Eleição sem preso, é fraude!, por Samuel Lourenço Filho

Eleição sem preso, é fraude!

por Samuel Lourenço Filho

O mote da campanha  que rola por aí, me incentivou a intitular  o assunto que trato aqui. Quando deu início a campanha “Eleição sem Lula, é fraude!” eu me apropriei do termo para ir além das grades! Eleição, sem preso provisório, é fraude. É o Tribunal Superior Eleitoral e os demais órgãos  e legislação que chancelam a minha façanha de fazer lembrar que o voto é direito do preso provisório.

Dizem que eleição sem voto impresso é fraude, outros dizem que a ausência de determinado candidato também. Eu entrei no coro, e afirmo: “Gente: eleição sem preso, é fraude!”. Esse exercício que já foi restrito a tantas pessoas, foi ampliado no curso do tempo, e ainda assim, deixa gente de fora. Cidadãos brasileiros têm o direito ao voto tolhido por puro descaso. Ou não seriam os presos reconhecidos como cidadãos? É bom jair assumindo qual nacional pode ser reconhecido como cidadão e quem assim não é reconhecido.

Preso em 2007, vivi uma baita experiência relacionada ao exercício da cidadania enquanto interno. No 2008, no município de Nova Iguaçu, um Delegado de Polícia,  responsável pelas carceragens do Estado do Rio de Janeiro, em ação conjunta com Escola de Serviço Social da UFRJ e outros órgãos e grupos de pessoas, realizaram o projeto “Carceragem Cidadã”, em que dentre as muitas atividades realizadas, o direito ao voto foi garantido aos presos provisórios daquela carceragem.

O projeto era muito potente, com uma possibilidade de alcançar milhares de presos provisórios no estado, mas infelizmente não avançou. Orlando Zaccone, é o nome do delegado na época, que atuou de maneira incansável enquanto pode. Mas acabou. Dentre tantos, cabe uma singela homenagem ao Delegado Orlando Zaccone, ao Desembargador João Batista Damasceno, e às Professoras Miriam Krenzinger  e Paula Kapp.

No Estado do Rio de Janeiro existem mais de 30 mil presos provisórios, e por lei, deveria existir um estabelecimento penal específico para os cidadãos. As Cadeias Públicas (Casa de Custódia,  Centro de Detenção Provisória) são assim denominadas para os devidos fins. Temos os presos e as cadeias específicas, o que falta aos agentes públicos o esforço para a garantia do exercício da cidadania e a efetivação dos direitos das pessoas privadas (temporariamente) de liberdade?

Uma vez,  ainda preso, fiquei pasmo com a afirmação de um colega sobre o motivo por não ter uma zona eleitoral na cadeia. “Samuca, isso aqui seria o maior curral eleitoral do mundo!”. Me empenhei em descobrir o que era curral eleitoral para ele, que, quando indagado, mudou para o “voto de cabresto” e por fim, já revelando seu preconceito,  disse que preso não saberia votar. É o típico entendimento superficial do tema. Assim como o meu.

Partindo do entendimento sobre o caráter representativo do voto, podemos imaginar o preso votando em seu representante. Daí vem os equívocos. Tem gente que insiste que a representação do preso é o líder da facção. Tem gente que entende que o preso vai votar em quem o chefe da cadeia mandar. E tem outras pessoas que insistem que o preso vai votar por interesses pessoais. Talvez seja esse momento para debater o quanto a prisão é um espaço comum com práticas tão habituais como aqui na sociedade extramuros. Me poupem ao afirmarem  que só os presos votariam por interesses pessoais!

Se os órgãos competentes, fizessem valer o direito ao voto dos presos provisórios, por certo, seriam mais cidadãos devidamente identificados. Falo da dignidade de possuir um documento além da Transcrição de Ficha Disciplinar ou da Folha de Antecedentes Criminais, que são os únicos documentos que o Estado não deixa de dar ao preso.

São milhares de presos que não possuem certidão de nascimento, identidade, CPF, Certificado de Reservista e Título de Eleitor. “Coloca o Passaporte na lista, seu defensor de bandido!” – diz o cidadão (de bem) raivoso. Pode ser uma boa também… Fiquei quase três anos aguardando sentença, nesse tempo poderiam me fornecer todos os documentos, e inclusive me garantido o direito de votar. As pessoas ficam amontoadas na prisão, e muito pouco é feito em favor delas e da cidadania, no que diz respeito à documentação.

Eleição sem preso,  é fraude, pois tira do jogo político milhares de presos,  e talvez esse seja o jogo:  ficar de fora. A quantidade presos que são impedidos de votar pode influenciar na escolha de um vereador, deputado, senador e presidente. O voto do preso provisório é um instrumento potente. Que é jogado de lado.

Esse papo de preso trocar o voto por algo é tão mesquinho. Imagina o preso trocando o voto por uma cela com grade pintada. “Se vocês me elegerem, eu pintarei as galerias, vou fazer melhorias na comida, vou aumentar o tempo de visita, vou garantir que o sabonete e a pasta de dente cheguem de fato aqui!” – imagino o candidato do preso oferecendo “vantagens”. Que vantagem!

O que está em disputa, além do ódio que as pessoas têm de gente presa, é a conservação de uma mentalidade autoritária que não sabe fortalecer as tomadas de decisões por parte da população. Imaginar que preso possui direito é uma aberração, imaginar que o preso possua uma “arma” para se defender ameaça todo um sistema.

Imaginemos, uma Escola de Ciências Políticas dentro da cadeia? Uma escola de debate, de  formação política, de debate sobre o que é ser cidadão (pois são vistos inicialmente, antes da condenação, como monstros, animais e bandidos, mesmo que sejam absolvidos depois) e tudo mais. Uma pausa e vislumbrem um comício dentro da cadeia “muito pão com mortadela” pra lanchar (ou coxinha, vá saber). Um monte de gente invadindo a cadeia para conversar com presos, o muro e grade sendo fragilizados pouco a pouco, até que a barreira do estigma seja derrubada.

Não se trata de naturalizar a prisão, de criar normas de convivência que justifique a existência da prisão, mas de fazer com que aquele espaço deixe de ser um espaço sem cidadãos como conhecemos na literatura acadêmica. Se reafirmam a prisão, não vou dar coro a favor, mas de forma humilde peço, que se mantenha de acordo com que exige a lei, pois quem descumpre lei (ou não ), são os bandidos que lá dentro estão. E a lei garante o voto!

O direito ao voto, é também um direito do preso provisório, e uma possibilidade de mudar a realidade da prisão e dos prisioneiros, pois com título de eleitor em mãos e outros documentos,  essas pessoas são vistas de uma forma menos desumana. Quando as campanhas publicitárias do TSE circulam, sempre falam da cidadania, e que todos são cidadãos. Há um esforço imenso para alcançar as pessoas aqui fora. Tá na hora de reconhecer a cidadania daqueles que estão do outro lado do muro, inclusive do ex-presidente . Afinal, eleição sem Lula, é fraude!” e sem presos provisórios também. E se soa grosseiro chamar de fraude, retrato-me, e solicito um nome possível para um processo que descaracteriza a cidadania de milhares de cidadãos.

Samuel Lourenço Filho – Cronista, palestrante, egresso do Sistema Prisional, aluno de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social -UFRJ
Samuel Lourenço Filho

1 Comentário

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  1. Preso provisório tá no pleno exercício dos direitos políticos

    Preso provisório pode votar e ser votado, pondendo até mesmo ser eleito, diplomado e empossado se a provisoriedade de sua prisão não decorrer de sentença condenatória imposta ou confirmada por órgão judicial colegiado.

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