E o vento levou: sobreviventes de uma guerra de classes, por Reginaldo Moraes

Justin Gest, professor da George Mason University, na Virginia, faz uma interessante análise sobre a ‘nova minoria’, a classe trabalhadora branca deserdada pelo furacão globalizador e responsável por dois surpreendentes resultados eleitorais: o Brexit e a vitória de Trump

do Brasil Debate

E o vento levou: sobreviventes de uma guerra de classes

por Reginaldo Moraes

Em pouco tempo, a imprensa mundial registrou uma sequência de eleições com resultados entre o esperado e o surpreendente. Primeiro, a votação pela saída britânica da União Europeia, o Brexit. Depois, a vitória de Trump. Nas duas ocasiões, apareceu em cena um agente social que parecia ter se desbotado pela globalização, até quase ficar invisível. É a classe trabalhadora ou, mais especificamente, aquilo que no mundo anglo-saxônico se tem chamado de “White working class” (WWC), a classe trabalhadora branca, cada vez mais empobrecida e humilhada.

Nesse contexto, vale a pena resumir algumas ideias de um interessante livro de Justin Gest – The New Minority: White Working Class Politics in an Age of Immigration and Inequality (Oxford University Press, 2016). Gest é professor da George Mason University, no estado de Virginia.

O comentário que segue é menos que uma resenha, é uma seleção de algumas ideias, certamente empobrecendo a rica narrativa do autor. Gest escolheu duas comunidades para estudar o comportamento político desse segmento social.

Uma, a East London, uma antiga região operária em que se localizava, por exemplo, a fábrica gigante da Ford, nos anos 1950 (ainda tinha uns 30 mil empregados em 1975, caindo para 7 mil em 2000).

Outro, Youngstown, Ohio, no meio-oeste americano, outrora cinturão da indústria, o centro do aço no mundo, nos 25 gloriosos do pós-guerra. Não é um vilarejo caipira. Tem dois teatros sinfônicos de padrão internacional, museus e galerias, uma universidade com 15 mil alunos, um espaço verde desenhado pelo mesmo cara que projetou o Central Park de Nova York.

Nos dois espaços, o furacão globalizador deixou atrás de si um rastro de destruição e um cenário povoado por sobreviventes inconformados. Mas são duas regiões devastadas, alguns traços são repetidos: desindustrialização, empregos “exportados” para o sul e para o exterior, leis trabalhistas e ambientais relaxadas, na vã esperança de atrair novos negócios (como a predatória exploração do xisto), sindicatos enfraquecidos e uma demografia cada vez mais preocupante para os ‘brancos’. Em suma, o furacão cria um grande contingente de “deixados para trás” da globalização, modernização, do “progresso”.

Em resposta, a WWC mergulha em construções nostálgicas sobre ‘velhos bons tempos’ imaginários que fortalecem o ressentimento contra as grandes empresas que abandonaram a cidade, o governo que nada vez para evitar isso e uma rejeição a minorias que alteram a composição da vizinhança.

A WWC é um segmento significativo do universo eleitoral, mas vota menos do que se esperaria. Ainda hoje, 50% da população americana é branca sem curso superior (um indicador aproximado de “classe trabalhadora branca”). No entanto, esse segmento representa apenas 39% dos votantes em 2008 e 35% dos votantes em 2010. Sub-representação estatística no universo eleitoral ativo.

Ao lado disso, esses brancos veem o país mudar (tanto quanto seu bairro): a população “não branca” representa 37% da população total dos EUA em 2015, mas quando você olha para a população de menos de 5 anos isso sobe para 50%, ou seja, a velocidade de crescimento dos “não-brancos” é bem maior.

Assim, não deveria surpreender, no nível nacional, uma política de ressentimento, plataformas xenófobas, apoio a políticas de cortes em programas sociais (que, supostamente, favorecem, desmerecidamente, as minorias não brancas).

Um elemento interessante é colhido pelo autor nos escritos de um autor conservador (um republicano de centro direita, Dennis Jay Saffran). Diz ele que a WWC tende a ser predominantemente liberal (intervencionista, democrata) nas questões econômicas e conservadora em questões “sociais”, o que levaria a uma armadilha para os democratas, já que quando se enfatiza a questão “social” os indivíduos votam contra seu interesse econômico. Ou seja, dependendo de como você conduz a pauta, já se coloca no lado perdedor. Depende de como você polariza a disputa. Quando faz a pergunta, você dirige a escolha: centralize uma campanha em questões morais marteladas pela direita, seu time já sai correndo atrás do resultado adverso.

Nas entrevistas colhidas pelo autor – um farto registro – há um detalhe curioso. A maioria dos seus “wwc people” começa sua fala “esclarecendo” que não é racista ou preconceituosa. É praticamente um padrão. Comenta ele: ao que parece, eles sabem que suas ideias seriam desqualificadas por esse rótulo, enquanto, na verdade, querem expressar uma visão legítima de como suas vidas foram transformadas. A acusação de racismo deslegitimaria suas narrativas, invalidaria suas queixas e, por isso, preventivamente, eles começam por aquela “declaração de fé”.

Youngstown talvez chame mais a atenção do leitor de hoje (hoje, literalmente), porque nesse tipo de região e nesse tipo de eleitor, Trump parece ter fincado uma vantagem que garantiu sua vitória.

A fervilhante cidade industrial, desde 1980, perdeu dezenas de milhares de empregos na indústria do aço. Um baque de 1,5 bilhão em salários de operários industriais. A cidade tinha quase 200 mil habitantes em 1970, tem hoje menos de 70 mil. E, nesse total, os brancos, que eram 80% da cidade, foram virando minoria, importante, mas declinante (47% no último censo).

A perda da indústria significou perda de salários, impostos e taxas. Mas significou também o desaparecimento de redes outras – planos de saúde e de aposentadoria, moradias construídas pelas empresas, programas comunitários. E hábitos de vida social vinculados a tudo isso.

Para quem olha os mapas eleitorais da eleição de 2008, 2012 e 2016, comparando onde Trump ganhou e onde os democratas recuaram, é interessante o comentário do autor:

“Embora estejam distribuídos por todo o país, há significativa concentração da WWC em regiões pós-industriais como Youngstown, ao largo do Alto Meio-Oeste e dos Grandes Lagos —englobando vários estados oscilantes (swing states) em eleições nacionais. Eles incluem Pennsylvania, West Virginia, Ohio, Indiana, Michigan e Wisconsin. De acordo com vários estudos, a WWC soma perto de 53% do eleitorado em Michigan, 55% na Pennsylvania, 58% em Wisconsin, 62%  em Ohio, 66% em Indiana e cerca de 70% em West Virginia”

E instiga ainda mais:

“Pesquisadores, organizadores de campanhas se perguntam se os eleitores de Youngstown se retiraram permanentemente da disputa, perdendo qualquer esperança no governo. Contudo, a evidência sugere que os cidadãos de Youngstown — e muitas cidades pós-traumáticas do American Rust Belt (cinturão da ferrugem) — estão simplesmente esperando por partidos e organizações que os mobilizem.”

Será que é assim?E será que isso está sendo percebido por essas organizações?

Para falar a esse segmento, segundo Justin Gest, é preciso:

1.Apresentar candidatos fora das elites, candidatos extraídos do meio popular.

2.Empregar narrativas da classe trabalhadora, com sua linguagem, seu estilo e seu ponto de vista.

3.Não confundir classe trabalhadora com os indefesos ou derrotados. Trabalhadores querem ser vistos como independentes, autossuficientes, batalhadores.

4.Não parta da ideia de que sindicatos são sinônimo de classe trabalhadora. Os tempos mudaram, a maior parte dos trabalhadores não são sindicalizados e por vezes nem sindicalizáveis.

5.Desafie a visão da nostalgia com a da esperança.

Como se percebe, está aí um conjunto de problemas que atravessam fronteiras, marcando numerosas cidades e países “pós-traumáticos’, comunidades em que estão quem sabe adormecidos, temporariamente, aqueles que foram “deixados para trás” pela corrente globalizadora, supostamente modernizante.

Reginaldo Moraes – É professor da Unicamp, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e colaborador da Fundação Perseu Abramo

 

 

Redação

3 Comentários

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  1. A conclusão é desinformação
    A origem do conceito é deste artigo aqui:
    http://blogdoalok.blogspot.com.br/2016/11/e-classe-estupido-nao-raca.html?m=0

    O diagnóstico está correto mas a conclusão leva vc a FICAR EXATAMENTE NO MESMO LUGAR.
    Quer dizer que não há nada de novo no ar?

    E por isso classifico como desinformação.

    A não ser que vc ache que o Partido Republicano passou a ser o Partido da Classe Pobre hehehe. Aí pode ser luta de classes.

    Luta de classes é a fumaça onde se escondem aqueles que estão atrás dos ESTADOS com suas agendas.
    Sao alguns banqueiros judeus, famílias aristocráticas européias e mais alguns agregados.
    Não há raça! Não há religião!
    E…. não há luta de classes!
    A luta é de valores morais e a forma como vc vê o mundo!

    Eles reúnem se anualmente no club Bildenberg….que era secreto mas em tempos de internet….tiveram que fingir que sempre foram públicos.

    E eles são O Inimigo! De todos os Povos!
    Porque sua agenda estava levando o mundo para um governo global onde a retórica ja estava pronta na ONU, quem paga manda!
    É o discurso da ONU para os países pobres: vcs terão mais participação QUANDO contribuírem mais.
    Então ali na ONU a máxima democrática uma pessoa um voto não tem valor. Ali é quem paga manda!

    E este é o sistema que estava sendo preparado para substituir as democracias no Globo.
    E estava tudo pronto e em andamento desde a queda do muro de Berlim.
    Pronto para fechar o sistema!
    Mas…. não aconteceu!
    Porque? Putin !

    Os poderosos controlam as finanças do mundo mas não o mundo em sí. Ainda faltava Rússia e China.
    China seria dominada por corrupção!
    E a Rússia, bem, a Rússia iria arder numa bola de fogo!

    Não que houvesse necessidade, seria assim porque queriam que fosse assim.
    Então, após a queda do sistema iniciou se o movimento em direção ao domínio da Rússia.

    Tudo feito sem qualquer cerimônia para esconder seus intentos. Tinham plena confiança no poder das soluções tecnológicas do dinheiro.
    E a Rússia, as forças armadas definharam para todos verem durante a guerra da Geórgia! Só aumentou o otimismo….

    Então nem 2002 os EUA aumentam as apostas porque precisava resolver o problema dos mísseis nucleares Russos. Então resolveu sair do acordo nuclear que havia assinado com a URSS.

    Este foi seu erro fatal, querer minimizar as consequências….

    A Rússia desenvolveu um novo míssil que simplesmente não pode se abatido.

    E os EUA que haviam abandonado o acordo porque tinha dificuldades para abater o missial anterior ficou com a conta de mais de um trilhão de dólares gastos para absolutamente NADA. Porque seus escudos antimísseis, que serviam apenas para abater os mísseis quando do lançamento porque ainda estão acelerando ( por isso este escudosTEM QUE estar próximos da fronteira ), agora de nada servem.
    O novo míssil russo é o que fez TRUMP vencer as eleições fazendo com que , pela primeira vez desde a segunda guerra, o grupo que domina o mundo divertisse.

    Os operadores do PLANO, os neocons , lógico que ainda estavam no Plano de fazer a guerra.

    Só que tem gente que mora em uma ilha pequena e que só sabe que só é REI naquela ilha específica. E que se aquela ilha deixar de existir, deixa de ser REI.

    Então, no momento, o plano de fusão do dólar com o Euro foi abandonado. O plano de dominação mundial foi postergado.

    Mas não deixou de existir….

    A regra é, não tem mais regra! E neste mundo perigoso, precisamos de um governo nacionalista , porque é o vento que levará o mundo por enquanto.

  2. A culpa não é da globalização

    A globalização é um fenômeno inexorável, decorrente do encolhimento das distâncias, que por sua vez decorre do aumento das populações e do progresso nos transportes e nas comunicações. O que está sendo apontado no artigo é, simplesmente, o encolhimento do setor secundário (indústria) e a correspondente expansão do setor terciário (serviços). Essa evolução é previsível e desejável. Assim como no passado a revolução industrial exportou o setor primário (indústria) para os países não industrializados, o tempo presente está exportando as fábricas para o mundo pouco industrializado. Ao mesmo tempo em que East London e Youngstown fenecem, o Vale do Silício fervilha de empresas de alta tecnologia e cada vez mais as pessoas trabalham em casa.

    É preciso avisar esse pessoal que o mundo só anda para a frente. Quem vive do passado é museu e esquerdista.

    1. Eu acho que vc não entendeu
      A questão!

      Globalização = Empresas mais fortes que Governos

      Neste sistema Governos ( O Povo ) perde o controle sobre o comércio!

      O fim da Globalização é a reafirmação de que, seja de quem for, o comércio é do interesse das pessoas deste país DESDE QUE elas lucrem com isso.

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