Política de drogas e Redução de Danos, por Celi Cavallari

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Há uma política de combate às drogas que não mais mais podemos aceitar. Esta política é proibicionista, conhecida como ‘guerra às drogas’ e  trouxe resultados catastróficos tanto aos usuários, quanto à sociedade como um todo. A imagem de usuários de drogas em imensos bolsões de pessoas nas ruas em situação de extrema miséria e vulnerabilidade representa a ineficácia das políticas públicas que priorizam a repressão em detrimento ao cuidado. Nesta data de luta Mundial Contra a Aids, importante realizarmos uma reflexão profunda a respeito de que modelo de política queremos e aquele que se mostrou ineficiente e doloroso. O uso prejudicial de droga e a prevencão às DST/Aids e hepatites virais estão extremamente vinculadas como questões de saúde pública e não podemos conviver com o encarceramento em massa de populações vulneravéis.

Um contexto importante: os índices de homicídios no Brasil são assustadores e a ilegalidade do comércio de drogas favorece o aumento da criminalidade e da violência. Segundo o Mapa da Violência, no ano de 2012 os assassinatos superaram 56 mil mortes no ano, sendo que 93,3% foram de homens jovens (entre 15 e 29 anos), dos quais 80,7% eram negros. Em uma década, entre 2002 e 2012  morreram 556 mil cidadãos vítimas de homicídio. Embora o mapa não analise diretamente a correlação com o tráfico de drogas, assistimos dia a dia os noticiários revelarem esse fato.

Muito do elevadíssimo grau de encarceramento no Brasil também está relacionado com essa política de guerra. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, entre a população que está presa e os condenados à prisão, somam-se mais de um milhão de pessoas no país. Por exemplo, nos últimos 12 anos o encarceramento feminino cresceu 256%, sendo que oitenta por cento está associado ao tráfico de drogas. E segundo o ICPS (Centro Internacional de Estudos Prisionais), do King’s College de Londres, o Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do mundo.
Não só os traficantes são encarcerados, também  os usuários de substâncias psicoativas são levados para  internações, muitas vezes compulsórias, muitas sem equipes técnicas de saúde, que apresentam baixa eficácia de recuperação, por almejarem apenas a abstinência de drogas e por decidirem a priori o que supõe ser melhor para o usuário. Desconsideram o essencial, ou seja, a pessoa e a complexidade psicossocial de cada caso.

É necessário avaliar o quanto os usuários, suas famílias, toda a sociedade e os cofres públicos são prejudicados com essa política em vigor há quarenta anos, que só tem contribuído para piorar os sintomas a cada ano que passa. A cada pai ou mãe presos, temos famílias mais desprotegidas e mais vulneráveis em suas comunidades e uma situação social mais degradada.

Nos anos noventa quando a Secretaria Estadual de Saúde em São Paulo obteve seringas para distribuir aos usuários de drogas injetáveis para que evitassem se contaminar pelo vírus HIV e outras doenças, a Secretaria de Segurança pública impediu, no primeiro momento, que as seringas fossem distribuídas por entender que seria um incentivo ao uso. Enquanto isso, muitas pessoas se contaminaram por via sanguínea e transmitiram o vírus a outras, por compartilharem seringas e agulhas, ou por via sexual. Assim, ampliamos a contaminação.

Posteriormente foi com as políticas de Redução de Danos, de educação preventiva continuada e de mudança da lei que revertemos o quadro da epidemia de HIV / Aids no país. Hoje é 1º de dezembro, dia internacional de luta contra a Aids e, infelizmente, porque os programas preventivos diminuíram em grande escala, temos uma reversão desse quadro e o número de pessoas contaminadas pelo HIV,  por sífilis e hepatites virais, voltou a crescer.

As políticas de Redução de Danos se fundamentam em responsabilizar os indivíduos por suas próprias vidas. Por meio de informações, orientações e sensibilizações, os profissionais contribuem para a ampliação da percepção do risco, seja de se contaminar por doenças, ou de evitar o aumento de problemas decorrentes de um uso prejudicial de drogas. É a própria pessoa que é capaz de tomar atitudes para evitar que sua condição se agrave ou que pode  decidir buscar ajuda.

Considero políticas de drogas como a De Braços Abertos, na capital paulista, uma opção diferente, pois, baseada em Redução de Danos, oferece esperança de resultados mais favoráveis. Por reconhecer a cidadania dos usuários respeitando-os em sua complexidade contribui para que haja busca de novas possibilidades na história pessoal de quem é atendido pelo programa. Não é uma proposta fácil, mas oferece uma nova perspectiva.

Políticas como a de Portugal, que descriminalizou o consumo de drogas há 10 anos, são exemplares, os profissionais foram para as ruas, ouviram, atenderam as pessoas, ofereceram acolhimento e tratamento mais respeitoso e decente aos usuários de drogas; demonstraram que a atenção mais humanizada é possível,  resulta em maior  eficácia e apresenta  custo financeiro e social muito menor.

O modelo arbitrário de tratamento que vigora no Brasil retira do usuário seu poder de decisão, o que contribui para  piorar o quadro, pois qualquer pessoa tratada como fera enjaulada se defende e perde a credibilidade nos outros e em si mesma. Considerar que a droga é maior e mais poderosa do que a pessoa que faz uso, é no mínimo, desconhecimento de causa; é um mito conveniente a outros interesses como os econômicos. A política de guerra às drogas encobre a condição de miséria que se mistura com a dependência de drogas daqueles que vão morar nas ruas em situação de desamparo.

Outro mito é achar que ao experimentar uma substância a pessoa se torna um dependente. Devido à proibição, aqueles que não têm problemas com o uso de substâncias escondem o uso para evitar o estigma e isso cria a falsa ilusão que os usuários de drogas são todos dependentes, pois a visibilidade ocorre apenas quando a relação com o uso de substâncias extrapolou as fronteiras do autocontrole.

Uma de minhas atividades profissionais é a supervisão clínica e institucional de serviços de atendimento a usuários de álcool e outras drogas. Na semana passada durante a avaliação de fim de ano de três serviços (CAPS AD, Consultório de Rua e Residência Terapêutica) em uma das cidades da grande São Paulo, percebemos que 100% dos usuários atendidos por esses serviços em 2014, continuam vivos. Pode parecer pouco, mas esse é um exemplo de que é possível reverter as trágicas estatísticas de fracasso, com políticas de Redução de Danos.

A política de drogas que queremos é baseada em Redução de Danos e requer investimento em educação preventiva, na formação de educadores,  na Rede de Atenção Psicossocial e no desenvolvimento de pesquisas sérias . Precisamos de serviços de portas abertas, com profissionais preparados. O uso prejudicial de drogas e a prevenção às DST/ Aids e hepatites virais  são prioritariamente  questões de saúde pública  individual e coletiva e necessitam serem tratadas nessa condição para que tenhamos respostas menos nocivas e mais razoáveis e consigamos reverter o encarceramento em massa, o adoecimento e a morte ,que além do alto custo contribuem com a tristeza e a desesperança dos brasileiros.

Celi Cavallari é psicanalista, foi vice-presidente da Abramd (Associação Brasileira Multidisciplinar sobre Drogas), é conselheira da Reduc (Rede Nacional de Redução de Danos) e conselheira do Coned (Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas).

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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