Elon Musk e a Política industrial, por Cunha, Miebach & Ferrari

Para viabilizar tais tecnologias e mercados, há que se garantir acesso aos consumidores e, também, aos recursos naturais.

TED Conference – Flickr

Elon Musk e a Política industrial

por André Moreira Cunha, Alessandro Donadio Miebach e Andrés Ferrari

O Libertário-Protecionista e as Tecnologias de Fronteira

Elon Musk, o exuberante bilionário das novas tecnologias, quer proteção contra a concorrência chinesa. Após Warren Buffet, o oráculo de Omaha, ter elogiado o desempenho dos veículos elétricos da BYD, Musk reconheceu o potencial dos rivais asiáticos. Disse ele: “Se não forem estabelecidas barreiras comerciais, eles [produtores chineses] irão praticamente demolir a maioria das outras empresas automobilísticas do mundo … Eles são extremamente bons”.

Biden e Trump concordam com Musk e às vésperas de mais um embate eleitoral disputam para saber quem será o maior defensor dos seus “campeões nacionais”. Os europeus não têm dúvidas de que serão engolidos pelos concorrentes chineses e estadunidenses se não forem ainda mais protecionistas e ativos em suas políticas industriais. A União Europeia já abriu um processo para investigar supostas práticas de concorrência desleal por parte das empresas chinesas de veículos elétricos. Para a sua presidente, Ursula von der Leyen, os preços das montadoras da China são “… mantidos artificialmente baixos por enormes subsídios estatais. Isso está distorcendo nosso mercado”.  Faltou lembrar que o mundo da produção é estruturalmente subsidiado também na Europa e em outros países de alta renda.

 A base de dados do FMI informa que estas economias ampliaram o total de subsídios de um nível médio de 1,5% do PIB (2000-2019) para mais de 3% do PIB (2020-2022). Em um estudo mais direcionado para instrumentos associados à política industrial, verifica-se que a China alocava cerca de 1,5% do PIB em estímulos diversos ao setor produtivo, ao passo que a média dos seus concorrentes seria de 0,5% do PIB. Há consenso nas pesquisas empíricas de que estes números estão crescendo em anos recentes. Há um redirecionamento dos esforços governamentais dos subsídios ao setor agrícola em direção ao setor industrial.

Para a Allianz Trade, empresa especializada em seguros ao comércio internacional, com negócios da ordem de 1 trilhão de euros, os carros elétricos chineses são pelo menos 20% mais baratos que os congêneres europeus. Com o avanço das exportações da China e da maior participação de suas empresas no seu mercado doméstico, espera-se que as montadoras europeias tenham prejuízos médios de 7 bilhões de euros por ano até 2030. O cenário projetado pela Allianz é realista e sombrio: “… se as importações europeias de automóveis fabricados na China atingirem 1,5 milhão de veículos em 2030, equivalente a 13,5% da produção da UE em 2022, o impacto no valor adicionado da economia europeia seria equivalente a … 0,15 % do PIB da região em 2022. Nas economias dependentes do setor automotivo, como Alemanha, Eslováquia e República Checa, impacto seria ainda maior (0,3% a 0,4% do PIB). Solução apontada: mais incentivos e proteção aos europeus.

O setor de veículos elétricos é parte do que se denomina de “tecnologias verdes e de fronteira” (Internet das Coisas, Inteligência Artificial, Veículos Elétricos, Energias Solar e Eólica, 5G, Big Data, Biocombustíveis, Robótica, Drones, Hidrogênio Verde, Blockchain, Impressão 3D, Edição Genética, Nanotecnologia, dentre outras). Em estudo recente, a Unctad estimou que o conjunto destas tecnologias terão vendas nos mercados globais de US$ 9,5 trilhões em 2030 (ou 9,5% do PIB global de 2022), sete vezes mais do que o valor estimado em 2020. Somente o segmento de automóveis elétricos seria de US$ 824 bilhões no final da década (em 2020, faturou-se US$ 163 bilhões).

Para viabilizar tais tecnologias e mercados, há que se garantir acesso aos consumidores e, também, aos recursos naturais. De acordo com a Agência Internacional de Energia,  transição energética demanda ampliação no fornecimento de lítio, níquel, cobalto e minerais raros, dentre outros elementos. Estes, por sua vez, não se distribuem de forma homogênea no mundo. As reservas conhecidas de minerais raros se concentram na China, Rússia, Brasil e Vietnã; 70% do cobalto se localiza no Congo; e 60% do estoque de níquel está na Indonésia, Austrália e Brasil. Já as maiores fontes de lítio, mineral essencial para as baterias elétricas, estão no triângulo dos Andes (Chile, Argentina e Bolívia), no Canadá e na Austrália.

Se há algo que a história do capitalismo ilustra é que o controle de insumos estratégicos raramente se baseia em relações estritamente mercantis. Nos países centrais, a evolução da moderna indústria se deu pari passu com o aquilo que foi denominado, no século XIX, de imperialismo.

Campões Nacionais e Perdedores Globais

EUA e China estão no centro das disputas pelo domínio das tecnologias de fronteira e de seus múltiplos usos em áreas civis e militares. Pouco mais de metade das patentes nestas áreas estão sob o controle estadunidense e 1/3 são de empresas chinesas. Desde o governo Trump e, com mais intensidade, na administração Biden, subsídios, incentivos e proteções de todos os tipos se multiplicaram tanto quanto a retórica belicosa entre os dois gigantes globais. Isto porquê, não são apenas mercados que estão em jogo, mas os rumos da política e da segurança em nível internacional. Enquanto os EUA tentam sustentar suas esferas de influência e de poder, a China avança resoluta. Os europeus, por seu turno, administram qual será o tamanho da sua irrelevância. Poderes menores, que gravitam em torno do escudo securitário dos EUA e sentem de perto a pressão chinesa, buscam se posicionar estrategicamente neste momento de transição. Potências como Rússia e Índia não aceitam o enredo de uma nova Guerra Fria onde somente dois atores almejam o trono.

Pesquisas independentes e análises de órgãos multilaterais lamentam o retorno do ativismo estatal, como se este não fosse parte constitutiva das modernas economias de mercado, ou mesmo do próprio capitalismo desde seu surgimento, como nos lembram os Atos de Navegação na Inglaterra do século XVII. Economistas convencionais e parte do establishment político e empresarial, respaldados pela grande imprensa corporativa, cultuaram por décadas a ilusão de que a era da globalização, representava uma vitória dos mercados livres sobre o velho estatismo protecionista. Na realidade, tal período consagrou o neoliberalismo, o qual protege as rendas e os lucros dos mais ricos, tanto da incidência de impostos como da demanda dos trabalhadores por maiores salários.

Para os ideólogos libertários, a intervenção estatal fundamentada na ideia de benefícios e proteções aos mais ricos geraria “gotejamentos” nos mais pobres através de incrementos nos investimentos produtivos com aumentos de eficiência e, assim, maior dinamismo econômico. O grande problema é que não há evidências neste sentido. Entre 1981 e 2022, a renda per capita global cresceu, em média, 1 p.p. a menos em comparação com o período 1951-1980. Projeções da Goldman Sachs sugerem que tal dinâmica seguirá assim nas próximas décadas, vale dizer, de redução no ritmo de expansão.

As políticas neoliberais engendraram o aumento das desigualdades de renda e de riqueza que caracterizam diversas economias ocidentais, ao mesmo tempo que induziram a expansão dos mercados financeiros e inflaram bolhas especulativas. A crise financeira global (2007-2009) pôs fim à celebração das supostas virtudes das finanças integradas e desregulamentadas, ao passo que a pandemia da Covid-19 e a consolidação da China como fábrica do mundo e potência militar, tecnológica e espacial, iluminaram a aliança entre o nacionalismo político e o intervencionismo econômico. Tais desdobramentos explicitam o crescente questionamento dos resultados da era neoliberal.

Por isso mesmo, não há que se surpreender com as posições de Elon Musk. Protecionista na ponta do consumo, não se conteve de satisfação com a eleição do libertário Javier Milei na Argentina. Espera poder acessar as reservas de lítio do país com maior segurança jurídica. O presidente argentino revelou ter recebido uma ligação do dono da Tesla e da Starlink, que foi direto ao ponto: quer acelerar seus negócios no país, preferencialmente sem a concorrência de compradores chineses, seus concorrentes na venda dos automóveis da era pós-petróleo. O bilionário mais popular da atualidade mostra, mais uma vez, que a defesa do “livre mercado” é fundamentalmente associada à privatização de ganhos e a socialização de prejuízos, e que a relevância de políticas de abertura ou fechamento de mercados são contingentes à capacidade das elites em realizar lucros

André Moreira Cunha, Alessandro Donadio Miebach e Andrés Ferrari – Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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