O mundo antes e depois de nós, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Quando os poderes irresistíveis dos deuses também foram domesticados, os homens encontraram outros obstáculos.

O mundo antes e depois de nós

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Segunda-feira ao voltar para casa uma cena chamou minha atenção. Um jovem adulto com problemas de locomoção precisou fazer um grande esforço para descer do ônibus. Ele não reclamou, nem pediu ajuda. Havia uma grande dignidade no esforço dele. Essa imagem me fez lembrar que a imagem, como disse Georges Didi-Huberman, é “… a malícia da história: a malícia visual do tempo na história. Ela aparece, torna visível. Ao mesmo tempo ela desagrega, dispersa aos quatro ventos. Ao mesmo tempo, ela reconstrói, cristaliza em obras e em efeitos de conhecimento. Ritmo curioso, de fato: um regime sempre duplicado.” (Diante do Tempo – História da arte e anacronismo das imagens, Georges Didi-Huberman, Editora da UFMG, Belo Horizonte, 2015, p. 131)

A imagem trivial que eu vi rapidamente ganhou maliciosa profundidade que me permitiu desagregar e reconstruir a história. No fundo toda experiência humana ao longo da história pode ser definida como uma luta de superação.

Os primeiros homens precisaram muito esforço para domar as forças naturais que ameaçavam suas vidas e as vidas de seus filhos e parentes. Depois que as primeiras cidades começaram a ser construídas, quatro novos tipos de obstáculos começaram a surgir: o autoritarismo na família patriarcal, a carência econômica, a exclusão social e a opressão política.

Às quatro forças que a civilização obrigou os homens suportar e a superar outras vieram se somar. Os primeiros sistemas religiosos criados para pacificar a vida na polis, sincronizar os cidadãos e domesticar seus impulsos naturais deram origem aos poderes irresistíveis atribuídos aos deuses. Esses obviamente não podiam ser superados.

Os mitos gregos não são jornadas de superação, mas de trágica sujeição. Mesmo quando luta com todas as suas forças contra as imposições divinas o homem está fadado a ser derrotado. Não importa o que ele faça. Virtude ou vício são irrelevantes no final, pois uma vez traçado o destino há de se cumprir de uma maneira ou de outra.

Essas crenças fatalistas, porém, não foram capazes de interromper a jornada humana. Novas crenças surgiram e foram aperfeiçoadas. O fatalismo deu lugar à esperança. A certeza da derrota foi substituída pela dignidade do bom combate e, depois, pela autosuperação com ou sem intervenção divina.

As forças da natureza deram lugar às da civilização e estas às dos sistemas de religião. Quando os poderes irresistíveis dos deuses também foram domesticados, os homens encontraram outros obstáculos. Dessa vez dentro de si mesmos, oriundos de traumas, obsessões, neuroses, psicoses, etc… Forças ocultas que sempre atormentaram os mortais, mas que eram desconhecidas e incompreendidas, afloraram e foram submetidas à indagação científica.

Condenado a lutar consigo mesmo, cada homem passou a ser vitorioso ou vencido em seus próprios termos. Mas a reação da sociedade à essa libertação possível deu origem à opressão da propaganda de massa, que procura definir parâmetros artificiais para hierarquizar vitoriosos e derrotados obedecendo critérios sociais, econômicos e/ou políticos.

Nesse ponto estávamos quando a natureza retornou para assombrar nossas vidas. A mudança climática imposta pela modernidade industrial paradoxalmente nos faz retornar ao passado: é preciso temer os eventos climáticos catastróficos cada vez mais intensos e imprevisíveis. Nem mesmo os deuses conseguem aplacar os furacões, tufões, secas e inundações que produzem danos econômicos que ninguém gostaria de suportar.

Ver aquele jovem adulto com limitações lutando para descer do ônibus, sozinho, sem reclamar ou pedir ajuda me obrigou a fazer a refletir bastante. Nós não conseguiremos sair de um planeta cujo clima enlouqueceu. Nem podemos deixar de reconhecer a indignidade dos líderes políticos que se recusam a desafiar os “negócios como de costume” que transformaram o modelo econômico numa armadilha ecológica que destruirá a civilização humana.

Já tinha terminado essas reflexões sobre a imagem que eu vi ao retornar para casa segunda-feira, quando me ocorreu que ela guarda uma singular relação com a do filme “O mundo depois de nós”. Tudo aquilo que facilita a vida moderna (internet, inteligência artificial, selfdriving car, etc…) se volta contra a civilização norte-americana. Aterrorizados por fenômenos misteriosos sobre os quais não têm controle, os personagens reagem de maneira patética ao que está acontecendo.

Os pais não sabem o que fazer para garantir a segurança dos filhos adolescentes. A menina branca está mais preocupada com o final de uma série de TV antiga. A personagem interpretada por Julia Roberts é agressiva e reage de maneira paranoica aos imprevistos. O racismo dificulta o relacionamento entre o homem negro e sua filha e a família que alugou a casa dele. A natureza, representada pela manada de cervos, ameaça invadir perigosamente o cotidiano dos personagens. A guerra, vista à distância numa das cenas, já se encarregou de fazer isso. A amizade entre as nações terminou, mas ninguém pode dizer que os americanos são vítimas de seus inimigos (e não de si mesmos).

Algo precisa ser feito. A coragem da desesperança recomendada por Slavoj Žižek não basta. Essa parece ser a mensagem do filme “O mundo depois de nós”.

Todavia, a imagem construída pelo filme comentado também está fadada a ter um regime duplicado (Georges Didi-Huberman). O que é visto no cinema (ou na televisão) nem sempre é necessariamente aquilo que o expectador deveria ver. Além disso, desde o lançamento de um filme para denunciar o perigo de pegar carona nos trens durante a grande depressão nos anos 1930 (e que provocou uma verdadeira epidemia de freighthopping ou trainhopping), sabemos que os norte-americanos podem se sentir tentados a fazer o oposto daquilo que lhes foi recomendado no cinema.

O que nós fazemos quando vemos alguém com limitações motoras? Nós refletimos sobre as limitações que nos foram ou serão impostas pela civilização industrial ou apenas nos sentimos reconfortados porque podemos nos locomover com facilidade?

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Fábio de Oliveira Ribeiro

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