A casa do parlamentar brasileiro e o terror de ter eleitores à sua porta, por Ricardo Spindola

Alguns parlamentares caracterizaram a sugestão de Lula, de os eleitores visitarem as casas dos deputados, como “incitação ao crime e ao ódio"

A casa do parlamentar brasileiro e o terror de ter eleitores à sua porta

por Ricardo Spindola

Em 2017, em resposta à eleição de Donald Trump, um grupo de ex-assessores parlamentares se organizou como um time, auto-denominado Indivisible, produzindo “um guia prático para resistir à agenda de Trump,” e nele revelando “as melhores práticas para fazer o congresso ouvir.” O guia abre identificando como o conjunto de táticas a ser transmitido, agrupadas sob a rúbrica grassroots advocacy, talvez traduzível pelo brasileiro “trabalho de base,” foi crucial para bloquear importantes programas de ação da presidência de Barack Obama: mudando votos e derrotando projetos de lei; desacelerando radicalmente a articulação de políticas públicas a nível federal; forçando parlamentares republicanos a rejeitarem compromissos; direcionando o debate nacional para a agenda da presidência. No primeiro capítulo, em poucas páginas o coletivo destrincha as táticas empregadas pelo Movimento Tea Party, táticas essas estruturadas em torno de dois pilares: foco local (grupos pequenos, locais, e dedicados) e uma agenda quase inteiramente defensiva. Ao se debruçarem quanto às táticas então empregadas, o coletivo discriminou quatro oportunidades, três delas voltadas para momentos locais: visitas do parlamentar à prefeitura; eventos públicos; o escritório local do parlamentar. A quarta oportunidade consiste em ligações coordenadas ao gabinete do parlamentar.

A tática referente ao terceiro espaço, os escritórios locais dos parlamentares, merece atenção. Três atos preparatórios são necessários antes da sua execução: encontrar onde ficam esses escritórios; planejar uma viagem ao escritório local em uma ocasião na qual o parlamentar esteja lá; preparar múltiplas questões com antecedência. Chegando no escritório, o guia recomenda que se peça “educada, mas firmemente para se encontrar diretamente com o parlamentar.” O guia também sugere que a viagem e a exigência por uma audiência sejam feitas em grupo: “É muito mais difícil para os assessores, locais ou na capital, dispensarem um grupo do que um eleitor singular, mesmo sem um agendamento.”  Nos Estados Unidos da América, a página oficial do parlamentar lista todos os endereços de seus escritórios locais. Não é o caso no Brasil. Nem as páginas oficiais no site da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal indicam os escritórios locais dos parlamentares. Em alguns casos é possível encontrar o endereço dos escritórios pessoais dos parlamentares nas capitais de seus estados. Não é o caso, por exemplo, das duas páginas do atual presidente da Câmara, Arthur Lira. Nem em sua página oficial, nem em seu site pessoal, “Arthur Lira – A voz da Câmara.” Ao pesquisar, para fins ilustrativos, pelo endereço dos escritórios locais de algumas das personalidades contemporâneas da política brasileira, ao invés de encontrar o endereço, deparei-me com notícias envolvendo “funcionários fantasmas,” supostamente lotados nos escritórios locais dos parlamentares (dos quais, nenhum jornal informava o endereço), sem que frequentem esses escritórios, ou que haja alguma comprovação das atividades que, quando se consegue contactar e entrevistar esses servidores, eles às vezes dizem fazer.

As oportunidades identificadas e descritas pelo coletivo Indivisible pressupunham circunstâncias decorrentes de desenvolvimentos singulares da ordem política correspondente, circunstâncias e desenvolvimentos outros àqueles do Brasil. Nenhuma delas me parece, contudo, muito distante daquilo proposto pelo ex-presidente Lula em sua fala à Central Única dos Trabalhadores. Para citá-lo na integra: Agora, é engraçado que a gente não aprendeu, com o movimento que a gente tem, a fazer pressão na cidade onde as pessoas moram. Os deputados têm casa. Eles moram numa cidade. Nessa cidade tem sindicalista, professor, metalúrgico, bancário, pedreiro, tem quase todas as profissões que estão representadas aqui — discursou o petista. — Se a gente pegasse e mapeasse o endereço de cada deputado e fosse 50 pessoas na cada do deputado, não para xingar, para conversar com ele, com a mulher dele, com o filho, incomodar a tranquilidade dele, eu acho que surte muito mais efeito do que a gente vir fazer a manifestação em Brasília.

Alguns parlamentares caracterizaram a sugestão como “incitação ao crime e ao ódio.” Para fins do argumento que quero suscitar acerca do significado da “casa” na política brasileira, a comunicação do deputado federal Alex Manente (Cidadania – SP) é particularmente importante: Absurda a fala de Lula para militantes da CUT sobre ser preciso ‘mapear casas de deputados’ para ‘incomodar a tranquilidade deles.’ Política se faz com diálogo, no espaço público, e não desrespeitando o âmbito privado do congressistas de qualquer lado do espectro político. A  grande imprensa coletou e registrou essas manifestações, com colunistas fazendo coro à qualificação negativa da sugestão e seu caráter “anti-institucional.” Lideranças do Partido dos Trabalhadores também consideraram a fala infeliz. Um único exemplo. Mesmo Ricardo Noblat, jornalista simpático a Lula, descreveu a tática sugerida como “intimidação:” É Bolsonaro quem entende de ameaças à vida alheia; é ele que estimula abertamente a violência.

Deputados, senadores, e mesmo ministros recebem em suas casas – não à toa, senadores investem em luxuosas mansões em Brasília logo ao início da primeira legislatura –, sejam elas em seus estados, sejam em Brasília, empresários, fazendeiros, lobistas, pastores (e jornalistas que tenham o público anterior como audiência). Na falta de uma interpretação mais robusta quanto ao significado de um leque de conceitos jurídicos recorrentes em noticiários e manchetes, tais quais “advocacia administrativa,” “tráfico de influência,” dentre outros, esses encontros fazem parte da cotidianidade da política brasileira. Muitos escritórios locais servem para reuniões de servidores fantasmas exatamente por isso. Para parafrasear um emocinado médico do Albert Eistein, “nada contra os escritórios locais e agendas oficiais, mas aqui, aqui a gente está em casa.” Nessas circunstâncias, a casa enquanto espaço opera como parte do âmbito privado de cada parlamentar ou do espaço público, para me emprestar das expressões de Alex Manente? Por que um parlamentar ou ministro receber com sua família um empresário ou pastores acompanhados de prefeitos em casa para um jantar ou café fora da agenda é perfeitamente adequado, enquanto a ideia de um grupo de cinquenta pessoas ante à portaria ou portão, dentre as quais pedreiros, professores, operários, costureiras etc., como resumiu uma deputada bolsonarista, “vagabundos,” é de pronto tão aterrorizante? Por que, em suma, não se noticiou “deputados bolsonaristas ameaçam atirar em eleitores que desejem conversar sobre pautas de seu interesse às portas de suas casas; entenda”? Note-se que não se sugere qualquer paridade para com empresários, fazendeiros, e lobistas: não é preciso organizar um jantar, apenas conversar e responder perguntas à porta de casa.

Na sexta página de seu guia de melhores práticas para fazerem seus parlamentares lhe ouvirem, o coletivo ressalta: “Porque nós não somos o Tea Party / As ideias do Tea Party estavam erradas, e seu comportamento era frequentemente horrível. Seus membros: ignoravam a realidade e fabricavam seus próprios fatos; ameaçavam qualquer um que eles considerassem um inimigo; atacavam fisicamente e cuspiam em servidores; gritavam obscenidades e queimavam pessoas em efígias; direcionavam seu ódio não apenas ao Congresso, mas aos seus co-cidadãos (especialmente pessoas negras).” Observados esses contra-exemplos, de modo que a ação reste distante das características ora destacadas como ínsitas ao uso dessas táticas pelo Tea Party, não me parece que esse repertório de ação, nem a sugestão de uma sua adaptação às circunstâncias brasileiras, viole o “dever de civilidade” a governar como palavras e ações devem ser realizadas no fórum público das democracias liberais.

Ricardo Spindola, doutorado em filosofia do direito na Universidade de Luxemburgo

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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