Urgente sustentabilidade ecossocial, por Mario Ramos

Os vetos do presidente sobre a lei 14.701 foram parciais e não abrangeram alguns dispositivos potencialmente danosos para os povos indígenas.

Marcelo Camargo – Agência Brasil

URGENTE SUSTENTABILIDADE ECOSSOCIAL
Mobilização de Corações e Mentes em Prol da Vida e da Dignidade Humana

Mario Ramos — MAAR

“Há quem faça da Terra seu circo de horrores, /
Há quem traia seus próprios leais benfeitores. /
Então, urge lembrar que, na obra de Dante, /
Há o último nível, atroz, congelante…”

A nefasta lei 14.701/2023, resultante do maligno PL 2903/2023 (derivado do pernicioso PL490/2017), afronta de modo grave o Supremo Tribunal Federal (STF), que reiterou há pouco mais de 30 (trinta) dias, por ampla maioria, em sede de recurso repetitivo, no âmbito do RE 1017365, a flagrante inconstitucionalidade da pretensão derrogatória dos direitos fundamentais dos povos indígenas, denominada marco temporal.

A rigor, o chamado PL do Genocídio não deveria sequer seguir em tramitação durante o julgamento de recurso no STF sobre matéria relacionada com a inconstitucionalidade de dispositivo do referido Projeto de Lei, dado que, do contrário, resta configurada intenção do legislativo de constranger e cercear o livre funcionamento do judiciário, o que resulta incompatível com a efetiva vigência do Estado Democrático de Direito.

Além disso, os direitos das comunidades indígenas à posse e ao usufruto exclusivo dos seus territórios de ocupação tradicional caracterizam direitos fundamentais, para os quais a alteração e/ou revogação através da via parlamentar resulta vedada, bem como resulta abusiva a pretensão de alterar as normas por meio de PEC ou de qualquer outra medida legislativa, em face do disposto no artigo 60, § 4º, IV, da Constituição.

Portanto, a tentativa de impor a exigência do marco temporal não deveria sequer ter sido jamais matéria de projeto de lei, dado que, na realidade, a insidiosa pretensão de exigir a comprovação de presença física nos territórios tradicionais em 05/10/1988 não visa regulamentar o artigo 231 da Constituição e, na verdade, busca é impedir o respeito aos direitos fundamentais dos povos indígenas garantidos na norma constitucional.

Ademais, salta à vista a patente inconstitucionalidade do marco temporal, dado que o princípio da vedação de retrocessos em matéria de direitos humanos impede inclusive a eventual pretensão de extinguir os direitos consagrados no artigo 231 da Constituição por meio de uma eventual Proposta de Emenda Constitucional (PEC) ou mesmo de uma nova constituinte – cuja convocação não é necessária nem recomendável.

Indo adiante, é patente a inconstitucionalidade do marco temporal, também porque a pretensão de exigir prova de ocupação, e atividade, nos territórios em 05/10/1988, para demarcação de terras, resultaria na extinção dos direitos das comunidades indígenas expulsas de seus territórios por fatores históricos adversos, o que configura violação das disposições contidas no caput e nos parágrafos 1º e 4º do artigo 231 da Constituição, as quais fixam os direitos originários dos povos indígenas, bem como asseguram serem imprescritíveis os direitos regidos pela norma constitucional; e asseveram serem terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas não apenas terras por eles habitadas e terras utilizadas pra suas atividades produtivas, mas também terras imprescindíveis para preservação dos recursos ambientais garantidores de seu bem-estar, e terras necessárias para sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

Assim, essa lei 14.701/2023, aprovada pelo parlamento — deploravelmente negacionista e clientelista, no mesmo dia em que o STF confirmou o julgamento do RE 1017365, evidencia grave desrespeito à ordem democrática, visto que atenta contra a harmonia entre os poderes da república, além de caracterizar desvio de finalidade da função legislativa, pois mostra uma mal dissimulada tentativa de revogar direitos fundamentais amparados em cláusulas pétreas da Constituição Federal, em detrimento dos requisitos elementares para a manutenção da estabilidade democrática e da justiça social.

Por outro lado, os vetos do presidente da república sobre a lei 14.701 foram parciais e não abrangeram alguns dispositivos potencialmente danosos para os povos indígenas.

Ao passo que a opção do movimento popular – de não judicializar a controvérsia antes de ser enfrentado o desafio de mobilizar corações e mentes de parlamentares em prol da defesa dos direitos das comunidades ancestrais – , se defronta com a paradoxal realidade de que o continuado esforço de mobilização realizado pelas organizações, lideranças e militantes indígenas, indigenistas e ambientalistas não foi suficiente para conscientizar a sociedade e seus representantes acerca da importância fundamental da garantia efetiva dos direitos consagrados nas expressas disposições do artigo 231 da Constituição.

Agora, a bancada parlamentar do ogronegócio alardeia que dispõe de votos suficientes para a derrubada dos vetos determinados pelo presidente da república sobre a maior parte dos itens inconstitucionais da lei 14.701 que, além da inadmissível repetição da tentativa de impor o marco temporal, contém outros tantos abusos indefensáveis, tais como a autorização para exploração dos territórios indígenas por não indígenas; liberação do cultivo de vegetais transgênicos em terras indígenas; indenizações a invasores e ocupantes ilegais de territórios indígenas; realização de contatos forçados com povos indígenas que se mantém isolados voluntariamente; cancelamento de demarcações de territórios e retirada de direitos sob a alegação de alterações de características culturais de comunidades indígenas; bem como a retirada do direito das comunidades ancestrais de decidirem acerca de projetos que afetem seus habitantes.

Acresce que as lideranças do governo federal na câmara e no senado optavam por nem tentarem adiar a votação dos vetos, mesmo diante da expectativa adversa de tal disputa ser travada na mesma data de decisão controvertida referente à difícil reforma tributária.

Todavia, uma brisa benfazeja alterou o rumo da lida no congresso nacional, e a votação dos vetos sobre a Lei 14.701 (antigo PL2903) ficou adiada para o próximo dia 23/11.

De todo modo, salta à vista a gravidade do momento político atual, com inúmeros riscos de retrocessos, de conseqüências desastrosas, na ampliação da crise humanitária vivida pelas comunidades indígenas de todas as regiões do país, e no catastrófico agravamento da emergência climática, que tem causado aumento terrível da freqüência e intensidade de secas, incêndios, tempestades e inundações, com perdas materiais e humanas, além de danos irreversíveis para a biodiversidade, bem como com imponderáveis danos de incerta e incompleta reparação, que atingem principalmente as populações vulneráveis.

Assim, resulta evidente que a posição do governo da república acerca da matéria no congresso nacional caminha na contramão do discurso oficial de apoio à causa indígena, pois a idéia de considerar como dada a derrota da proposta de manutenção dos vetos do presidente sobre a lei 14.701 é contrária ao necessário debate amplo relativo à solução adequada para as questões humanitárias, ambientais, sociais e econômicas em apreço.

A rigor, a correta abordagem desse tema tem de ser feita de maneira diversa, tendo por premissa o efetivo atendimento da necessidade elementar, que é a garantia de direitos e a sustentabilidade da vida, ao invés de pressupor a preferência por desistir de tentar.

Tal situação reforça a evidência de que a mobilização das instituições democráticas representativas deve desempenhar papel decisivo na condução do processo histórico.

A necessidade de atuação sistemática e organizada torna agora ainda mais indispensável a imediata operação de um centro de gestão de crises, a ser conduzido por um comitê popular, formado pelas instituições democráticas, capaz de reunir capacidade logística e estratégica com vistas a coordenar as ações, tanto em face dos extremos efeitos danosos de secas, incêndios, tempestades e inundações, quanto diante da recorrente violação de direitos, ameaças e violências diversas, contra comunidades e lideranças indígenas.

Neste sentido, o centro de gestão de crises precisa reunir instituições representativas do movimento dos povos ancestrais e de segmentos progressistas da sociedade civil, com representantes dos ministérios da Justiça e Segurança Pública, Saúde, Desenvolvimento Social, Meio Ambiente, Povos Indígenas, e da própria Presidência da República.

A pauta prioritária inicial do comitê popular de gestão de crises deve ser a definição das prioridades e procedimentos relativos à realização de um amplo programa voltado para viabilizar rápido processo de demarcação de todas as terras indígenas com base no artigo 231 da Constituição, bem como por programas de reflorestamento e regeneração de áreas degradadas e projetos de sustentabilidade ecossocial.

O caminho, caso se mostre preciso, pode e deve ser construído por meio da criação de um fundo soberano de enfrentamento da crise climática, com meta de investir US$ 6 bi  (seis bilhões de dólares) nos próximos 3 (três) anos, na urgente demarcação de terras indígenas, bem como em programas de reflorestamento e projetos de sustentabilidade.

E existe crescente percepção das relações entre garantia dos direitos fundamentais dos povos indígenas, preservação do meio ambiente e emergência climática.

Nesta medida, resulta patente a possibilidade de demonstrar que a política deve servir para transformar as necessidades sociais históricas em demandas solváveis.

Por esta via, pode ser superada a visão distorcida que considera a questão indígena uma pedra no sapato do país pois, na realidade, as causas indígena e ambiental constituem a melhor força propulsora de desenvolvimento sustentável. E os efeitos multiplicadores das políticas de atendimento às necessidades humanitárias, bem como à demarcação dos territórios dos povos indígenas, serão exponenciais também sobre as atividades de não indígenas. Além disso, programas de reflorestamento e regeneração de áreas degradadas devem ser estendidos às propriedades privadas. E terão efeitos ampliados os projetos referentes a sustentabilidade das comunidades tradicionais e de populações vulneráveis.

Por outro lado, sem prejuízo de somar esforços na mobilização de corações e mentes com vistas à defesa da manutenção dos vetos presidenciais à famigerada lei 14.701, urge reiterar a necessidade do ajuizamento de ação no STF para requerer a imediata suspensão e rigorosa rejeição de todos os aspectos inconstitucionais da referida norma.

Brasil, 15 de novembro de 2023.
Mario Ramos – MAAR.
Economista.


CITAÇÕES

I – “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar.[…] Precisamos de um debate que nos una a todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas dizem respeito e têm impacto sobre todos nós.[…] Tendo em conta que o ser humano também é uma criatura deste mundo, que tem direito a viver e ser feliz e, além disso, possui uma dignidade especial, não podemos deixar de considerar os efeitos da degradação ambiental, do modelo actual de desenvolvimento e da cultura do descarte sobre a vida das pessoas.”

Encíclica Laudato Si,
Papa Francisco,
 pgs. 5 e 14.


II – “Já passaram oito anos desde a publicação da carta encíclica Laudato si’, quando quis partilhar com todos vós, irmãs e irmãos do nosso maltratado planeta, a minha profunda preocupação pelo cuidado da nossa casa comum. Mas, com o passar do tempo, dou-me conta de que não estamos a reagir de modo satisfatório, pois este mundo que nos acolhe, está-se esboroando e talvez aproximando dum ponto de rutura. Independentemente desta possibilidade, não há dúvida que o impacto da mudança climática prejudicará cada vez mais a vida de muitas pessoas e famílias. […] os sinais da mudança climática impõem-se-nos de forma cada vez mais evidente. Ninguém pode ignorar que, nos últimos anos, temos assistido a fenómenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, seca e outros gemidos da terra que são apenas algumas expressões palpáveis duma doença silenciosa que nos afeta a todos. É verdade que nem todas as catástrofes se podem atribuir à alteração climática global. Mas é possível verificar que certas mudanças climáticas, induzidas pelo homem, aumentam significativamente a probabilidade de fenómenos extremos mais frequentes e mais intensos. […]”

Encíclica Laudate Deum,
Papa Francisco,
 pgs. 1 e 2.III –                                                                                                                                

“Pra salvar, na realidade, toda a enferma humanidade /

Isso é fundamental: não ao marco temporal.”
(NÃO AO MARCO TEMPORAL – parte 3)

REFERÊNCIAS

01.    Terra tem ano mais quente registrado e ação humana é maior responsável diz revista Nature. Nature. https://jornalggn.com.br/noticia/terra-tem-ano-mais-quente-ja-registrado-diz-revista-nature/

02.    Movimento indígena lança campanha Emergência Indígena. APIB. https://apiboficial.org/2023/11/15/movimento-indigena-lanca-campanha-emergencia-indigena-e-reivindica-garantia-dos-direitos-dos-povos-indigenas/

03.    Emergência Indígena Direitos Não Se Negociam. APIB.  https://apiboficial. org/2023/11/14/emergencia-indigena-direitos-nao-se-negociam/

04.    STF atende pedidos da Apib e determina renovação de contratos da Funai, desintrusão de TIs e entrega de alimentos ao povo Yanomami. APIB. https://apiboficial.org/2023/11/13/stf-atende-pedidos-da-apib-e-determina-renovacao-de-contratos-da-funai-desintrusao-de-tis-e-entrega-de-alimentos-ao-povo-yanomami/

05.    Não Vamos Aceitar Negociações Sobre os Direitos dos Povos Indígenas.APOINME. https://apoinme.org/nao-vamos-aceitar-negociacoes-sobre-os-direitos-dos-povos-indigenas%f0%9f%9a%a8%f0%9f%8f%b9%e2%9 c%8a%f0%9f%8f%be/

06.    Não Somos Mercadoria. APIB. https://apiboficial.org/2023/11/10/nao-somos-mercadoria-governo-lula-e-banda-podre-do-congresso-nacional-utilizam-os-direitos-indigenas-como-moeda-de-troca-politica/

07.    Apib repudia tentativas de autoridades públicas de São Félix do Xingu e do Pará de interromperem a operação de desintrusão da TI Apyterewa.  APIB.https://apiboficial.org/2023/10/26/apib-repudia-tentativas-de-autoridades-publicas-de-sao-felix-do-xingu-e-do-para-de-interromperem-a-operacao-de-desintrusao-da-ti-apyterewa/

08.    No STF Apib alerta sobre riscos a povos isolados e de recente contato em edital lançado pelo Governo do Pará. APIB. https://apiboficial.org/2023/11/06/ no-stf-apib-alerta-sobre-riscos-a-povos-isolados-e-de-recente-contato-em-edital-lancado-pelo-governo-do-para/

09.    Encíclica Laudato Si. Papa Francisco. https://www.vatican.va/content/ francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.pdf

10.    Encíclica Laudate Deum. Papa Francisco. https://www.vatican.va/content/ francesco/pt/apost_exhortations/documents/20231004-laudate-deum.pdf

11.     Povos Indígenas Continuam sob Ameaça do Negacionismo Predatório. Mario     Ramos. https://jornalggn.com.br/opiniao/povos-indigenas-continuam-sob- ameaca-do-negacionismo/

12.    Não Ao Marco Temporal. Mario Ramos. https://jornalggn.com.br/cultura/
poesia/nao-ao-marco-temporal-por-mario-ramos/

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