A comparação inevitável entre Lula e Vargas

Do Jornal Opção

Getúlio Vargas: O pai caudilho de Lula
 
A Constituição de 34 criou o Estado forte que inspirou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a desfazer o que havia de bom na herança que recebeu de Fernando Henrique Cardoso

Paralelo entre era a era Getúlio Vargas e a era Lula foi evocado até mesmo pelo próprio ex-presidente petista. Subversão da lógica pelo PT transformou FHC em neoliberal
 

José Maria e Silva 

A cidade de São Pa­u­lo não tem rua, a­ve­nida ou praça pú­­blica com o nome de Getúlio Vargas. A informação é do jornal “Valor Econô­mico”, de 5 de novembro de 2010, ao relatar a inauguração de um busto em homenagem ao condutor da Revolução de 30, que mudou a face do Brasil. Ao que parece, as duas únicas menções públicas ao ditador na maior cidade brasileira (onde não faltam logradouros públicos para homenagear gente) é a Rua Getúlio Vargas Filho, em Ja­baquara, e a praça de mesmo nome em São Miguel Paulista. Mas são homenagens a Getu­linho, um dos filhos de Vargas, que morreu em 1943, aos 26 anos de idade. Ele era químico industrial e, segundo Fernando Morais, em “Chatô, o Rei do Brasil”,  trabalhou (sem ordena­do) na Nitro Química, em São Paulo — um pedido do próprio Vargas, que a empresa interpretou como uma ordem.

Getulinho era boêmio e levava uma vida agitada em São Miguel Paulista (um bairro paulistano). Segundo boatos que circulavam no bairro, onde era benquisto, ele pode ter sido vítima de sífilis. Ofi­cialmente, morreu de neurite infecciosa, em consequência da poliomielite. O presidente norte-americano Frank Dela­no Roosevelt (1882-1945), que também sofria de poliomielite, quando se encontrou com Vargas em Natal, em janeiro de 1943, na volta de um encontro com Winston Churchill (1874-1965) na In­glaterra, ofereceu-se para tentar tratamento para Getulinho nos Estados Unidos, mas não houve tempo. A morte precoce lhe garantiu a homenagem na capital de um Estado em que a principal data cívica é 9 de julho — celebrando a Re­volução Constitucionalista de 1932, uma guerra civil justamente contra o governo Var­gas, que envolveu cerca de 135 mil homens.

Talvez por isso, o busto de Vargas inaugurado na cidade não está num espaço público, mas na sede do Sindicato dos Trabalhadores em Proces­samento de Dados e Tecno­logia da Informação de São Paulo. A homenagem a Var­gas se deu por ocasião dos 80 anos da Revolução de 30 e con­tou com a presença do pedetista Car­los Lupi, então ministro do Trabalho do go­verno Lula, herdado pela presidente Dil­ma Rousseff. Por ocasião da inauguração do busto, o mi­nis­tro Lupi, que ain­da estava longe de deixar o governo por sus­peitas de corrupção, fez uma comparação elogiosa entre os presidentes Luiz Iná­cio Lula da Silva e Ge­túlio Vargas, enfati­zan­do o protagonismo so­cial e econômico do Estado comandado por eles. E a pró­­pria direção do sindicato cobriu Lula de elogios por considerá-lo um herdeiro de Var­gas.

Historiografia canhestra

O paralelo entre a Era Lula e a Era Vargas é inevitável. E foi insinuada — quando não explicitada — pelo próprio Lula, até co­mo contraponto ao governo de Fernando Henrique Cardoso. O Plano Real, liderado pelo sociólogo uspiano quando ainda era mi­nistro da Fazenda do presidente Itamar Franco (1930-2011), foi u­ma espécie de ponto final no Es­tado forte implantado por Ge­túlio Vargas e continuado pelos governos militares, especialmente pelo general Ernesto Geisel (1907-1996). O golpe de estado de 24 de outubro de 1930 — corretamente registrado na história como Re­vo­lu­ção de 30 — re­cons­truiu o Estado brasileiro, que havia sido praticamente destruído pela Pro­clamação da Re­pú­blica, quando o poder se fragmentou entre as oligarquias locais. Uma trans­for­mação de mesmo vulto só voltaria a ocorrer com o regime militar de 1964 — este in­jus­tamente reduzido ao gol­pe de es­tado que lhe deu origem, por for­­ça de uma historiografia canhestra, pro­duzida por militantes de es­querda disfarçados de historiadores.

Getúlio Vargas foi um filho de sua é­poca, marcada por u­ma acentuada ex­pan­são do papel do Esta­do que levou ao totalitarismo comunista, fascista e nazista. Isso se refletiu diretamente na Constituição de 1934, que, por sinal, teve vida efêmera, durando somente até 1937, quando foi im­posta a ditadura do Estado Novo. Mas a Cons­tituição de 1891 — a primeira Consti­tuição republicana — já estava praticamente revogada desde 11 de novembro de 1930, quando o governo pro­­­visório co­mandado por Getúlio Var­gas (que havia assumido a Pre­sidência em 3 de novembro) baixou o Decreto 19.398, que dissolveu o Congresso Na­cional, as Assembleias Le­gis­lativas dos Es­tados e as Câ­maras Mu­nicipais. Por meio deste decreto, também fo­ram nomeados interventores para os Estados (no caso de Go­iás, Pe­dro Ludovico Tei­xei­ra), que, por sua vez, no­meavam os interventores dos municípios.

A Primeira Guerra e a Re­volução Soviética, seguidas pela crise econômica de 1929, levaram o mundo a uma espécie de convulsão social, em que a predominância dos valores individuais deu lugar aos di­reitos coletivos. Foi a época dos grandes movimentos operários, movidos pelo ideal da re­volução socialista, influenci­ando inclusive a cultura, ao ins­pirar escritores, músicos e ar­tistas plásticos. Os anseios des­se movimento fo­ram além dos conselhos de fábrica e re­percutiram no campo do di­reito, inclusive nas Cons­ti­tuições do período. O protótipo desse novo constitucionalismo, segundo a maioria dos ju­ris­tas, foi a Constituição de Wei­mar, que vigorou na Ale­ma­nha durante a efêmera Re­pública de We­imar, entre 1919 (após o fim da Primeira Guer­ra) e 1933 (com a ascensão do na­zismo). Entre outros direitos sociais, ela reconheceu os con­selhos de fábrica, sob a insígnia ideológica da “comunidade de trabalho”, segundo o sociólogo italiano Massimo Follis, professor da Uni­ver­sidade de Turim e colaborador do “Di­cionário de Polí­tica”, de Nor­berto Bobbio.

Ditadura republicana positivista

A Constituição de 34 teve forte influência da Cons­tituição Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar, de 1919, criando a representação corporativa, que abriu o par­lamento para representantes classistas. Era uma forma de contrapor a suposta imparcialidade da técnica ao viés passional da política. Vargas era discípulo do positivista gaúcho Júlio de Castilhos (1860-1903), que presidiu o Rio Grande do Sul por duas vezes, escreveu praticamente sozinho a Constituição do Es­tado e, como jornalista, difundiu o pensamento de Augusto Comte em todo o País. Os positivistas defendiam uma República ditatorial, com um governo técnico e não político, capaz de incorporar o proletariado à sociedade moderna. Qualquer semelhança com o stalinismo não é mera coincidência, pois marxismo e positivismo são filhos siameses da mesma fé cega na ciência que permeou o século 19 e influenciou profundamente o Brasil, a ponto de seu lema — “Ordem e Progresso” — inscrever-se na própria bandeira nacional.

Para Benedito Heloiz Nascimento, autor de “A Ordem Nacionalista Brasilei­ra” (Editora Humanis­tas­/USP, 2002), o Estado Novo, mais do que uma importação do positivismo francês, foi uma transposição para o plano nacional da ditadura republicana de Júlio de Castilhos, associado ao nacionalismo e ao militarismo. O conturbado cenário das primeiras décadas da Repú­bli­ca (em que uma massa de analfabetos se deixava encabrestar por coronéis locais) acirrou a crença de que só seria possível tirar o Brasil do atraso a partir das ações vanguardistas de uma elite iluminada. O populacho, segundo esse pensamento, não reunia as condições mínimas para ter autonomia. A própria Constituinte refletiu essa tese, sendo formada não somente por representantes diretamente eleitos pelo povo, mas também por de­legados classistas, que ficaram conhecidos como “deputados das profissões”. Como se vê, o controle corporativo que o PT tenta impor às instituições tem raízes antigas.

“Dos 254 constituintes, 40 foram indicados: 20 pelos sindicatos (na verdade foram im­postos pelo Ministério do Tra­­­balho) e outros 20 por entidades representativas do empresariado”, escreve o historiador Mar­co Antonio Villa no livro “A História das Constituições Brasileiras” (Editora Leya, 2011). Além da interferência por meio dos representantes clas­­sistas, o governo agiu diretamente na Constituinte por meio de seus ministros, que só não tinham direito a voto, mas podiam comparecer às sessões e participar dos debates. Osvaldo Aranha, ministro da Fazenda, foi eleito líder da maioria na Constituinte, o que mostra a total dependência do Legislativo em relação ao Executivo. Também pudera: os revolucionários de 1930, como diz Villa, acharam ne­ces­sário “refundar o Brasil”, nã­o deixando “pedra sobre pe­dra da estrutura legal do re­gime anterior”. O Legislativo foi extinto e Var­gas, por de­creto, aposentou se­is ministros do Supremo Tri­bunal Fe­deral.

Violência explícita na Constituição

Marco Antonio Villa faz uma síntese pouco favorável da primeira Constituição da Era Vargas e segunda da Re­pública: “A Constituição de 1934 inaugurou a minúcia e o por­menor, a indistinção entre legislação ordinária e constitucional. Isso fica evidenciado pelo número e abrangência dos artigos. Enquanto a Cons­­tituição de 1891 tinha 91, a de 1934 mais do que dobrou: 187 artigos. No caso das disposições transitórias, o crescimento foi ainda maior: saltou de oito para 26 artigos”. Além disso, a Cons­tituição de 34 — dando prosseguimento aos decretos discricionários que inauguraram a Re­volução de 30 — restringiu os direitos fundamentais, introduzindo o conceito de segurança nacional, que teve especial destaque na Carta getulista. O Executivo passou a contar com o instrumento do estado de sítio e a censura se tornou ampla, geral e irrestrita. Consultado por um cons­tituinte a respeito dos critérios da censura, o ministro da Jus­tiça, Antunes Maciel, foi muito além do “nada a declarar” do ministro Armando Falcão (durante o regime militar de 64) e elencou sete situações passíveis de proibição por parte do governo.

Mas não se limitou a isso. O ministro de Vargas, censor-mor do regime, chegou a alertar o constituinte que lhe fez a consulta sobre a censura: “Devo frisar que, por dever de cortesia respeitosa, responderei a este primeiro pedido de informações; mas jul­go-me desobrigado de responder a outros”. E ai de quem não ou­visse o alerta. “O ministro não brincava em serviço. Um ano an­tes, o ‘Diário Carioca’, jornal crítico do governo, teve suas instalações destruídas, atacado por mais de 150 homens, dos quais 50 eram oficiais do Exército”, conta Marco Antonio Villa. Mais grave, to­davia, era o total desprezo da di­tadura varguista pelo Judiciário. O artigo 18 das disposições transitórias da Constituição de 34 es­tabeleceu que todos os atos do go­verno provisório e dos interventores federais nos Estados e demais delegados do mesmo go­verno estariam automaticamente aprovados e fora de qualquer apreciação judicial. “A violência é explícita. Todas as medidas discricionárias dos governos federal e estaduais estavam aprovadas constitucionalmente, sem que os prejudicados pudessem a­ci­onar a Justiça”, observa Mar­co Anto­nio Villa.

A despeito de todo esse poder que concentrou em suas mãos, o ditador não estava contente. “A Constituição de 1934 era uma espécie de pedra no caminho de Getúlio Vargas”, diz Villa. O historiador observa que a Cons­ti­tuinte só foi convocada devido à Revolução Cons­titucionalista de 32, quando São Paulo pegou em armas contra o governo federal, numa verdadeira guerra civil, em que o Estado sofreu forte bombardeio e morreram centenas de pessoas. Para Villa, “Getúlio Var­gas era mais do que um adversário dos valores democráticos”, po­is tinha o poder de presidente da República e, ao mesmo tempo em que tramava para se perpetuar no poder, contou com um pretexto vindo da oposição: os co­munistas e o capitão Luís Carlos Prestes, “sedentos para, por meio de um golpe de mão, chegar também ao poder”. Vargas e seus aliados já vinham dizendo que a totalitária Constituição de 34 “era liberal demais”, então a Intentona Comunista de 35 forneceu o pretexto para que ele atirasse o País nas trevas, com uma nova Cons­tituição ainda mais dura, a de 1937.

Ditadura totalitária de 37

Escrita pelo “constituinte solitário” Francisco Campos (1891-1968), a Constituição de 37 tem um perfil cubano, concentrando todos os poderes no Executivo. Ela previa a existência do Poder Legislativo, formado pelo Par­lamento (Câmara Federal e Con­selho Federal — uma espécie de Senado), além do Conselho Na­cional de Economia e do próprio presidente da República. Ou seja, o Executivo — na pessoa do próprio ditador Getúlio Vargas — ti­nha um pé dentro do Legislativo. E com uma vantagem: a prerrogativa de apresentar projetos de lei era do Executivo. Nenhum deputado podia apresentar um pro­­jeto sozinho — precisava do apoio de um terço dos parlamentares. Mesmo garantindo na própria Constituição a servidão total do Legislativo, Vargas achou por bem mantê-lo fechado e o Par­la­mento não se reuniu uma vez sequer. O jurista José Afonso da Silva, no “Curso de Direito Cons­titucional Positivo” (Malheiros Editores, 2005), afirma: “A Carta de 1937 não teve, porém aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra mor­ta. Houve ditadura pura e sim­ples, com todo o Poder Exe­cutivo e Le­gislativo concentrado nas mãos do presidente da Re­pú­blica, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio de­pois aplicava, como órgão do Executivo”.

A violenta ditadura do Es­tado Novo de Getúlio Vargas faz a repressão do regime militar de 1964 parecer castigo de normalista quando existia disciplina nas escolas. Enquanto os militares só re­primiram para valer quem se en­volveu com a luta armada (salvo uma ou outra exceção), Vargas pôs na cadeia até escritores pacíficos e simpáticos ao regime, como Graciliano Ramos e Monteiro Lobato. Ainda sob a vigência da Constituição de 34, a ditadura pôs na cadeia, entre novembro de 1935 e maio de 1937, 7.056 pessoas. E, após a Constituição do Es­tado Novo, mais de 4 mil pessoas foram condenadas pelo Tribunal de Segurança Nacional. Vargas não hesitou nem mesmo em entregar Olga Benário, grávida de Luís Carlos Prestes, para morrer nos campos de concentração de Hitler. Perversidade que o próprio Prestes — com a ética de esquerda louvada pela filósofa Marilena Chauí — tratou de perdoar, subindo no palanque de Vargas em 1945, quando o movimento “queremista” tencionava perpetuá-lo no poder.

Adocicando o arbítrio

Para compensar o pior arbítrio de toda a história brasileira, a Constituinte de 33 introduziu o voto feminino no País, enquanto a Constituição de 37 criou uma série de direitos trabalhistas, ao mesmo tempo em que encabrestou os sindicatos de trabalhadores ao Estado. Foi esse o pretexto usado pelas esquerdas para perdoar os crimes de Vargas, chegando ao ponto de considerá-lo como uma espécie de an­ces­tral político de Lula. O historiador Marco Antonio Villa observa: “A memória repressiva do Estado Novo foi logo es­que­cida. As tentativas de levar pa­ra o banco dos réus os torturadores fracassaram”. E afirma que foi esquerda comunista, no calor da hora, com o sangue de Olga Benário ainda quente, quem inocentou Var­gas. “Fa­lar dos crimes políticos do antigo regime passou a ser considerado revanchismo, recordações inapropriadas e com viés conservador. No maior deslocamento ideológico da história do Brasil, o di­ta­dor virou democrata”.

Mas, nesse ponto, discordo do historiador. O maior deslocamento ideológico de nos­sa história se dá no presente, com o embate entre o PT de Lula e o PSDB de Fernando Hen­rique Cardoso. Somente uma completa subversão da lógica, da história, do bom senso e dos próprios fatos foi capaz de transformar os tucanos em neoliberais da direita nacional, quando em qualquer verdadeira democracia do mundo eles se­riam considerados de es­querda. Graças a essa completa deturpação dos fatos, que anula qualquer possibilidade de oposição à nova Era Var­gas — a Era Lula —, a es­quer­da se sente à vontade pa­ra atacar as instituições, começando pela imprensa. E o faz com absoluta facilidade, pois detém total hegemonia na educação do País, da pré-escola à pós-graduação. For­mal­mente somos uma democracia, mas a sociedade está sub­metida a uma verdadeira di­tadura ideológica. Por isso, a liberdade de expressão no País — como já está ocorrendo na Argentina — ainda corre um sério risco de ser letra morta — por meios sutis, é certo, mas não menos perigosos.

Luis Nassif

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