Existe crime ecológico perfeito? Por Fábio de Oliveira Ribeiro

Uma análise sobre a saga envolvendo o porta-aviões brasileiro desativado pela Marinha

Reprodução

Por Fábio de Oliveira Ribeiro*

Há exatamente 36 anos comecei a estudar Direito Penal. Meu primeiro professor dessa matéria tinha um princípio: os alunos que não obtivessem média 7 nas provas escritas teriam que primeiro dizer o que é crime e quais são seus elementos constitutivos para poder fazer exame oral no final do ano.

Crime é o ato antijurídico culpável. Seus elementos são fato típico, ilicitude, nexo de causalidade e culpabilidade. Não existe crime sem autor, mas a vítima do crime não precisa ser necessariamente uma pessoa. Esse é o caso do crime prescrito no art. 271, do Código Penal:

“271 – Corromper ou poluir água potável, de uso comum ou particular, tornando-a imprópria para consumo ou nociva à saúde:

Pena – reclusão, de dois a cinco anos.

Parágrafo único – Se o crime é culposo:

Pena – detenção, de dois meses a um ano.”

Para que esse crime seja consumado não é necessário que uma pessoa seja envenenada ou contaminada ao consumir a água potável que foi corrompida ou poluida. Algo semelhante ocorre em relação aos crimes ambientais prescritos nos arts. 33 e 54, da Lei 9605/98:

“Art. 33. Provocar, pela emissão de efluentes ou carreamento de materiais, o perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras:

Pena – detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas cumulativamente.

Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas:

– quem causa degradação em viveiros, açudes ou estações de aqüicultura de domínio público;

II – quem explora campos naturais de invertebrados aquáticos e algas, sem licença, permissão ou autorização da autoridade competente;

III – quem fundeia embarcações ou lança detritos de qualquer natureza sobre bancos de moluscos ou corais, devidamente demarcados em carta náutica.

Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:

Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.

§ 1º Se o crime é culposo:

Pena – detenção, de seis meses a um ano, e multa.

§ 2º Se o crime:

– tornar uma área, urbana ou rural, imprópria para a ocupação humana;

II – causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que momentânea, dos habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da população;

III – causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público de água de uma comunidade;

IV – dificultar ou impedir o uso público das praias;

– ocorrer por lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos:

Pena – reclusão, de um a cinco anos.

§ 3º Incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível.”

Nos últimos dias nós vimos a saga do porta-aviões brasileiro desativado pela Marinha. A imprensa noticiou que ele estava cheio de resídios tóxicos e que se fosse a pique provocaria um dano ambiental irreparável. Nada foi feito para descontaminar a embarcação e ela foi afundada.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn”      

“O procedimento ‘planejado e controlado ocorreu no fim da tarde’ a cerca de 350 quilômetros da costa e em uma área de ‘profundidade aproximada de 5 mil metros’, informou a Marinha.”   

A legislação brasileira aplica-se apenas ao território nacional. O mar territorial brasileiro se estende até 200 milhas da costa (321,869 quilômetros). Portanto, em tese não é possível dizer que o almirante que mandou afundar o porta-aviões contaminado em águas internacionais cometeu crime.

O Brasil é signatário de diversos acordos internacionais que reprimem a poluição oceânica. O cumprimento delas se tornaram imperativos em decorrência do disposto na Lei 9.966/2000.  O art. 2º, inciso X, define substância nociva ou perigosa para o efeito da Lei: “qualquer substância que, se descarregada nas águas, é capaz de gerar riscos ou causar danos à saúde humana, ao ecossistema aquático ou prejudicar o uso da água e de seu entorno.”

Em tese a Marinha não poderia afundar o porta-aviões antes de remover dele todos os resíduos tóxicos. Todavia, o art. 3º da Lei 9.966/2000 esclarece que a mesma se aplica às águas sob a jurisdição nacional, o que obviamente excluir qualquer ilicitude praticada em águas internacionais.

A Marinha sabia o que estava fazendo, mas se preocupou mais com a impossibilidade de punição do comandante que mandou afundar o navio em águas internacionais do que com os efeitos ecológicos catastróficos de sua decisão. Isso recoloca na ordem do dia a definição de ecocídio.

O fato do crime ecológico ter sido praticado em águas internacionais não impede que o mesmo seja apreciado. Todavia, o afundamento da embarcação contaminada teria que ser levada ao conhecimento do Tribunal Penal Internacional. E isso sugere um outro problema: como obter prova material de um ecocídio ocorrido a 5 mil metros de profundidade.

O Brasil construiu o Açude de Cocorobó para soterrar sob um lago o crime humanitário cometido pelo Exército em Canudos. Ao que parece, algo semelhante foi feito pela Marinha no caso do porta-aviões contaminado desativado descartado em águas profundas.

É evidente que a Marinha não escolheu de maneira aleatória o local para afundar o porta-aviões desativado. A ideia básica do comandante dela é evidente: sem prova da materialidade do crime o TPI não poderia condenar o almirante que mandou praticar o ato criminoso. Nós estamos diante de um crime perfeito? A resposta é não.

A tecnologia para apurar os danos causados pelo descarte de “… 9,6 toneladas de amianto, substância com potencial tóxico e cancerígeno, além de 644 toneladas de tintas e outros materiais perigosos” a 5 mil metros de profundidade pode não existir na atualidade. Mas isso não significa que ela não será desenvolvida nos próximos anos. Os responsáveis pelo que já está acontecendo podem se sentir impunes, mas eles não devem dormir tranquilos.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Fábio de Oliveira Ribeiro

3 Comentários

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  1. O domínio marítimo de 200 milhas MARÍTIMAS equivale a cerca de 370,4 km (milha marítima equivale a 1.852 m). A distância de 321,8 km equivaleria a 200 milhas terrestres (a milha terrestre equivale a 1.609 m).

  2. “O domínio marítimo de 200 milhas MARÍTIMAS equivale a cerca de 370,4 km (milha marítima equivale a 1.852 m). A distância de 321,8 km equivaleria a 200 milhas terrestres (a milha terrestre equivale a 1.609 m).”

    Grato pela informação.

    Obviamente isso muda completamente o que foi dito aqui. Nesse caso o crime teria ocorrido dentro do território brasileiro e poderia em tese ser apreciado e julgado pelo nosso Judiciário. Todavia o almirante que mandou afundar a embarcação poderia argumentar que a comunidade internacional não reconhece as 200 milhas marítimas brasileiras. A dúvida razoável se esse limite além da costa brasileira é ou não aplicável obrigaria o Judiciário a decidir uma questão preliminar para definir se o crime ocorreu ou não crime dentro do território brasileiro.

  3. Matéria ridícula e sensacionalista, nada aprofundado e sem elementos mínimos para aferir o que e foi dito pelo autor, nem mesmo a correta distância que representa 1 milha náutica. Sugiro que parem de fazer política e tentem fazer jornalismo, e não esse folhetim da CUT. Mudem essa cabecinha ideológica idiota.

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