O compromisso democrático, por Marcus Ianoni

Da frente única antipetista à frente ampla com Lula: o resgate democrático do Planalto

Ricardo Stuckert

do A Terra É Redonda

O compromisso democrático

por Marcus Ianoni

Como várias análises reconhecem, a eleição presidencial de 2022 marca uma virada no processo político de regressão democrática que estava em curso no Brasil, sobretudo, desde 2016, com a deposição da ex-presidente Dilma Rousseff. A principal variável nova, resultante das urnas, é a sinalização de que a cambaleante democracia brasileira passa a recuperar o vigor capaz de reverter a trajetória de decadência a que havia sido jogada, em especial, pelo bolsonarismo, movimento de perfil neofascista, que colonizou várias instituições do Estado nos últimos quatro anos e instaurou o caos na sociedade.

A eleição de Lula apoiou-se, desde o primeiro turno, em uma coalizão qualificada como sendo de frente ampla, pelo seu propósito de unir partidos e atores sociais até então adversários em torno do resgate democrático do governo federal e da nação. Dez partidos compuseram a coligação registrada no TSE: Federação Brasil da Esperança (PT, PCdoB e PV), PSB, Federação PSOL Rede, Solidariedade, Avante, Agir e PROS. O PCO também apoiou Lula desde o início. No segundo turno, juntaram-se mais 4 agremiações – PDT, Cidadania, PCB e PSTU –, totalizando 15 partidos.

Além disso, o líder petista contou com o sólido apoio da candidata presidencial e senadora do MDB, a senadora Simone Tebet, assim como o PSDB e o União Brasil liberaram seus diretórios para apoiarem quem quisessem. Em São Paulo e Pernambuco, por exemplo, o PSDB fez o L. Nove ex-presidenciáveis apoiaram Lula no segundo turno, entre os quais Fernando Henrique Cardoso. Agora, com o governo de transição em atuação, o MDB oficializou sua participação nessa etapa-chave e indicou mais três de seus quadros, além da senadora já integrada.

De novembro de 2019, quando saiu da prisão, até 30 de outubro de 2022, Lula, líder popular e carismático, transformou veto em voto e em aliados. Converteu em voto na frente ampla o veto que recebeu em 2018, quando, em contexto de extremado antipetismo e lawfare, foi preso e impedido de concorrer ao pleito. Na ocasião, os liberais se uniram em frente única contra o PT, contra a esquerda. Desde meados deste ano que finda, uma das principais novidades da conjuntura foi a ruptura de uma parcela das lideranças políticas e sociais liberais com a transigência em relação ao autoritarismo bolsonarista, evidenciada, já antes do pleito, em iniciativas como a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito! A locomotiva desta ruptura foi a chapa Lula-Alckmin, que PSB e PT formalizaram desde abril-maio.

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Não é pouca coisa, muito pelo contrário, o país ter transitado da frente única antipetista à frente ampla com Lula, após transitar na corrosão democrática aberta pelo golpe de Estado de 2016 e aprofundada no (des)governo de Jair Bolsonaro, que, entre outros, não passou pelo teste da crise da pandemia, que também contagiou a economia, maltratada pelo negacionismo sanitário, por Paulo Guedes, pela sede de reeleição do capitão, pelo orçamento secreto do centrão etc.

As situações de crise são propícias a mudanças em três elementos-chave extraídos da análise do conceito de Estado: regime político, políticas públicas e coalizões. Regime refere-se às regras do jogo político institucional, à formação e troca do governo e à sua duração, às liberdades e direitos existentes ou não etc. As políticas públicas dizem respeito às propostas e decisões governamentais sobre temas de interesse público, destacando-se, obviamente, o tema da economia, pelo seu impacto na renda dos trabalhadores, das firmas e do próprio Estado.

Por fim, seja para decidir sobre as regras político-institucionais ou sobre as políticas públicas, os agentes do Estado (políticos e burocracia de carreira) precisam de apoio, que advém de coalizões, no sentido amplo do termo. Um partido, por si só, é uma coalizão entre atores, eleitores, grupos sociais etc, constituída tanto formal quanto informalmente. Não raro, partidos coalizam-se entre si. Examinando as coalizões em perspectiva ampliada, elas são político-institucionais e sociopolíticas. Os executivos, parlamentos e partidos não são ilhas à parte do mercado e da sociedade.

A história mostra que o compromisso democrático dos atores é uma barreira contra a autocratização e assim se deu nessa eleição presidencial no Brasil. Na Grande Depressão, Hitler, após se eleger, em 1932, pressionou exitosamente o presidente Hindenburg, com o apoio ativo da grande burguesia, para ser nomeado Chanceler da Alemanha, em um contexto de divisão entre a social-democracia e o Partido Comunista, devido à recusa da unidade dessas organizações dos trabalhadores pela Terceira Internacional, já controlada pelo stalinismo. Assim se abriu o caminho para a frente única fascista.

Nessa mesma grande crise, a coalizão do New Deal, costurada em torno do presidente Roosevelt e dos Democratas, conciliou demandas de grandes empresários urbanos e rurais e dos trabalhadores, que tiveram seus direitos reconhecidos (organização sindical, barganha e ação coletivas, seguridade social). Nessa mesma crise, enquanto no Brasil desenrolava-se o processo político da Revolução de 1930, formou-se no Reino Unido, em 1931, o inusitado Governo Nacional, uma coalizão entre o Labour, os Tories e os Liberais, que durou até 1940 e causou um impacto político-institucional democratizante, respaldado pelo big business, mas que não bloqueou algumas conquistas relevantes dos trabalhadores, como o Holidays with Pay Act 1938, que garantiu as férias remuneradas, só abolidas pelo Statute Law (Repeals) Act 2004, no governo de Tony Blair.

No Brasil do pós-guerra, fatores externos e internos – nesse caso, pode-se destacar o Manifesto dos Mineiros e o próprio fato do país, então, ser uma ditadura que lutara na trincheira dos Aliados – reconfiguraram, por meio de pressões civis e militares, a relação de forças e conduziram Vargas à renúncia, abrindo-se a democracia populista.

A crise do capitalismo neoliberal, aberta na Grande Recessão (2007-2008) e desdobrada na crise da dívida europeia e na desaceleração dos países emergentes, foi e tem sido o esteio de diversas modalidades de autocratização, inclusive de perfil neofascista, como se pode conceber o trumpismo e o bolsonarismo. O desempenho ruim ou insatisfatório da economia, a austeridade fiscal e o correlato aumento da desigualdade alimentam a emergência, em vários países, inclusive na Europa, de lideranças políticas conservadoras e autoritárias, que sustentam discursos xenófobos, racistas, de exclusão dos estrangeiros, eurocépticos, nacionalistas, anti-imigrantes, anti-islâmicos, misóginos e assim por diante.

Trata-se da busca de uma saída para a crise do capitalismo neoliberal, uma alternativa que é, por um lado, socialmente restritiva, em termos de políticas públicas e, por outro, politicamente contrária ao regime da soberania popular, mas que, dado o apelo normativo do poder do povo, almeja uma legitimidade de massas para o autoritarismo: America First, Nós somos a maioria etc.

Note-se que, no contexto da crise da dívida europeia, o UK Independence Party (UKIP) cresceu no Reino Unido, onde também surgiram alguns líderes fascistas, como Nick Griffin, do British National Party, ocorreu a vitória do Brexit em 2016 etc. Na Alemanha, o neonazismo emergiu, sobretudo com o Alternativa para a Alemanha (AfD), criado em 2013. Porém, nesses dois países, apesar da gritaria de alguns grupos de extrema direita, o pacto democrático bloqueou seu desenvolvimento, ao passo que, nos EUA e no Brasil, a democracia foi colocada em risco. Na Alemanha, destacam-se, nesse período, vários governos de grande coalizão entre CDU/CSU e SPD.

Em todos os exemplos acima mencionados, as crises rearranjaram as três variáveis do Estado: regime, produção de políticas públicas e coalizão de sustentação. Nem sempre a mudança é de regime. Pode haver mudança no regime, ou seja, mais ou menos democracia ou autoritarismo. No rearranjo do Estado, tendem a mudar e mudam também o leque de políticas públicas e as coalizões. Nas políticas públicas, nem sempre a mudança é de paradigma, como no caso da passagem da ortodoxia neoclássica para o keynesianismo, na grande depressão. Nos governos de Lula (2003-2010), por exemplo, a política macroeconômica flexibilizou o tripé (metas de inflação e de superávit primário e câmbio flutuante), sem romper com ele.

Apesar do marco político que a vitória de Lula representa, a extrema direita mostrou força social e partidária. Sua representação no Congresso conquistou um relativo aumento, capitaneado pelo PL, embora a Federação Brasil da Esperança também tenha crescido, ainda que menos. A vitória eleitoral da frente ampla possui grande significado, mas foi apertada, suada, difícil. Em todo o caso, a vontade da maioria dos eleitores apontou para a reconstrução da democracia e da economia.

O desafio é que a frente ampla alavanque a transição, a retomada gradual do desenvolvimento político, econômico e social do país. É um desafio imenso, dado o contexto internacional desfavorável, o caráter heterogêneo e eclético da coalizão ampliada em construção, a avareza e irracionalidade do mercado e, entre outros, o fato de que a polarização da extrema-direita contra os democratas não está dando sinais de trégua, haja vista as ocupações de rodovias e as demandas golpistas dirigidas aos quartéis e patrocinadas por empresários, o messianismo apocalíptico atribuído ao futuro governo etc.

Mesmo assim, a sustentação da democracia requer desempenho. Por sorte, Lula é um animal político e não há hoje no Brasil nenhum líder mais capacitado que ele para exercer a arte da política democrática no sentido de colocar a frente ampla a serviço da nação como um todo, e não da plutocracia, como fez a coalizão bolsonarista, altamente elitista. O espaço aberto para a ação política de envergadura nacionalmente ampliada é a grande vitória que as forças civilizadas e progressistas conquistaram, após aprenderem tragicamente que a unidade dos liberais em torno do autoritarismo significou sinal vermelho para a democracia.

Na verdade, a eleição presidencial mostrou que o sinal verde para a democracia neste país politicamente polarizado é vermelho, ou melhor, rosa. O Brasil está ingressando na Segunda Onda Rosa da América Latina.

Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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