estudo, que coletou dados oficiais das políticas públicas realizadas pelo governo americano no período de 1981 a 2002, conclui que o sistema político dos EUA não representa os interesses da maioria dos eleitores, mas sim os dos ricos e poderosos e os de organizações consideradas de interesse especial (como as forças armadas). Segundo o estudo, os Estados Unidos são dominados politicamente pela elite econômica e, desse modo, o povo americano não exerce a democracia em sua essência.

Democracia, pois, é ainda uma utopia, apresentando-se, na verdade, como uma concessão do verdadeiro poder. Como visto, o real poder político emana da violência, de modo que a força militar estatal é capaz de pôr fim à democracia no momento em que a elite dominante assim desejar. Constituições nada garantem contra a força de tanques e fuzis. Nesse caso, o povo somente conseguiria manter a democracia, contra a vontade militar oficial, se fosse capaz de formar uma força militar rebelde ainda mais poderosa, ou seja, através da revolução popular. Contudo, no estágio atual de desenvolvimento do aparato tecnomilitar, isso não parece possível.

O que prepondera no sistema político mundial, de fato, é um simulacro de democracia, que se apresenta em uma configuração bastante rarefeita. Seu propósito é dar à população a ilusão de poder político para pacificá-la. O real poder, porém, é assegurado, pela degeneração do sistema, nas mãos dos que representam os interesses privilegiados.

Atribui-se a John Adams, presidente dos Estados Unidos no período de 1797 a 1801, a afirmação de que “democracia nunca dura muito e logo se desperdiça, exaure, e mata a si mesma. Nunca houve até agora uma democracia que não tenha cometido suicídio” (6).

  • A economia

O principal objetivo da política, como manifestação do poder, é a manipulação da economia. Afinal, o que vem a ser economia? Economia pode ser definida (7) como a ciência social que se preocupa com a atividade econômica a partir da análise da produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Na origem grega, significaria “regras domésticas” (oikos, casa, e nomos, lei), com isso pretendendo simbolizar os modos de administração do lar, com equilíbrio entre o que se ganha e o que se gasta. Sintetizando ao máximo, a economia analisa a produção e a circulação de bens, pretendendo definir o melhor modo de gestão dessas ações. Também pode ser descrita como o estudo da escassez, pois, efetivamente, se houvesse abundância de tudo, não haveria necessidade alguma de se preocupar com a gestão das coisas. Segundo Thomas Sowell (1930- ), economista americano,

A primeira lição da economia é a escassez: nunca há algo em quantidade suficiente para satisfazer os que o querem. A primeira lição da política é desconsiderar a primeira lição da economia (8).

A ausência de certeza científica da opinião publicada sobre economia é reconhecida mesmo por expoentes dessa matéria, como o americano John Kenneth Galbraith (1908-2006), para quem “na economia, esperança e fé coexistem com grande pretensão científica e também um desejo profundo de respeitabilidade”. Opiniões econômicas divulgadas pela imprensa em geral reproduzem as encenações dos oráculos gregos, cujas charadas poderiam se encaixar em quase todas as ocorrências do futuro. Em função dessas peculiaridades – dubiedade científica, intensa subjetividade impregnada nos resultados e natureza premonitória – erros de previsões econômicas são corriqueiros, porém jamais admitidos, pois sempre podem ser atribuídos à ocorrência de variáveis supostamente imprevisíveis (desculpa que, por si só, desmoraliza a ciência econômica). Com uma frequência maior do que o sentido ético exigiria, o discurso econômico é instrumentalizado para a intervenção e manipulação das tendências do mercado, as chamadas profecias autorrealizáveis. Em outras palavras: a opinião fraudulenta de um economista renomado, publicado em grandes jornais, pode conduzir a economia a se comportar como intimamente deseja o fraudador. A reconhecida economista britânica Joan Robinson (1903-1983) atesta o usual descompromisso com a ética e a verdade de alguns profissionais dessa área de conhecimento ao dizer que “o objetivo de estudar a economia é (…) aprender a não ser enganado pelos economistas” (9). No entanto, tais previsões gozam de imenso prestígio, inversamente proporcional, parece, à sua efetiva utilidade social.

Por outro lado, por não jogar água no moinho dos interesses da elite, pensamentos econômicos de envergadura, efetivamente acadêmicos e que independem de financiamentos vindos de grandes grupos de investidores (e, portanto, isentos), via de regra não gozam de prestígio nem na academia nem na imprensa.

  • O binômio democracia-capitalismo

Aparentemente, a prevalecer as conclusões das ciências da ordem, a democracia teria encontrado um sistema econômico que com ela forma um par perfeito na direção dos negócios públicos e privados: o capitalismo. Baseado na propriedade privada, nenhuma pessoa que defenda o liberalismo, entendido como a liberdade de autodeterminação da própria vida, pode ser contra o capitalismo sem incorrer numa contradição em termos. Ainda assim, democracia e capitalismo parecem ter fracassado no objetivo de estender à humanidade a qualidade de vida que deveria ser um efeito necessário do desenvolvimento humano. Por quê? A resposta, pungente, é: democracia e capitalismo degeneraram por excesso de liberdade deste último.

Praticamente todas as ações humanas estão sujeitas a alguma restrição de liberdade individual, condição absolutamente necessária à manutenção da saúde do tecido social. Seria bastante difícil ou mesmo impossível viver numa sociedade que não penalizasse o homicídio, a apropriação indevida do patrimônio alheio e a violação da liberdade sexual, para ficar nesses exemplos. A democracia e o capitalismo, como produtos da ação humana, não estão imunes ao cometimento de excessos e abusos, de modo que não podem ser excluídos da regra geral de restrição das ações individuais em benefício da coletividade. E, na verdade, sendo passíveis de excesso como qualquer direito, estão de fato sujeitos a diversas restrições. Ocorre que, em relação ao capitalismo, as amarras foram afrouxadas ao longo do tempo, com excessiva desregulamentação em benefício, principalmente, de um tipo de capital meramente especulativo, que não produz um parafuso sequer e que, justamente por isso, é incapaz de produzir emprego e renda.

Historicamente, os ricos sempre foram senhores do Estado, num primeiro momento como monarcas e, posteriormente, até os nossos dias, como eleitores privilegiados. Salvo poucas exceções, ou os ricos estão no poder diretamente ou o poder é exercido pelos escolhidos da riqueza. A estreiteza da relação riqueza-governo é de tal ordem que a própria existência do Estado, sua gênese histórica, é atribuída à necessidade sentida pelos poderosos de criar uma instituição garantidora da propriedade. Por esse motivo, é bastante ingênua a ideia de que o Estado possui o monopólio da corrupção, enquanto o mercado é puro e casto, sendo conspurcado pela ação estatal. Riqueza (portanto, mercado) e Estado são e sempre foram sócios no interesse patrimonialista de apropriação quase integral do produto do trabalho humano. A corrupção do mercado precede a do Estado, pois o objetivo do vício é garantir a preferência em algum interesse privado.

Ante as profundas imbricações entre mercado e Estado, conclui-se que democracia real foi e continua a ser uma utopia longínqua. Mesmo quando se fala em democracia clássica grega – um exemplo de participação direta do cidadão –, o modelo guarda pouca relação com o que se entende por democracia popular. De fato, o comparecimento à praça da Ágora era exclusividade de cidadãos homens nascidos de pais atenienses, uma casta de privilegiados. Mulheres e estrangeiros residentes eram excluídos da democracia. Além disso, havia servidão e escravidão em Atenas, obviamente sem direito algum para servos e escravos, o que por si contraria o sentimento que temos hoje em relação às pretensões universalizantes e aos objetivos da democracia.

Contudo, num único e breve momento da história, cujo apogeu não chegou a cem anos, um espirro histórico em quase cinco mil anos de civilização, uma parte da própria elite econômica e cultural, talvez entediada pela mesmice, inaugurou uma nova forma de pensar que ficou conhecida como Iluminismo. Os iluministas eram membros altamente intelectualizados da elite, pensadores que puseram a razão acima dos temores mitológicos que até então dominavam a humanidade. No crepúsculo desse período, Nietzsche chegou a decretar a morte de Deus. O filósofo só não previu que, tratando-se de um ser todo-poderoso, no final do século seguinte Ele ressuscitaria, com bastante apetite para angariar fundos, nessa avalanche neopentecostalista.

Essa facção diletante e aborrecida da elite europeia começou a pensar em coisas como o abandono das barbaridades da Idade Média, obscurantismo religioso e arbitrariedades do Estado. O iluminismo iniciou um processo de valorização do ser humano, visando à construção de uma nova sociedade, fundada axiologicamente no altruísmo social e na dignidade do ser humano. Havia um quê de utilitarismo no objetivo pretendido por essa elite de intelecto entediado que ousou desafiar as repugnâncias de sua época. Não era, propriamente, o bem do indivíduo que se buscava, mas da sociedade. Afinal, uma sociedade com uma carga menor de carências individuais é certamente capaz de gerar um ambiente menos perigoso para circular, possivelmente com um grau de felicidade geral maior, além de mais cheirosa e bonita de se ver, segundo os padrões da elite a que pertenciam.

Embora o ciclo do pensamento iluminista tenha durado pouco, encerrando-se no despertar do século XIX, ecos dessa forma racionalista de pensar, pressupondo a valorização do ser humano, persiste até os dias de hoje e foi consagrada em instrumentos históricos notáveis, como a constituição americana e a carta dos direitos humanos. Nossa constituição é permeada por valores iluministas, embora um ou outro ministro do Supremo, em tese guardião da Carta Magna, afirme-se iluminista ao tempo em que auxilia a apagar as luzes desses valores.

Esse espirro histórico durante o qual uma fração da parcela afortunada da sociedade enfrentou o desafio de pensar a alteridade, refletindo sobre a própria obrigação moral de cuidar dos desvalidos, veio a causar, tempos depois – reforçada pela influência de outros eventos históricos importantes, como a ascensão das ideias de Marx e as grandes guerras –, um pequeno, mas significativo relaxamento na sofreguidão pelo lucro. Por um breve instante histórico, repentinamente a sociedade humana passava a impressão de que tinha encontrado o caminho para o florescimento de grande parte dos indivíduos, um arranjo saudável entre a busca pelo lucro e a necessidade de excluir a experiência humana da miséria abjeta. Durante esse piscar de olhos, nós parecíamos realmente ser a espécie mais inteligente do planeta. Tudo levava a crer que o binômio democracia-capitalismo teria sucesso.

A legislação trabalhista protetiva ganhou impulso, um patamar salarial mínimo é garantido, estipula-se um máximo de horas para o trabalho, o Estado passa a conceder assistência social aos desfavorecidos, o acesso a uma educação fundamental é garantida, assim como o acesso à saúde básica, além de outras iniciativas vocacionadas à eliminação da condição de vida degradante. Um pouco depois disso, em meados do século XX, ao bem-estar da população veio agregar-se uma outra concessão do capital: a redução da miséria pelo incremento na renda. Foi a época dos baby boomers americanos e dos Trinta Gloriosos da França (10). Nesse momento histórico, também se inclui o período de crescimento brasileiro denominado de “cinquenta anos em cinco”, do presidente Juscelino Kubitschek.

Entretanto, quando tudo indicava que a associação entre democracia e capitalismo cumpriria o desígnio para o qual estava predestinada – conduzir a humanidade ao paraíso na Terra e salvar o planeta da miséria –, eis que se inicia um desagradável retrocesso, a partir de meados dos anos 1960, e se reacende a fogueira quase apagada da degradação da condição humana. Perdem-se totalmente ou são mitigadas as conquistas históricas do desenvolvimento civilizatório iniciado a partir do final do século XIX. A América Latina se vê arrebatada por ditaduras, no Oriente Médio inicia-se um processo de desestabilização política que ainda persiste, a Europa torna-se um fantasma do que chegou a ser, do que poderia ainda ser.

Quem é o culpado? Quem estragou a festa da civilização? O culpado mais provável é o surgimento de um novo tipo de visão capitalista: o neoliberalismo, a saber, o renascimento, na elite, da vontade em exercer o poder de modo absoluto, de retornar ao cenário dominante na época da barbárie humana, dos faraós, reis, czares e imperadores.

No próximo artigo, abordaremos os conceitos de neoliberalismo, globalização, geopolítica e grau zero da política.

Até lá!

Notas:

1 – FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o poder, 1982, conforme extraído de https://faccaoficticia.noblogs.org/files/2015/08/O-Sujeito-e-o-Poder-Foucalt.cleaned.pdf, em 29 de janeiro de 2019.

2 – ATKINSON, Sam (editor sênior), O livro da Sociologia, trad. Rafael Longo, São Paulo, Globo Livros, 2015, pág. 52.

3 – Extraído do site da revista Dinheiro Vivo, disponível em: https://www.dinheirovivo.pt/economia/as-familias-mais-ricas-sao-hoje-as-mesmas-que-as-da-idade-media-12844457.html. Acesso em 05/10/2021.

4 – Frase a ele atribuída, sem confirmação, conforme extraído do site Pensador, disponível em: <https://pensador.uol.com.br/frase/MTM5MTc4Mw/>.

5 – Disponível em:

<http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/northamerica/usa/10769041/The-US-is-an-oligarchy-study-concludes.html>. Acesso em 14/12/2017.

6 – Extraído do site Pensador, disponível em: <https://pensador.uol.com.br/frase/MTgxODI4Ng/>.

7 – Vide o verbete contido no site da Wikipedia, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Economia

8 – MOHUN, Janet (editor sênior), O livro da Economia, trad. Carlos S. Mendes Rosa, Globo Livros, 2015, pág. 13.

9 – Idem

10 – Termo que designa o período de trinta anos após o final da 2ª Guerra Mundial, que se estende 1945 a 1975, marcados por forte crescimento econômico na França e na maioria dos países desenvolvidos.

Links para os nove artigos anteriores: O indivíduo, parte I, O indivíduo, parte II, O indivíduo, parte III, O indivíduo, parte IV, Sociedade, parte I, Sociedade, parte II e Sociedade, parte III e Conceitos-chave para a interpretação da realidade, parte I e Conceitos-chave para a interpretação da realidade, parte II.

Marcio Valley é formado em Direito pela UFF, com pós-graduação em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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