Primeiro território quilombola urbano da Amazônia resiste às pressões

Quilombo do Barranco de São Benedito, reconhecido oficialmente em 2014, sofreu pressões com a urbanização desenfreada em Manaus e a especulação imobiliária

(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

do Amazônia Real

Primeiro território quilombola urbano da Amazônia resiste às pressões

por Nicoly Ambrosio


Manaus (AM) – Primeiro território quilombola urbano da Amazônia Legal, o Quilombo do Barranco de São Benedito sobrevive em meio à voracidade do avanço urbano de Manaus. Considerado um dos mais importantes redutos das tradições que guardam a memória do povo negro da capital amazonense, ele está localizado no bairro da Praça 14, na zona centro-sul. Ao longo dos últimos anos, teve sua área invadida e modificada pelo comércio local e por projetos de urbanização que conseguiram, a um só tempo, desfigurar suas características e passar por cima dos espaços de comunhão.

Foi-se o tempo em que os bairros da Praça 14 e Cachoeirinha, que fica ao seu lado, eram “um mato só”, como lembram os mais antigos moradores e registros históricos. Hoje, quem passa pelas redondezas, encontra pontos comerciais para onde quer que se mire. É nesse cenário que os remanescentes quilombolas interagem com a comunidade e preservam a memória familiar dos seus antepassados.

“A Praça 14 transformou-se em um bairro comercial do ramo de autopeças e venda de automóveis”, resume Jamily Silva, vice-presidente da Associação Crioulas do Barranco de São Benedito. Esse crescimento comercial descontrolado obrigou vários moradores do bairro a venderem suas casas para comerciantes e lojistas, ávidos por terem um espaço de referência para sua atividade na capital manauara. Terrenos comunitários também foram vendidos para a iniciativa privada sem consulta aos moradores.

O Quilombo do Barranco de São Benedito nasceu com a reunião da família de Maria Severa Nascimento Fonseca, uma mulher escravizada que migrou do Maranhão para Manaus no final do século XIX. Hoje, seus descendentes estão divididos em 145 famílias. Jamily Silva é tataraneta de Maria Severa.

As comunidades quilombolas só passaram a ser reconhecidas por suas tradições, embora tardiamente, a partir do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em novembro de 2003 com o Decreto 4.887. Antes de ser oficializado pela Fundação Palmares, e certificado pelo Ministério Público Federal (MPF), em 2014 como Quilombo do Barranco de São Benedito, o local era chamado de “Comunidade Negra de São Benedito”. Para Jamily Silva, o decreto “ocorreu muito tarde para se combater essa invasão comercial ao redor de onde hoje é uma comunidade quilombola”.

Mas a pressão contra os remanescentes quilombolas vem de muito antes. Segundo conta Jamily Silva, a comunidade possuía um terreiro de umbanda onde ocorriam celebrações tradicionais em honra à Nossa Senhora da Conceição, derrubado logo no início do projeto de urbanização da região executado, entre 1963 e 1964, pelo então governador do Amazonas, Plínio Ramos Coelho, para dar lugar à lojas comerciais.

“A mudança foi drástica. O que era uma grande área de preservação dos costumes negros, trazidos do Maranhão, foi rasgada ao meio pelo projeto de urbanização do bairro da Praça 14, no governo de Plínio Ramos Coelho, na década 1960.

Nesse processo de urbanização, vários empresários vindos também do Nordeste, compraram terrenos e foram abrindo suas lojas comerciais”, explica.

Em 2014, ano do reconhecimento do primeiro quilombo urbano da Amazônia Legal, a comunidade decidiu, corajosamente, não ter um único título de terra de acordo com a regularização fundiária. Em uma reunião, na qual estiveram presentes representantes do Incra (Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária) e do MPF, eles optaram por uma solução coletiva, o que evitava conflitos com os lojistas que se estabeleceram na região. “Teríamos que expulsar os comerciantes da comunidade, e alguns moradores do quilombo, pais de família, são funcionários desses comércios”, explica Jamily.

Perda da identidade cultural

Vinícius Alves (ao centro) comas lideranças quilombolas (Foto: Reprodução Instagram)

Para o mestre Vinícius Alves da Rosa, “a invisibilidade do grupo (de remanescentes quilombolas) (…) suscitou lutas protagonizadas na busca da visibilidade, pela reivindicação e consciência da identidade coletiva”. Autor de uma dissertação de mestrado sobre o território quilombola, defendida na Universidade do Estado do Amazonas em 2018, Alves da Rosa produziu uma pesquisa com o relato de antigos moradores, ressaltando que “a presença dos negros nesta área de Manaus foi historicamente ignorada, seja por autoridades eclesiásticas, ou pelos órgãos de Governo”. Na área central da Praça 14 está o Santuário Nossa Senhora de Fátima, fundado na década de 1930, e é um dos cartões postais de Manaus, sobretudo por causa de sua cúpula de estilo renascentista. 

Áreas culturais importantes foram sendo perdidas pela comunidade, como o Jaqueirão. Espaço social e de lazer do bairro, o local abrigava as festas de samba da comunidade negra e era onde se festejavam os aniversários dos moradores. Chamado assim por possuir uma enorme e centenária jaqueira no local, o Jaqueirão foi vendido no escuro em meados da década de 1990 e faz falta para quem ficou. “O principal impacto é a perda de uma parte da nossa identidade cultural, pois esses espaços foram conquistados e construídos pela comunidade negra da Praça 14”, afirma Jamily.

O progresso levou também o Romerino, outro espaço cultural que foi doado pelo poder público aos Escoteiros do Brasil, no período da ditadura militar. O local, que era de madeira, foi destruído e em seu lugar foi erguida uma casa de alvenaria. O antigo Romerino jamais foi devolvido à comunidade, mesmo com os esforços para fazer parcerias e colocar em prática projetos como aulas de percussão e rodas de conversas sobre negritude, liderados pela Associação Crioulas do Barranco de São Benedito. “Eles entendem que a comunidade quer ‘tomar’ o espaço deles”, disse a vice-presidente da Associação.

O pesquisador Vinícius Alves da Rosa, ainda na dissertação, ressalta que o Quilombo do Barranco de São Benedito possui conexões culturais com a sociedade do entorno que “remontam à época do curral do Boi Caprichoso na Avenida Japurá, a Escola Mixta de Samba da Praça 14 de Janeiro, as ‘Pastorinhas’, as ‘Filhas Lodianas’, a ‘Tribo dos Andirás’, e a fundação do Grêmio Recreativo Escola de Samba Vitória Régia, que rendeu ao bairro a alcunha de ‘berço do samba’”. 

A pesquisa da UEA reforça a luta pela superação de diversos estigmas pelos remanescentes, como o racismo, o preconceito e a discriminação, aliada à resistência contra “as pressões da urbanização e especulação imobiliária” no território conquistado, “numa luta da qual fizeram parte diferentes gerações, que se esforçaram pela valorização e pela manutenção de sua história, e de seus antepassados”.

Protagonismo feminino

A pesquisadora Rafaela Fonseca (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

As famílias que venderam seus terrenos e casas para comerciantes, foram morar, principalmente, nos bairros da Cidade Nova, Tancredo Neves e São José. No entanto, não deixam de frequentar a comunidade e fazer parte dos eventos, onde a Festa de São Benedito é o principal elo de quem não mora mais no quilombo, mas que não esquece de suas raízes.

Adriana Barbosa dos Santos nasceu no quilombo e hoje mora no bairro Tancredo Neves. Mas afirma que nunca se afastou das tradições do lugar, pois é algo que remete à sua infância. “Aquele espaço, mesmo sendo simples, transpira história. Sou graduanda em licenciatura em História e um dos fatores que me levaram para esse curso foi entender as tradições da minha família”, diz.

A tradição centenária da Festa de São Benedito é mantida até hoje na comunidade. Os festejos em homenagem ao santo protetor dos escravizados duram nove dias e incluem procissões, novenas e danças. No sétimo dia, o tronco da árvore envireira é derrubado e são servidas as guloseimas, simbolizando fartura. 

“A Festa de São Benedito significa as minhas raízes e é algo pelo qual tenho profundo respeito, e principalmente admiração a todos aqueles que não deixam essa tradição morrer”, afirma Adriana. A celebração religiosa se popularizou por meio de Tia Lurdinha, que ficou à frente da organização por quase 50 anos, e em seu leito de morte passou o bastão à sua sobrinha Jacimar Silva, a Tia Cimar, falecida em 2009.

“Na nossa história existem figuras femininas de força e superação. A gente tem que lembrar que as mulheres lutaram lá atrás e construíram esse caminho para a gente estar aqui hoje”, diz Rafaela Silva, pedagoga e pesquisadora que faz parte da quinta geração do Quilombo de São Benedito.

Desde 2010, quem organiza a festa é Jamily Silva. “A festa é de liderança feminina, eu não tive como recusar. É uma festa que faz parte da nossa cultura, da nossa família”, explica ela. Comunidade matriarcal, o quilombo é organizado socialmente por mulheres. Elas sustentam suas famílias com trabalhos formais e informais, além de se organizarem politicamente em prol da Associação Crioulas do Barranco de São Benedito. “As mulheres assumiram postos importantes na comunidade e estão à frente de tudo nessa questão de luta e resistência. A associação comandada por mulheres ajudou a combater a pobreza dentro da comunidade na época da pandemia, por exemplo, e hoje são as mulheres que comandam os festejos religiosos”, afirma Rafaela.

  • Vista aérea da Praça 14 no início doa urbanização (Foto: Acervo Hamilton Salgado)
  • Jaqueirão do quilombo da Praça 14 nos anos de 1960 (Foto: Acervo Família Silva)
  • Barracão do antigo terreiro de Nossa Senhora da Conceição (Acervo da Família Silva)
  • Jaqueirão do quilombo da Praça 14 nos anos de 1980 (Foto: Acervo Família Silva)
  • Festejos de São Benedito em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Festejos de São Benedito em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Festejos de São Benedito em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Festejos de São Benedito em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Festejos de São Benedito em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Festejos de São Benedito em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Festejos de São Benedito em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Festejos de São Benedito em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Festejos de São Benedito em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Festejos de São Benedito em 2017 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Pressão do comércio no Quilombo na Praça 14 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Pressão do comércio no Quilombo na Praça 14 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Pressão do comércio no Quilombo na Praça 14 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Pressão do comércio no Quilombo na Praça 14 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Pressão do comércio no Quilombo na Praça 14 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Pressão do comércio no Quilombo na Praça 14 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Pressão do comércio no Quilombo do Barranco de São Benedito na Praça 14 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
  • Comércios ao redor do Quilombo de São Benedito na Praça 14 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

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Nicoly Ambrosio – É estudante finalista do curso de jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e fotógrafa independente residente na cidade de Manaus. Como repórter, escreve sobre cultura e direitos humanos. Já expôs trabalhos fotográficos no Festival de Fotografia de Tiradentes (Tiradentes/MG, 2020) e Galeria do Largo (Manaus/AM, 2020). De 2020 a 2022, participou do projeto de Treinamento no Jornalismo Independente e Investigativo da Amazônia Real.

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