Nem Torá, nem Alcorão, por Liszt Vieira

Mesmo em tempos de guerra, a luta por direitos humanos e pela autodeterminação dos povos continua sendo uma das grandes bandeiras da civilização contra a barbárie

da Terra é Redonda

Nem Torá, nem Alcorão

por Liszt Vieira*

“O observador não faz julgamento moral. Tenta compreender e analisar a correlação de forças”.
(General Vincent Desportes, antigo Diretor da Escola de Guerra em Paris).

Com raras exceções, o ping-pong nas redes sociais sobre a guerra Hamas x Israel se resume, em última análise, à opinião de um torcedor de futebol: meu time sempre tem razão, o inimigo sempre está errado. Até a eclosão da guerra, havia na mesa de negociações duas propostas adormecidas. A proposta de “dois Estados” e a proposta de “um Estado, dois povos”. A primeira se enfraqueceu após a morte de Yitzhak Rabin, seu grande defensor. A segunda nunca chegou a emplacar, mas foi anunciada como proposta. O problema é que o Hamas não aceita nenhuma das duas. A única solução possível para o Hamas é a destruição e o aniquilamento do Estado de Israel. Isso o leva a posições extremadas, fora da realidade.

É verdade que existe povo e nação sem Estado, além dos palestinos. Os. curdos, por exemplo, perderam seu país e vivem localizados principalmente na Turquia e no Iraque. Mas a conjuntura era outra, e o Curdistão não tinha os apoios internacionais de Israel. A situação da “questão palestina” estava paralisada por falta de interesse das partes em fazer avançar propostas de paz. Na prática, a superioridade militar e política de Israel era satisfatória para Israel e seus aliados ocidentais. O que mudou? Ou melhor, por que mudou?

Os eventos políticos têm causalidade complexa e quase nunca podem ser reduzidos a uma única causa. Mas, em geral, uma ou outra se destacam. No caso, não há dúvidas de que o acordo, em negociação, entre Israel e a Arábia Saudita foi o estopim que detonou a invasão de Israel pelo Hamas. Esse acordo, com conversações já avançadas, romperia o frágil (des) equilíbrio existente e anularia completamente a possibilidade de um futuro para a Palestina.

Essa é a opinião de Pierre Brochand, antigo diretor da Direção Geral de Segurança Exterior (DGSE) e ex embaixador da França em Israel. Em entrevista ao jornal Le Figaro, de 10/10/2023, ele levantou importantes questões.

Segundo ele, o que ocorreu não tem precedente; o território de Israel nunca tinha experimentado operações de guerra terrestre deste tipo e magnitude. Se somarmos o espanto ligado à surpresa absoluta, à falta de reação imediata do exército, ao número de civis mortos e feridos e, ainda mais, sequestrados, homens e mulheres de todas as idades, incluindo soldados de alta patente, podemos ver o estado de espanto, não só dos israelenses, mas também do resto do mundo.

Ele compara a festa “rave”, organizada às portas de Gaza, altamente simbólica e vítima de brutal assassinato, ao já visto no Bataclan, em Paris, quando uma juventude “ocidental”, hedonista e cosmopolita, é atacada por outra, “retardatária”, violenta e frustrada.

É, portanto, difícil compreender como um ataque desta escala, que exigiu uma longa preparação e envolveu várias centenas de pessoas, poderia ter escapado a todos os sensores de informação da Inteligência israelense. O fracasso vai além dos serviços secretos: é também militar e estratégico. Quanto ao nível estratégico, é uma espécie de “grande desígnio” de Israel, no que diz respeito à questão palestina, que acaba de ser atingido diretamente.

Este projeto poderia ser analisado em duas partes: por um lado, isolar os palestinos dos Estados árabes, de modo a reduzir o conflito a um confronto face a face com o Estado hebreu. Por outro lado, dividir seu movimento nacional em pelo menos duas facções, uma vagamente cooperativa (a Autoridade Palestina, vinda da OLP e da Fatah) e a outra, apresentada como obstinada (Hamas e Jihad Islâmica).

De acordo com Pierre Brochand, em todos os casos, o objetivo era prolongar indefinidamente o status quo, ou seja, uma situação de “nem guerra nem paz”, sem solução política, em última análise confortável para Israel, cuja esmagadora superioridade de poder garantia a sustentabilidade a curto e médio prazo. O isolamento dos palestinos tinha, certamente, progredido notavelmente: o Egito, a Jordânia, os signatários dos “Acordos de Abraão” (Emirados Árabes Unidos, Bahrein), Marrocos, e o Sudão reconheceram o Estado de Israel um após o outro e concluíram acordos de cooperação com ele.

Agora chegou a vez de um peso pesado, a Arábia Saudita, guardiã dos locais sagrados, em conversações avançadas com Israel através de Washington. É evidente que a ofensiva relâmpago do Hamas mudou a situação e dificulta agora, durante certo tempo, pelo menos, qualquer aproximação entre um país muçulmano e Israel, nessa altura em que este último está a realizar operações de destruição maciça em Gaza. A invasão militar de Israel pelo Hamas recolocou a Palestina no centro da política mundial e abalou a tradicional política “nem guerra, nem paz” que tanto interessava a Israel.

Por outro lado, o general Vincent Desportes, antigo Diretor da Escola de Guerra em Paris, em entrevista ao jornal Le Figaro concedida ao jornalista Pascal Boniface em 11/10/2023, afirmou que o orgulho de Israel pela sua supremacia militar e o desprezo pelos palestinos e árabes explicam haverem sido surpreendidos, chegando até a desprezar a informação dos egípcios.

Acrescentou que a inteligência é mais importante do que a força e que a tecnologia não resolve tudo. Hoje, o dilema de Israel é trágico: se cumprir o que anunciou, teremos genocídio na faixa de Gaza, onde vivem dois milhões de pessoas, com severas repercussões para Israel e seus aliados ocidentais.

Israel bloqueou o fornecimento de água, eletricidade, comida e combustíveis à Faixa de Gaza, e vem bombardeando alvos militares e civis, inclusive hospitais, escolas e mesquitas. Já matou milhares e desabrigou centenas de milhares de civis, mobilizou cem mil soldados para as fronteiras de Gaza e convocou mais de trezentos mil reservistas para o combate.

O governo de Israel vai manter Gaza sem água, luz, comida e combustíveis até devolução dos reféns. Israel negou pedido da Cruz Vermelha que solicitou passagem de combustível para evitar que “hospitais sobrecarregados em Gaza se tornem necrotérios” (O Globo, 12/10/2023). Apesar das ameaças de Israel, Jordânia e Egito anunciaram ajuda humanitária a Gaza.

Com o agravamento da situação em Gaza, a queda de braço entre Hamas e Israel pode degenerar e escalar, com a participação no conflito de novos atores, como, por exemplo, o Hezbolah, a Síria e, em último caso, o Irã, já que isso significaria a internacionalização da guerra. Por enquanto, isso é especulação. O dilema de Israel é promover um genocídio ou se desmoralizar se não cumprir a promessa feita. O que vai mesmo ocorrer é invasão terrestre, que já é esperada pelo Hamas, e isso vai virar guerrilha urbana, uma armadilha para os soldados israelenses. Israel vai tentar descabeçar o Hamas, o que não será simples.

Segundo o general Vincent Desportes, o drama dos reféns é questão central. O governo de coalizão em Israel foi montado para destruir Hamas, mas isso será difícil. A crise é prolongada. Não tem solução militar. A ação militar pode melhorar a correlação de forças e influenciar a negociação diplomática que sempre demora, a guerra continua, mas a única solução será política através da diplomacia.

O general lembrou a Guerra da Coréia, que durou três anos, entre 1950 e 1953. Em 1951, começaram as negociações que levaram dois anos. Enquanto isso, a guerra matou dois milhões de pessoas. E, na Guerra do Vietnã, as negociações duraram quatro anos. Elas são sempre demoradas, mas, quanto antes começam, mais cedo terminam.

Tanto o ex-chefe da Inteligência francesa como o ex-comandante da Escola de Guerra em Paris creditam a responsabilidade do ataque do Hamas ao fracasso escandaloso da Inteligência israelense em prever a ofensiva militar do Hamas em território de Israel. Isso vai levar à queda do governo Netaniahu, é questão de tempo. Ao criticarem a Inteligência de Israel, ambos rejeitam as “teorias da conspiração” que sempre nos espreitam, à direita e à esquerda, rejeitando a possibilidade de erro.

O número de judeus mortos, e os reféns que serão executados se Israel arrasar Gaza, vai desmoralizar o atual governo de Israel. Aliás, parece que o Hamas foi apoiado por Israel no início para enfraquecer a Autoridade Palestina, Al Fatah, fundada por Yasser Arafat. Isso foi um enorme erro estratégico. Em janeiro de 2006, Al Fatah perdeu a maioria na Faixa de Gaza para o Hamas, que tem uma visão menos política e mais militar.

Israel acabou recebendo de volta a violência que empregou na Palestina nas últimas décadas. Estuprar mulheres e matar civis inocentes não é monopólio do Hamas. Os soldados israelenses fizeram parecido ao ocupar a Palestina. Há diferenças, mas a maior delas é que isso não foi divulgado pela grande mídia.

Com permissão do general Vincent Desportes, e abandonando a perspectiva de análise objetiva, é bom lembrar que, mesmo em tempos de guerra, a luta por direitos humanos e pela autodeterminação dos povos continua sendo uma das grandes bandeiras da civilização contra a barbárie.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond).

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