O embate do debate e o debate no embate – provocações retóricas, por Nathan Caixeta

No primeiro debate presidencial para as eleições de 2022 (28/08), no formato pool, a dita cuja retórica, a preciosa arte do convencimento, apresentou-se com todas as suas formas

O embate do debate e o debate no embate – provocações retóricas

por Nathan Caixeta

*Escrito para minha coluna no Brasil Debate: https://brasildebate.com.br/author/nathancaixeta/

Me ocupo quase religiosamente em assistir às sabatinas, entrevistas e debates dos candidatos à presidência. Como cidadão, quero descobrir no emaranhado de propostas, qual dos postulantes ao planalto merece meu voto. Como escritor, observador político, prefiro destrinchar as intenções que estão explicita, ou implicitamente colocadas nas frases proferidas, ditas, ou malditas pelos candidatos.

A filosofia preservou um espaço especial para o estudo da arte do convencimento, isto é, da capacidade do discurso de alguém penetrar na razão, no inconsciente e na alma dos interlocutores. Partindo do estudo da arte de convencer, notou-se que o sucesso do discurso tem grande impacto na política, algo entre a arte de governar uma comunidade e a arte de convencer seus membros de que o governante (vai fazer, ou) está fazendo um bom trabalho.

No primeiro debate presidencial para as eleições de 2022 (28/08), no formato pool, a dita cuja retórica, a preciosa arte do convencimento, apresentou-se com todas as suas formas, desde a mais política, isto é, preocupada com os interesses da sociedade, levando a um diálogo entre o candidato e o eleitor, até a mais erística das formas, ou seja, como vencer uma discussão se utilizando de artimanhas como a mentira, o engodo, a intimidação, a ofensa pessoal e todos os truques que Maquiavel e Schopenhauer registraram em seus escritos.

O dia de ontem foi a démarche da disputa presidencial, reunindo, cara a cara, o neofascismo, a social-democracia, o trabalhismo brizolista, o ultraliberalismo atrapalhado e algo entre o centrão e o nada infinito. Reunindo, quatro homens contra duas mulheres. Reunindo dois ex-amigos que hoje flertam entre uma reconciliação e a mais distante das amizades – a indiferença odienta. Reunidos, também, aos arguidores da imprensa tradicional que são papagaios de seus patrões, para os quais o tema econômico é a principal preocupação. Um dia que a história registrará como prólogo de um outro Brasil no qual iremos viver.

Não tratarei das propostas apresentadas pelos candidatos. Minha preocupação é com a retórica e seu uso contra ou a favor da democracia e dos valores do humanismo que creio nortear as convicções da maioria dos brasileiros. Vamos nessa!

Começo pela retórica política, aquele preocupada com a comunicação entre o candidato e o eleitor, versando sobre as preocupações da sociedade. Por definição, o candidato se coloca diante dos interlocutores procurando cativar para após aprisioná-los pelo carisma, convencê-los ao informar sua história pregressa, suas promessas e planos de governo para as áreas mais sensíveis a cada parcela do eleitorado. Um jogo bem articulado entre sentimento e razão.

Trocando cartas com o coração do eleitorado, a habilidade da retórica segue, como vimos no pool, uma trilha definida: um primeiro cortejo, demonstrando ser respeitoso e boa praça, no popular “ser gente como a gente”. Um segundo momento de destaque aos pontos fortes da candidatura, recortando sua imagem como a maçã mais brilhante da árvore face à podridão, maior ou menor, de seus oponentes. Num terceiro ato, mais teatral, um misto entre de números para descrever a situação a ser enfrentada e o oferecimento do plano para resolver, e daí vem a promessa.

Essa forma de encantar o eleitorado é o mais refinado artificio que a televisão e as mídias sociais podem oferecer para “quebrar a quarta parede” entre os sentidos: ouvir, ver, compreender e emocionar-se, e por fim, produzir uma participação na experiência, como se o candidato estivesse sentado ao lado de cada espectador. O que define o sucesso nesse campo, da retórica política, é a capacidade do candidato em articular o carisma e a promessa, um meio-campo descritivo que o coloque como a melhor solução para o país.

O execrando Presidente, ao qual não chamo de excelência, senão de excelentíssimo asno, não foi para fazer política, pois como já anotei em outras oportunidades, seu método é a necropolítica, isto é, a destruição da política como ação comunicativa através do discurso do revanchismo e do pugilato odiento. Um exemplo cabal: o ataque misógino a jornalista Vera Magalhães, no qual o presidente desqualifica a profissional não por sua capacidade jornalística (atestada na boa e articulada arguição feita a Ciro Gomes para os comentários de Bolsonaro), mas por seus atributos morais, como “vergonha para o jornalismo”, justamente por estar citando um fato certificado pela CPI da COVID – a culpabilidade do chefe do executivo no atraso da compra de vacinas e sua participação na propina da Covaxin. Desqualificar moralmente o arguidor, oponente de ocasião que toma as vozes do público, ou de sua média representada pela mídia, é ir pelo lado da retórica como erística, do argumento ad hominem, isto é, num combate que não busca conexão com o eleitor, mas colocá-lo contra o oponente através da pura ofensa, um exemplo de necropolítica fresco e ao vivo!

Felipe D’ávila me parece um João Dória piorado. Não esperaria menos do Partido Novo, dos quais fazem parte os liberais da Faria Lima, os de burgueses de baixo clero, que querem adentrar na política imaginando que a administração pública se resume à administração de uma quitanda.

Nem uma, ou duas vezes, o candidato ultraliberal, não importando tema abordado, respondia criticando o gasto estatal e clamando pela necessidade de deixar os problemas nacionais serem resolvidos pela “força dos mercados”. Isso é vender o mais idiotizante discurso liberal como solução nacional. Roberto Campos, o Bob Fields, se estrebucha na tumba ao ver sua mensagem de vida e obra chegar a um debate presidencial e ser comunicada de forma tão monolítica, monossilábica e monoculturística.

D’ávila não foi pela erística e talvez desconheça, pelo passado empresarial, as possibilidades que a ofensa oferece como forma de ganhar um debate. Foi pela não-política, um discurso chocho que até pouco tempo esteve encampado pela turma do MBL, seus kims Kataguiris e Mamães Falei. Como o mundo viu com Reagan e Thatcher nos assombrosos anos 1980, e como o povo de São Paulo viu com João Dória, isso só pode dar numa coisa: um governante que não entende onde está e quando verifica que o Estado não funciona como uma empresa, tenta por um tempo aplicar sua “gestão” e depois desiste deixando destruição para trás.

Destaco, no campo da retórica-política, Simone Tebet que admitiu corajosamente abraçar a bandeira do feminismo, um feminismo de centro, seja lá o que isso significar. Juntamente à Soraia Thronicke, foram como leoas contra o bando de leões que brigavam pela posição de macho-alfa. De forma excepcional, foram pelo lado da discussão dos problemas relativos à situação da mulher na sociedade, temática que há 10 ou 20 anos não receberia mais de 10 segundos de atenção num debate eleitoral. Um avanço civilizador e educativo! Usaram a erística para ir contra Jair Bolsonaro em seu ataque a jornalista Vera Magalhães, um ato de coragem que deveria ter sido acompanhado pelos demais candidatos. Faltou-lhes feminismo, infelizmente.

Vamos agora ao candidato pedetista Ciro Gomes, a quem reputo ser a maior inteligência no meio político desde há muito tempo. O candidato do Ceará para a República tem um discurso cativante, lúcido e organizado quando voltado para suas ideias e propostas. É de seu feitio, algo destemperado, usar a erística quando convém, como observamos em seus embates com Lula e Bolsonaro, para se colocar como uma alternativa ao “menos pior”, dentre os dois mais fortes nas pesquisas eleitorais. Deu certo? Provavelmente, sim, e com certeza não!

Ficou claro seu distanciamento entre os dois lados do palco, do Petismo e do Bolsonarismo. Não foram nada eficientes suas ginásticas ao se colocar a favor da democracia, mas atribuir ao PT a crise econômica e a ascensão do Bolsonarismo. É um artifício da erística que não cola, a não ser dentre o pequeno grupinho “intelectualizado” que entende quando Ciro fala de seu ‘projeto do Novo-Desenvolvimentismo’, encomendado de Nelson Marconi, Mauro Benevides e Bresser Pereira. Fora dessa centro-esquerda brizolista, Ciro Gomes é a eterna promessa que nunca se realizou.

Uma pena para o país, pois não fosse seu ressentimento com o PT, Ciro poderia e seria – tenho convicção disso – o sucessor natural de Lula, antes e hoje. No entanto, Ciro Gomes, preferiu tentar ser Brizola, ao invés de evoluir para um caminho mais autoral, algo entre Ulysses Guimarães, Lula e o próprio Brizola. Já deixou claro que se malsucedido no primeiro turno, Paris o aguarda e a luta contra neofascismo que se exploda. A virtude subiu para o ego e o ego matou a virtude.

Trago para a cena da retórica-política, o possível vencedor, não do debate, que saiu sem alguém levar qualquer troféu, mas das eleições. O metalúrgico e ex-Presidente, ex preso-político, e atual candidato, maior que o próprio partido e sua militância, parte consciente, parte interessada, parte infantil e parte “estrelinha” – falo com o conhecimento de causa de ser próximo da militância.

Lula é o segundo maior presidente da história do País, não superou, em méritos, Getúlio Vargas e nem irá. Ainda assim, Lula não se corrompeu venalmente, como Sérgio Moro quis vender aos abutres da grande mídia, para como sabemos sonhar com o STF, com a presidência e com o senado, e acabar no banco dos réus. As absolvições das acusações da operação Lava-Jato atestam a inocência de Lula, nesse sentido. Também não se vendeu politicamente para o centrão como Ciro Gomes o acusou. Nós, de esquerda, quem deixamos nos iludir, colando no operário a imagem da classe operária, como lembrou, certa vez, o saudoso Chico de Oliveira.

Lula aprendeu perdendo eleições que para ganhá-las é necessário fazer alianças com quem realmente manda no país – as elites econômicas e, por conseguinte, seus office boys no Congresso Nacional, como os Renan Calheiros, Eduardos Cunhas e Micheis Temer da vida. Essa fórmula de política e de retórica obteve sucessos e fracassos registrados na história Lulista. O que Lula apresenta para frente? Essa é a questão.

No campo da política e nas atribuições da ação comunicativa, oferece o que tem de melhor: a habilidade de negociar. No campo da retórica, oferece o que sempre soube fazer: falar a língua do povo, soltando uma ou outra frase mal versada. Suas propostas: fazer mais e melhor do mesmo. O mesmo compromisso com o social, com o meio ambiente e com boas relações internacionais. O mesmo negócio com as elites: “eu dou a fatia que vocês querem” – deixando a política econômica a cargo de banqueiros e de economistas (com exceções) mais apaixonados por suas próprias vozes do que pelo povo – “e vocês me deixem dar as migalhas sobrantes para os mais pobres”. Estamos para ver: quanto o susto com Bolsonaro fará com que as elites concordem em aumentar a porção de migalhas.

Não me preocupa a conservação da conciliação pela dupla Lula-Alckmin, me preocupa o depois. Qual o futuro da esquerda sem alguém que absorveu tão fortemente as bandeiras da luta pelo social que não deixou espaço para outros, menos habilidosos, ou menos orgânicos com as classes fundamentais, surgirem? Fernando Haddad já mostrou suas proezas e limitações, mas evolui como quem percebeu que ficar na sombra não ajuda a escalar uma árvore. De resto, o que sobra do PT depois de Lula? Estou curioso para ver.

No debate, Lula deu um show de retórica política. Falou de tudo que era fundamental, afastando os pontos fracos e exaltando os pontos fortes, ambos os pontos encontrados em seu currículo e na “capivara” do PT. Faltou olhar para frente de novo. Falar na televisão, o que está e o que não está, por ausência, em seu excelente programa de governo.

No campo da retórica quem venceu foi a democracia, pois se viu que a necropolítica pode esvaziar-se tão rapidamente como preenche o ressentimento das pessoas. A política, como mediação entre Estado e Sociedade, floresceu por sua raiz mais primitiva e sincera, a retórica voltada ao contato com o povo. As repercussões? Teremos que esperar pelas pesquisas, próximos debates e pelas urnas. Usando um pouco de retórica da dialética, deixo minha impressão pessoal: o que vi foi o avesso do inverso do começo de um fim. Um Brasil morrendo, o do golpismo, o do fascismo, para outro nascer, o da nova democracia comandada pela velha, mas renovada plutocracia.

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador