Contra-história da televisão brasileira, por Francisco Fernandes Ladeira

Nas principais emissoras do país, encontramos narrativas laudatórias e apologéticas sobre a história da televisão brasileira.

Contra-história da televisão brasileira

por Francisco Fernandes Ladeira

Na noite do dia 18 de setembro de 1950, o Brasil registrava sua primeira transmissão de televisão, com a inauguração da TV Tupi, de propriedade do magnata das comunicações Assis Chateaubriand.

Para muitos de nossos compatriotas, televisão é praticamente sinônimo de Rede Globo, embora a emissora da família Marinho somente tenha entrado no ar quinze anos depois da histórica transmissão da TV Tupi.

Já para um jovem da chamada “Geração Z”, deve ser difícil imaginar que, antes de a internet e seus inúmeros recursos se popularizarem por aqui, a televisão cumpria funções que hoje são delegadas à rede mundial de computadores, como proporcionar entretenimento a baixo custo, divulgar informações sobre determinados acontecimentos ou criar tendências e modismos.

Outra questão importante a se destacar é que, antes do advento do espaço virtual, a televisão detinha a exclusividade de ditar a agenda pública nacional, o que significava determinar sobre quais assuntos as pessoas conversariam em seus cotidianos.

Nas principais emissoras do país, encontramos narrativas laudatórias e apologéticas sobre a história da televisão brasileira. Dizem que a telinha foi responsável pela integração definitiva do território nacional, geradora de nossa identidade enquanto nação, as telenovelas brasileiras ditam o padrão internacional no gênero, programas de auditório oferecem entretenimento ao povo, as coberturas televisivas acompanharam as maiores conquistas do esporte brasileiro, etc.

No entanto, indo além dos discursos oficiais da grande mídia, podemos dizer que a televisão brasileira, ao longo dessas sete décadas, fez o papel de porta-voz privilegiado das classes dominantes, manipulou a realidade geopolítica em favor dos interesses das grandes potências imperialistas, acentuou estereótipos sobre determinadas minorias, construiu imagens extremamente negativas sobre movimentos sociais, difundiu discursos de criminalização da pobreza e contribuiu no processo de alienação de boa parte do público. Como diz a letra de um clássico dos Titãs: “A televisão me deixou burro, muito burro demais/ Agora todas coisas que eu penso me parecem iguais”.

Ao se falar sobre a televisão brasileira, muitos podem ter a (equivocada) impressão de que, desde os anos 50, este veículo de comunicação já gozava da popularidade que possui atualmente.

Porém, os altos valores dos aparelhos faziam com que televisões fossem artefatos restritos à elite e classe média. Logo, inacessível para a grande maioria da população.

Somente com o relativo barateamento dos aparelhos, em meados dos anos 60, a televisão foi se transformando, paulatinamente, no principal entretenimento de massas no Brasil.

De acordo com pesquisadores da área de Comunicação, vários fatores contribuíram para que a TV se tornasse mais importante no Brasil do que em outros países. São eles: má distribuição da renda, concentração das propriedades de emissoras, baixo nível educacional da população, o regime totalitário das décadas de 60 e 70 e o predomínio da oralidade sobre a escrita na cultura brasileira.

Conforme destacado anteriormente, em sua segunda década de existência, a televisão brasileira registrou o surgimento daquele que seria o seu símbolo maior: a Rede Globo.

Apesar de suas primeiras concessões terem sido promulgadas antes da ditadura militar (nos governos JK e Jango); não há como deixar de relacionar o crescimento da emissora da família Marinho à sua tácita aliança com o regime autoritário que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985.

Basicamente, as manipulações globais em favor da ditadura operavam de duas maneiras: por um lado, ocultando as atrocidades do regime; de outro lado, funcionando como uma espécie de canal oficial do governo, fazendo propaganda sobre os “grandes feitos” dos presidentes/generais.

Tudo isso sem falar no famoso acordo das Organizações Globo com o grupo estadunidense Time Life, considerado ilegal, pois burlava o artigo 160 da Constituição Federal de 1946, segundo o qual uma empresa estrangeira não poderia participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade concessionária de televisão.

Já com a ditadura militar agonizando, em 1980, a pioneira TV Tupi, atolada em dívidas, fazia sua última transmissão. Na época, o Governo Federal abriu “concorrência pública” para a criação de duas novas redes de televisão, a partir de concessões cassadas da TV Tupi e da antiga TV Excelsior (extinta ainda no início dos anos 70, devido a problemas financeiros e às relações conturbadas com o governo militar).

Evidentemente, os militares tinham plena consciência da importância das concessões televisivas. Assim, a “concorrência pública” foi vencida por nomes alinhados ao status quo. Surgiam a TV Manchete (propriedade do jornalista e empresário ucraniano naturalizado brasileiro Adolpho Bloch) e SBT (cujo dono é o famoso apresentador Silvio Santos).

Enquanto a Manchete durou apenas duas décadas (desde 1999 sua concessão pertence a Rede TV!); o SBT continua na ativa, alinhado incondicionalmente ao que há de mais reacionário no cenário político nacional (não por acaso, juntamente com Record e Jovem Pan, o SBT compôs a tríade de “emissoras oficiais do governo Bolsonaro”).

Muito antes da popularização do termo fake news, as grandes emissoras brasileiras já possuíam o hábito de difundir notícias falsas em larga escala, vide um comício das Diretas Já!, apresentado pela Globo como “manifestação pelo aniversário de São Paulo”; o “kit gay”, noticiado pela Record; a falsa entrevista de Gugu Liberato com integrantes do PCC, no SBT; e a famosa “Grávida de Taubaté”, também apresentada pela emissora de Silvio Santos.

Nos últimos anos, apesar de não possuir os mesmos poderes de alcance e persuasão registrados outrora, a televisão continua prestando consideráveis desserviços à sociedade brasileira.

Programas policialescos (presentes principalmente na Record, Band e SBT) contribuíram para aumentar o apoio da classe média à violência estatal contra pobres e negros; favorecendo, inclusive, para que os setores fascistas da população saíssem do armário. O proselitismo dos pastores midiáticos tem sido fundamental para o crescimento do fundamentalismo religioso no Brasil.  Não menos importante, também podemos afirmar que a mídia televisiva – com a glamourização das arbitrariedades de operações anticorrupção, apologia aos valores neoliberais e perseguição a determinados homens públicos – colaborou decisivamente para a chegada da extrema direita à presidência da República.

Seria reducionista creditar todos os males que nos assolam à televisão. Entretanto, é plausível concluir, sem dúvida alguma, que o Brasil seria um país bem melhor de se viver, caso a tela da TV contemplasse a mínima pluralidade ideológica existente em nossa sociedade (realidade que, infelizmente, parece bastante distante de se concretizar).

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Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor de dez livros, entre eles A ideologia dos noticiários internacionais (Editora CRV).

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