E se o capitão não puder nos amar mais? Sobre o último instante de votar, por Carlos E. Ribeiro e Alexandre Filordi

A expressão de Freud é lapidar: não é simplesmente o ódio que alimentamos uns contra os outros, mas é uma “prontidão ao ódio”.

(Le désir est partout [Gérard Fromanger 1974])

E se o capitão não puder nos amar mais? Sobre o último instante de votar

por Carlos Eduardo Ribeiro e Alexandre Filordi

Muitos de nós já nos perguntamos: como é possível, após sucessivas manifestações de insensibilidade, banalização da morte, violências verbais, retrocessos sociais, escárnios políticos, indícios escancarados de corrupção etc., o bolsonarismo seguir firme e forte?  Longe de nós juízos de valores apressados: burrice ou ignorância, por exemplo. Tudo é mais complicado.

Temos de considerar um elemento central que normalmente não é simples de percebermos, o da identificação, mas que é fortemente pulsante: a identificação bolsonarista, com todo autoritarismo e regressão a certos desejos infantis que representa, é uma resposta de amor das massas. Estas, fragilizadas pela tormenta da miséria simbólica, afetiva e material do próprio neoliberalismo, veem no seu líder – ein Führer –  o ideal do eu transformado em eu ideal que, mostrando-se primariamente narcisista, pode tudo, diz tudo como deseja, não reconhece limites para nada, é forte e destemido, logo, onipotente, fascinante e desejado. É sob este vínculo idealizado de autoridade que Bolsonaro ocupa como lugar de objeto de amor das massas. Até aqui nada de novo e temos uma enxurrada de análises partindo da psicanálise para referendar essa identificação.

Chamamos, porém, a atenção para um outro lado que denominaríamos de negação progressista. Tomemos uma fala corriqueira, como se fosse alguém no divã: “Não podemos acreditar que os que votaram em Bolsonaro sejam todos fascistas”. Acontece que os afetos não circulam matematicamente e os votos em Bolsonaro não dizem exclusivamente se são ou não fascistas. A fala é negativa e carrega o seguinte sentido oculto: não podemos ser, não somos uma sociedade fascista. Mas o que somos, então, diante do desastre, diante da escolha feita? Que sobrou de nós? Aí é que está o cerne da negação: os sentimentos hostis estão simplesmente fora do circuito da compreensão desses afetos; estão barrados, porém, eles são a argamassa própria ao amor das massas pelo líder. 

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Em 1921, Freud teve o inteiro entendimento de que não se pode apenas atribuir um valor socialmente regressivo à formação das massas. O argumento em Psicologias das massas e análise do eu afirma que a sugestionabilidade, de fato, manifesta uma característica da coletividade identificada. Mas a quê? Que operação ela põe em cena? Em outros termos, Freud nos diz: é claro que há sugestionabilidade, afetação, diminuição intelectual, fascínios, prestígios e arroubos de contágios nas massas. Quem iria para a banda de Ipanema sem puxar junto a marchinha? Há tanto fascínio individual quanto uma formação totalizante que se impõe como pulsão social.  Pulsão-amálgama que provoca a grande sedução daqueles que se veem como iguais e igualados no ponto comum, por exemplo, no comandante que brada sincerão nas lives de quinta-feira. Mas isso não é tudo.

Na análise das massas artificias (Igreja e Exército) se revela a perspicácia própria da interpretação freudiana. A expressão massas artificiais pode sugerir que se trata de um estudo de caso e de uma artificialidade de um caso. Nada mais enganoso ler nisso um modo de deixar de lado as massas fugazes e, com isso, aventar que existem massas e massas, as boas e as más, as que se podem estudar os movimentos e àquelas que são passageiras. Acontece que todas as massas amam. Não à toa, que o que define a massa artificial é que seu objeto de amor está configurado: é a figura do líder. E configurado aqui tem a ver com o fato de o líder ser a “simulação do chefe supremo” ou o pai de todos, cuja ilusão mais importante é a de que “o líder ama a todos de modo igual e justo”. As massas são artificiais porque logram essa simulação como laços libidinais com o líder. Mas o que seria o correlato dessa simulação entre os membros de uma massa bolsonarista?

Nesse ponto é que ganha força a questão da hostilidade como formadora libidinal entre membros dessa massa. A parte VI de Psicologias das massas e análise do eu, intitulada “Outras tarefas e direções de trabalho”, marca o caráter em aberto das tarefas e direções da hostilidade.  Freud aventa a possibilidade de estudar a estrutura libidinal considerando as massas sem líder (ou com um substitutivo para ele). Chega a considerar que as massas religiosas, com seu chefe supremo intangível, são uma transição que colocaria já no lugar do líder uma abstração, um desejo comum, enfim, um objeto substitutivo ao vínculo direto com o líder. Qual afeto, contudo, forma esse “líder secundário”? Ele é associado por Freud a um espaço de negatividade: ódio comum entre o sujeito A e B contra C.

A expressão de Freud é lapidar: não é simplesmente o ódio que alimentamos uns contra os outros, mas é uma “prontidão ao ódio”. Prontidão que é o gatilho associativo para se recusar o outro; une-se ao redor da prontidão do ódio para se fortalecer as condições da destruição do outro. O divisor “hostilidade” se resolve sob determinado vislumbre que os membros entre si entreveem para diminuir a pressão do próprio sedimento de hostilidade como quem diz: “Vamos resolver isso logo!”. A massa não é hostil, mas vetor de hostilidades.

A expectativa de conjuntura, por estarmos diante dos últimos meses do governo Bolsonaro ou de sua confirmação, implica uma perspectiva antecipatória. A nossa pergunta é: o que os eleitores veem, compreendem e concluem no último instante de votar no segundo turno de 2022? “Nem todos são fascistas”: nada mais perigoso que fazer uma crítica política dos afetos sem incluir o principal deles, a hostilidade e de como ela organiza uma decisão formadora da coletividade. O resultado pode ser a melancolia do objeto perdido. Porém, pior ainda é o gatilho do pânico bolsonarista, o medo neurótico das massas que, antevendo a cessação dos seus laços afetivos, vota sob o gatilho: “E se o capitão não puder nos amar mais?”.

Nisso reside uma diferença crucial com outras massas de eleitores: para nós, a massa bolsonarista se une ao redor da identificação infantil com o desejo de onipotência, isto é, de que se pode tudo, logo, seus integrantes são incapazes de aceitar frustrações da realidade. Daí o recurso à prontidão do ódio, de se resolver tudo à bala, à mão, à militarização etc. Desconfiamos que 30 de outubro de 2022 poderá ser o dia da ambivalência social mais reconhecível da história do Brasil. E devemos estar preparados para os combustíveis capazes de catalisar a “prontidão do ódio” em atos associados ao medo da perda do grande líder, que não deixa de ser uma espécie de luto difícil de ser elaborado e aceito pelos enlutados.

Carlos Eduardo Ribeiro – Psicanalista e Professor na UFABC

Alexandre Filordi – Psicanalista e Professor na UFLA/UNIFESP

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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