Jornada de seis horas, um sonho impossível?, por Esteban Mercatante

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Foto: Gabriel Jabur/Agência Brasília

Do Outras Palavras
 
Trabalhar seis horas, desejo impossível?
 
POR ESTEBAN MERCATANTE

Sob a lógica capitalista, todo avanço tecnológico produz desemprego e submissão. Um novo projeto emancipatório precisa exigir o contrário: redução substantiva da jornada, sem diminuição de salários

Por Esteban Mercatante, no Ideas de Izquierda | Tradução: Inês Castilho

Os avanços da robotização e da inteligência artificial, nos últimos anos, deram novo vigor à reflexão sobre o “fim do trabalho”. Quase toda semana surgem na mídia notícias sobre os milhões (ou mesmo dezenas de milhões) de empregos que desaparecerão nos pŕoximos anos como consequência desse avanço. Os fantasmas sobre o fim do trabalho vêm de antes – em 1995 saiu o livro de Jeremy Rifkin O fim do trabalho e já nos anos 80 o teórico crítico André Gorz apontou as mutações no mundo da produção que colocavam em crise o papel do trabalho. Mas agora, tornaram-se uma perspectiva mais próxima, ou ao menos assim parecia, dados os prognósticos mais alarmistas. No ano passado, o Fórum Econômico Mundial, que se reúne todos os janeiros em Davos, apresentou estimativas que projetam uma queda dramática da quantidade de assalariados em consequência da introdução de novas tecnologias. Todos esses estudos têm muito de alarmistas; como mostra Paula Bach neste dossiê, a ameaça da robotização mostra-se exagerada à luz das tendências atuais de acumulação de capital. Michel Husson expõe conclusões semelhantes em O grande “bluff” da robotização. Por outro lado, a crise mundial desencadeada pela queda do Lehman Brothers, que teve seus efeitos mais duradouros nas economias mais ricas da Europa e dos EUA, complicou ainda mais o panorama do emprego. Mesmo nos EUA, o país capitalista onde o emprego mais se recuperou mais desde a quebra de 2008, os empregos criados são principalmente nos setores de serviços e de comércio, mal remunerados.

Nesse contexto, colocar em discussão a redução da jornada de trabalho para 6 horas pareceria mais que razoável. O volume de trabalho humano a realizar diminui, tanto por fatores estruturais de longo prazo – a crescente automação dos processos produtivos faz com que se possa produzir o mesmo com menos tempo de trabalho – como por razões mais conjunturais (o fraco crescimento que parece ter chegado para ficar nas economias mais ricas). Por que não repartir o trabalho social por todas as mãos disponíveis?

Na contramão do “fim do trabalho”

Um projeto como este não é do agrado do exército de especialistas advogados da “modernização” das relações de trabalho para favorecer os lucros empresariais. Sua rejeição é lógica: a questão do tempo de trabalho na sociedade capitalista não é algo que possa ser vista de forma ligeira. Por mais empenho que a economia mainstream tenha colocado nos últimos 150 anos para refutar Karl Marx e economistas clássicos como David Ricardo e Adam Smith, que reconheciam no trabalho a única fonte de valor – e portanto de lucro – na hora da verdade os donos dos meios de produção e seus gerentes sabem que cada segundo conta. Obter mais trabalho pelo salário que se paga é uma das chaves para elevar a taxa de rentabilidade.

Não surpreende portanto que, apesar das possibilidades técnicas apresentadas pelo aumento da produtividade, trabalhe-se tanto, no século XXI – ou mais – que no século XX. Por exemplo, nos EUA a produtividade duplicou entre 1979 e 2016, segundo o Escritório de Estatísticas de Trabalho (e triplicou desde 1957). No entanto, se no começo deste período as horas semanais trabalhadas na ocupação principal nos EUA eram de 37,8, em 2016 foram de 38,6. Trabalha-se mais, e não menos, que há 40 anos.

A situação não é muito diferente em outros países. Na França, que em 2000 introduziu a semana de 35 horas de trabalho, estas já quase não se aplicam. O ataque começou cedo, em 2003, com a lei Fillon (elaborada pelo então ministro François Fillon, candidato da direita nas recentes eleições presidenciais), que ampliou as horas extras possíveis de 130 a 200 no ano, e manteve a possibilidade de que as empresas imponham horas extras. Em 2015-2016 a lei Macron (candidato “independente” eleito presidente nestas eleições) estabeleceu a obrigação de trabalhar domingo no comércio, igualou o trabalho noturno com o trabalho feito à tarde e estendeu o tempo da jornada de trabalho para 12 horas diárias e 60 semanais. A decisão posterior do Senado, de reintroduzir as 39 horas, no lugar de 35, foi mais um passo no caminho de eliminar todas as barreiras legais à liberdade dos empresários para explorar o trabalho. Segundo o Eurostat, na França trabalha-se 40,5 horas por semana. O hoje abatido ex-candidato Fillon quer mudar para 39 horas semanais, mas pagar somente 37, “para ganhar competitividade”.

Na Alemanha, apelando à chantagem da deslocalização do trabalho para o Leste, a Siemens impôs em abril de 2004 aos trabalhadores da fábrica em Bocholt um acordo considerado “uma ruptura de época na história econômica da República Federal”: a volta de 35 para 40 horas sem nenhum tipo de aumento dos salários. No mesmo ano, a Opel obrigou os trabalhadores e o sindicato a concordar com uma semana de trabalho de 47 horas em troca de uma promessa – descumprida – de não despedir. As estatísticas falam por si mesmas: na Alemanha, a proporção de trabalhadores do sexo masculino que trabalham entre 35 e 39 horas caiu de 55% em 1995 para 24,5% em 2015; a proporção dos que trabalham 40 horas ou mais aumentou no mesmo período de 41% a 64%. Considerando-se o total de trabalhadores, homens e mulheres, a primeira categoria caiu de 45% para 20,8%, enquanto o segundo aumentou de 32, 7% para 46%.

Mudar… para pior

Sem dúvida, as relações de trabalho atuais não se ajustam às necessidades das empresas que apontam para uma maior “flexibilidade”, sempre entendida como menos direitos para os trabalhadores e menos obrigações para os empregadores. Hoje, uma das principais contestações à tradicional jornada de 8 horas vem da parte das próprias empresas. E não precisamente porque busquem liberar os assalariados da pesada carga do trabalho.

Além disso, a própria relação salarial está sendo reformulada. Corporações como Uber constróem grandes redes contando com uma folha de pagamento mínima, enquanto o serviço que define a empresa é realizado por trabalhadores “independentes”. Isso, que vem sendo chamado de “economia gig”, vem acompanhado de novas técnicas de persuasão ou coerção para arrancar mais trabalho desses trabalhadores independentes. “Mostramos aos motoristas áreas de alta demanda ou os incentivamos para que dirijam mais”, admite um porta-voz do Uber [1]. No caso da Amazon, uma investigação da BBC mostrou que os motoristas encarregados de distribuir seus produtos na Grã Bretanha eram forçados a trabalhar 11 horas ou mais, e inclusive fazer suas necessidades dentro de seus veículos para poder cumprir as exigentes metas de entregas da empresa, que podiam chegar até a 200 pacotes diários. Mesmo assim, apesar disso, em muitos casos, o rendimento mal equivalia a um salário mínimo, já que era preciso arcar com os custos do aluguel do veículo (ou de sua manutenção, se próprio) e seguro [2]. Sim, é a mesma Amazon que inaugurou um local sem caixas em Seattle, mostrando aquí uma face bem menos amável e de vanguarda: o da economia “gig” como mais um salto na extensão do “precariado”. Que têm em comum uma caso e outro, e os de muitíssimas empresas semelhantes em todo o mundo? O fato de seus “colaboradores” terem contratos independentes, que carecem da maioria das proteções associadas com o emprego.

Há também outras propostas de mudanças na jornada. Carlos Slim, o magnata mexicano das telecomunicações, colocou que seu método para “repartir” o trabalho: jornadas de 3 dias por semana… 11 hors por dia! Em troca, “as pessoas se aposentadoriam aos 75”. Trabalhar menos dias, ainda que em jornadas intermináveis… e por muito mais tempo de vida. Uma proposta que, ao menos neste último aspecto, pode ser do agrado de governos como o de Mauricio Macri, na Argentina, ou Michel Temer, no Brasil, empenhados em aumentar a idade da aposentadoria, estendendo-a até 65 anos para homens e mulheres.

Sejam felizes e produzam mais

Se fosse necessários ainda mais indicadores de que algo está ocorrendo – e algo tem de mudar – com a jornada de trabalho, há os múltiplos casos de empresas que começaram a cortar a jornada, apesar de que cada minuto de trabalho que sacrificam é um “custo de oportunidade” para os empresários. Fazem-no, obviamente, não por qualquer vocação caritativa mas contando em conseguir, em troca, maior produtividade durante o tempo que seus empregados estão no trabalho. A Suécia colocou em prova uma iniciativa no setor público da assistência aos idosos, onde se reduziu a jornada para 30 horas semanais (6 horas diárias). Segundo a avaliação realizada, as enfermeiras declararam-se mais felizes, melhor remuneradas (é como se se pagasse 33 % a mais a hora de trabalho) e sua produtividade aumentou. Ainda que seu trabalho tenha custado mais caro — e isso acabou determinando no início deste ano o abandono desta experiência — o cuidado dos pacientes melhorou, já que as enfermeiras se cansavam menos.

A possibilidade de ganhar em produtividade é o que impulsiona muitas empresas a também experimentar com a redução da jornada de trabalho, embora se trate de experimentos limitados. A Toyota (em sua filial sueca) é uma das empresa que o fez, assim como várias do setor de tecnologia. Na maioria dos casos, seguindo a tendência que analisamos acima, a outra face da redução do tempo passado no trabalho é o aproveitamento da maior conectividade para fazer com que os empregados continuem realizando tarefas fora do horário de trabalho.

Embora isoladas e sem marcar nenhuma tendência geral, como vimos, essas experiências desmentem a ideia de que seja impossível avançar com direção à redução da jornada de trabalho. Mostram também que, se depender do capital, isso só poderá ocorrer em troca de maior produtividade (intensidade do trabalho) e sem permitir – ao menos não inteiramente – que os desempregados possam voltar a obter um trabalho, já que se tentará compensar qualquer redução da jornada com maior produtividade. Fazê-lo de outro modo — ou seja, reduzir a jornada assegurando que todos possam trabalhar e receber um salário digno — implica afetar os lucros,para assegurar o emprego.

Direito contra direito

Em 1930, um ano após o início da Grande Depressão, o lorde John Maynard Keynes publicou As perspectivas econômicas para nossos netos, um texto em que, apesar do presente penoso, mostrava-se confiante sobre as perspectivas futuras, que ofereceriam desenvolvimento da produtividade. “Poderia predizer que o nível de vida nos países avançados será, dentro de cem anos, de quatro a oito vezes mais alto do que é hoje”. Considerando essa perspectiva, confiava em que “turnos de três horas ou semanas de trabalho de quinze horas” seriam mais que suficientes para satisfazer as necessidades econômicas. Como já vimos, o aumento da produtividade deu razão a Keynes na maior parte dos países ricos, mas não ocorreu o mesmo com as horas trabalhadas.

As possibilidades criadas pelo desenvolvimento da técnica, nas mãos do capital, convertem-se num pesadelo para os trabalhadores. O auge das comunicações e o barateamento dos custos de transporte das últimas décadas não reduziram as horas de trabalho nos países industrializados — apenas diminuiram a quantiade de trabalhadores ocupados. Em parte, isso se deu devido à automação, e em parte porque os empregos foram relocalizados nos países onde a força de trabalho é mais barata e onde também se pode fazer com que se trabalhe mais horas. A degradação subsequente das condições de emprego operou ainda mais em favor do capital, que pode impor em todo o mundo uma “arbitragem trabalhista”, fazendo com que os trabalhadores dos diferentes países compitam entre si, cedendo em condições de trabalho e remuneração para assegurar o emprego, numa verdadeira “corrida em direção ao abismo” [3].

As forças produtivas hoje disponíveis permitiriam amplamente oferecer a toda a humanidade o acesso aos bens e serviços fundamentais, ao mesmo tempo que reduzir para milhares de milhões de homens e mulheres a carga de trabalho. Mas isso se choca com as relações de produção capitalistas, que dependem da exploração da força de trabalho, arrancando dela o sobretrabalho/ trabalho excedente para assegurar o lucro, que motor desta sociedade.

Projetar a redução da jornada de trabalho mediante a partilha das horas de trabalho entre todas as mãos disponíveis, sem afetar o salário (garantido para todos os ocupados uma renda digna), significa colocar na mesa que o aumento ou “flexibilização” da jornada não são as únicas alternativas. Elas, além disso, nunca serviram para que o emprego cresça significativamente (e em muitos casos, nem sequer para que deixe de cair); somente conseguem degradar a qualidade dos empregos existentes. Tampouco passa, como foi proposto em diversas modalidades, pela ilusão de que o Estado assegure uma renda universal tanto para os que estão empregados como para os que não estão. Trata-se de colocar em questão como se produz e como se repartem os frutos dessa produção.

Reduzir esta jornada significaria, além disso, desnaturalizar o “exército industrial de reserva”, termo com que Marx caracteriza o papel desempenhado pela força de trabalho desempregada ou semiempregada. Sua existência é o que permite que os mecanismos de mercado operem no que diz respeito aos salários, de forma favorável ao capital, limitando o crescimento dos salários nos momentos de auge e facilitando a queda dos mesmos em tempos de crise.

(…)

Não se trata aqui do choque “normal” de interesses materiais opostos. Trata-se de preservar o proletariado da decadência, da desmoralização e da ruína. Trata-se da vida e da morte da classe criadora e, por isso mesmo, do futuro da humanidade. Se o capitalismo é incapaz de satisfazer as reivindicações que surgem dos males engendrados por ele mesmo, só lhe resta morrer. A “possibilidade” ou a “impossibilidade” de realizar as reivindicações é, neste caso, uma questão de relação de forças que só pode ser solucionada pela luta. Sobre a base desta luta, quaisquer que sejam os êxitos práticos imediatos, os trabalhadores compreenderão, na melhor forma, a necessidade de acabar com a escravidão capitalista.

A proposta de trabalhar menos horas para que todos trabalhem, sem afetar os salários, coloca em questão a naturalização do “direito” do empresariado de dispor da força de trabalho como bem entende, em função de ampliar seus lucros, enquanto esse privilégio promove uma progressiva deterioração para uma faixa de assalariados. Trata-se de um projeto que só poderia realizar-se integralmente por um governo de trabalhadores que se proponha superar – em nível internacional – esse sistema baseado na exploração social. Se o capitalismo criou esta possibilidade – a de reduzir o tempo necessário para assegurar a reprodução dos bens socialmente necessários – mas se isso só pode ser feito questionando os mecanismo de exploração que sustentam este sistema, “só lhe resta morrer”, para abrir caminho para uma organização da produção articulada não em função do lucro privado, mas das necessidades sociais.

Notas

[1] Noam Scheiber, “Os truques psicológicos da Uber para que seus motoristas trabalhem mais”, The New Times, edição em espanhol, 6/4/2017.
[2] “Amazon drivers ‘work illegal hours’”, BBC, 11/06/16.
[3] Esteban Mercatante, “Uma corrida até o abismo”, IdZ 30, junho 2016.

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Redação

4 Comentários

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  1. O loop histórico do capitalismo.

    É interessante constatar que, mesmo com o grande aumento da produtividade (mais-valia relativa), a mais-valia absoluta (jornada de trabalho) continua tão importante para os capitalistas.

    Mas, a contradição entre acumulação de capital e queda geral dos salários (por desemprego estrutural) já leva o Capital a um impasse: como crescer em tal cenário? Eles tentam uma louca corrida para frente, como a que vemos hoje no Brasil, o que apenas agudiza a contradição.

    Precarizando e desempregando cada vez mais, e vendo seus lucros sumirem pela necessidade de renovação tecnológica constante, os capitalistas recorrem ao Estado policial para tentar sufocar a revolta dos prejudicados. Uma espiral suicida de violência que apenas atrasa um pouco a aniquilação da classe capitalista.

    Curiosamente, a chamada “era burguesa” no Ocidente começou com a total ignorância de Luís XIV com a realidade que o cercava. Acabou sem cabeça.

    Parece que os burgueses, que tomaram o Poder naquela ocasião, preferem viver em um mundo paralelo, neoliberal, onde celebram a “liberdade” enquanto massas crescentes de pessoas estão na fome, ignorância e desespero.

    Cabeças irão rolar.

  2. O trabalho não é a solução e sim o problema!

    O autor quer uma saída do capitalismo por meio do trabalho. Isto não é possível. Já foi tentado na URSS e só gerou uma espécie de capitalismo de estado, nos moldes da pré-história do capitalismo.

    O trabalho é uma invenção do capitalismo. Ele serve para subordinar a vida humana ao valor/dinheiro. Não é redistribuindo trabaho ou dinheiro que se saírá do capitalismo. Aliás, esta redistribuição é impossível, pois a lógica do capital é concentrar a renda, gerar monopólios e excluir os “improdutivos”. Todas as tentativas de frear o capital (social democracia e estado do bem estar) ou de tentar um socialismo pela via do trabalho fracassaram e redundaram, ao fim, de mais capitalismo, cada vez mais selvagem.

    A saída é acabar com o trabalho. Acabar com essa forma social, que nos obriga a exercer todas as atividades em troca de dinheiro, transformando o ser humno em mercadoria-dinheiro. Durante milênios os homens construíram suas casas, plantaram, criaram animais, fabricaram ferramentas, escreveram livros e desenvolveram muitas outras atividades sem precisarem  reduzir todas estas atividades a horas-valor e mais valor, ou seja, sem reduzi-las à medida abstrata e universal do valor.

    Precisamos pensar um jeito de utilizar todo o tesouro coletivo que são as nossas técnicas e conhecimento acumulado para sair do capitalismo, ABOLINDO O TRABALHO  e não salvando o trabalho. As atividades que necessitem de pessoas para serem exercidas deveriam ser repartidas entre os membros da comunidade, de acordo com decisões e planejamentos coletivos, sem remueração em dinheiro (que seria abolido, junto com as mercadorias, o estado, o direito e o trabalho).

    Isto não é utopia nem delírio, mas uma necessidade, diante da destruição social e ecológica que o capitalismo está causando. São ideias absolutamente racionais e tecnicamente passíveis de se realizarem. O fato das pessoas acharem esta ideias malucas, só mostra o quanto estão imersas na “lógica” irracional e destrutiva do capitalismo.

     

  3. BIOMA DA ECONOMIA CAPITALISTA

    O conceito de sistema, tal como formulado inicialmente no campo das ciências da natureza, foi integralmente assimilado na sociedade contemporânea, sendo talvez o sintoma mais evidente da “naturalização” contínua da humanidade, nos dias atuais. Na prática, a abordagem sistêmica traz a enorme vantagem de possibilitar um controle sobre os recursos, os meios e o tempo necessário para atingir um determinado objetivo, seja ele a realização de lucro em uma atividade econômica, a seguridade social, a geração de energia, o funcionamento de um programa de computador, até mesmo para a produção de alimentos e na agricultura em geral, para citar alguns exemplos que me ocorrem no momento, entre milhares de outros.

    No centro de todos os sistemas abertos da sociedade contemporânea está a economia em escala global, com subsistemas nos diferentes países, engendrado pelo modo de produção capitalista nos últimos 400 anos, período que coincide com a ascensão mundial da civilização ocidental. Transformando-se pari passu com a ciência moderna, sua “filha” dileta, o capitalismo nos moldes ocidentais gradativamente implantou uma cadeia de produção de bens/serviços e consumo em escala global, que abrange todos os continentes (exceto a Antártida, ainda), e a quase totalidade dos seres humanos, onde supostamente impera a racionalidade inerente à ciência, que se manifesta à sociedade como tecnologia.

    Três das características principais desse grande sistema aberto são: 1) a enorme interdependência entre os envolvidos (países, empresas, grupos sociais, famílias e indivíduos); 2) a distribuição desigual da riqueza – em ganhos monetários e acesso aos bens essenciais à sobrevivência – obtida com a participação no sistema, e, não menos importante; 3) o caráter anônimo das relações pessoais inseridas na cadeia de produção/consumo que garantem o funcionamento do sistema (a título de exercício de abstração, basta pensar em quantas pessoas estão envolvidas desde o plantio de árvores, passando pela fabricação de papel higiênico até a venda em um estabelecimento de varejo, onde qualquer um pode compra-lo).

    O marco fundamental das transformações no sistema econômico mundial que resultaram nas três características apontadas acima foi a industrialização, consolidada como modelo ideal de produção a partir do século XVIII. Os ganhos obtidos com a produção em escala, nascido das primeiras manufaturas modernas e incrementado nas fábricas plenamente industriais a partir do século XIX, tornou-se o cânone do capitalismo reinante, que se espraiou para todos os setores da economia. É esse o fator determinante, fundamental, da relação do capital com o trabalho humano, nos conceitos de produtividade, mais valia, etc. Na base desse cânone está a convicção de que se produz alguma coisa em grande quantidade porque assim muitos poderão adquirir a coisa produzida em razão do valor acessível. Na ponta oposta, muitos irão comprar essa coisa pelo fato de que o valor dessa coisa compensa sua aquisição, se se considerar os meios ou o tempo necessário para produzi-la por si mesmo.

    Vistas em conjunto, essas características permitem uma única analogia possível para a o sistema econômico global contemporâneo: os chamados biomas naturais, essa intrincada e ainda enormemente desconhecida interação entre seres vivos (desde microrganismos unicelulares a baleias azuis) e o meio físico (oceanos, solo, atmosfera, Sol, Lua, etc.). Assim como um espécime de fito plâncton boiando na superfície do oceano não têm consciência de que produz o oxigênio que a baleia azul respirar, nenhum ser humano cuja sobrevivência dependa do sistema econômico global tem noção de sua real importância dentro da economia organizada nos moldes capitalistas, ainda que saiba de antemão que é muitíssimo reduzida.

    Isso inclui governantes, CEOs e global players do sistema financeiro mundial, igualmente incapazes de compreender seu papel real, justamente porque, mesmo dispondo de mais informação (e, pretensamente, conhecimento) sobre o funcionamento do sistema, a cadeia é tão complexa que ninguém detém controle sobre ela, ainda que tenha influência decisiva. As históricas crises sistêmicas do capitalismo, sobretudo as de 1929 e 2008, são a prova cabal dessa incompletude.

    Se o funcionamento da economia capitalista em escala global é análogo ao de um bioma natural é porque, fundamentalmente, ambos possuem um fator em comum: o comportamento dos seres vivos (humanos ou não) orientado para atender a necessidades essenciais. Às necessidades primais (respirar, comer, beber, dormir, reproduzir, etc.) a sociedade humana acrescenta outras, tais como habitar, vestir, comunicar-se, divertir-se, etc. O contraste se dá no controle do comportamento, visto que os seres humanos sempre se organizaram de diferentes formas para atender essas necessidades e elas sempre ocuparam a maior parte do tempo de vida em vigília (no momento em que escrevo, é possível que muitas pessoas já não passem a maior parte da vida dormindo, visto que é necessário trabalhar cada vez mais!).

    O que difere a sociedade contemporânea é justamente o fato de haver condições para atender as necessidades básicas de todos os seres humanos em muito menos tempo, se se considerar todos os recursos materiais, o arsenal tecnológico e o conhecimento disponíveis. Se o esforço para atender tais necessidades pode ser muito menor e exige menos tempo, em tese haveria maior possibilidade para ir além das necessidades e efetivamente nos tornarmos seres humanos: criar ou inventar coisas, debater a forma como os assuntos comuns devem ser conduzidos, contemplar o universo, estar com pessoas que amamos, ter orgasmos (sim, até prova em contrário, o orgasmo é uma exclusividade dos seres humanos entre todos os demais seres vivos!), conhecer e dar voz a nossos sentimentos, compartilhar experiências, conhecer novos lugares e pessoas, acompanhar o crescimento de nossas crianças, observar a natureza, etc., etc.

    O que explicaria, então, o fato de que, tal como as sociedades primitivas, a sociedade contemporânea ainda “gasta” a maior parte do tempo suprindo as necessidades das pessoas que a constituem? Existe a resposta clichê, do tipo “o sistema capitalista é controlado por uma minoria de ricos que têm o poder de coagir a humanidade inteira a se comportar como seres vivos em um bioma”. De fato, os grandes players do capital global são extremamente organizados e influenciam enormemente a máquina estatal em todos os países, e, com isso, conseguem que seus interesses não sejam ameaçados, mantendo o capitalismo funcionando plenamente.

    Mas, tal como em um bioma natural, ninguém controla o sistema econômico global nos moldes capitalistas. Trata-se de um sistema complexo demais, cuja dinâmica só aparentemente é determinada pelas grandes transnacionais, agências de fomento, agências de rating e pelo sistema financeiro, pois é o que a grande mídia divulga. Na verdade, o sistema como um todo depende do comportamento de cada pessoa que nele toma parte. Há apenas um Carlos Slim, um George Soros e um Bill Gates, assim como um Fórum de Davos no mundo, e a maneira como eles agem tem uma influência gigantesca na economia global, principalmente pelo fato de que suas ações visam, fundamentalmente, consolidar o capitalismo como modo de produção. Todavia, é o comportamento errático de bilhões de pessoas, guiado por circunstâncias fortuitas, eventos fugazes, fortemente dependente de impressões, preconceitos e opiniões, que efetivamente faz com que a economia funcione. E ela funciona na medida que, todo dia, cada um de nós, em algum momento, constate (ou tenha a convicção) que precisa de alguma coisa para viver, de modo que, ou precisamos obter os meios (trabalhando em troca de um salário, na maioria dos casos) para conseguir aquilo, ou suprimos essa necessidade aqui e agora.

    Ao emular os grandes e complexos sistemas naturais, a economia global compartilha a tendência constante à desestabilização e o risco de entrar em colapso. No entanto, se as crises nos sistemas naturais significam simplesmente uma mudança ou transformação no arranjo dos elementos que os compõem, no caso da economia a irrupção de uma crise possui outro significado, a perda do pouco de dignidade que ainda resta para milhares ou milhões de pessoas. Do ponto de vista natural, a espécie Homo sapiens sapiens tem plenas condições de sobreviver a catástrofes. Já a condição para a existência e permanência da humanidade no planeta Terra é que cada ser humano tenha condições dignas para a satisfação das necessidades básicas inerentes à espécie (isso não inclui recolher alimento em sacos de lixo, nem dormir sob marquises) e autonomia para viver plenamente, segundo seu talento, suas aspirações e possibilidades. É por meio da dignidade que conseguimos superar crises, inclusive econômicas, como seres humanos. Sem dignidade, tendemos a sobreviver a crises em uma condição que nos aproxima dos animais, guiados que somos pelos instintos, ainda que com o auxílio da nossa inteligência.

    Se é possível discutir alternativas ao capitalismo, sua transformação ou superação, tal discussão, a meu ver, vai muito além do embate entre as forças produtivas e os interesses do capital. Em outras palavras, ainda que reconheça o enorme avanço representado por experiências realizadas dentro do modo de produção capitalista, tais como a redução de jornada de trabalho sem redução da remuneração, ou as cooperativas de trabalhadores que assumem a administração de empresas em dificuldades, entre outras, o marco, a referência fundamental deve ser a vida humana, no sentido mais elevado que essa expressão possui. Não é sustentável para a humanidade um modo de produção, qualquer que seja ele, que obrigue os seres humanos a dispender a maior parte do tempo de sua curta existência na Terra unicamente para atender níveis crescentes de produtividade de bens e serviços em troca de uma remuneração sempre aquém do valor que produz, muito menos quando o trabalho realizado é alheio às aspirações, desejos e possibilidades do trabalhador.

    O desafio para que se alcance condições verdadeiramente humanas no trabalho e na economia como um todo, que promova a dignidade para cada ser humano que habita este planeta como fundamento essencial de todo empreendimento, é incomensurável no momento. A maneira como se delineiam as tendências atuais, em que o mainstream do capitalismo alardeia a aparente racionalidade que impregna o sistema, orientado pela ética baseada na “meritocracia”, não é auspiciosa. Sabe-se que o grande capital, atualmente, fomenta ou é conivente com coisas como a escravidão (substituída pela expressão “condições de trabalho análogas à escravidão”), a corrupção de agentes públicos, atividades criminosas (notadamente o sistema bancário!), a perda da privacidade individual, a subversão dos princípios legais e do aparato jurídico que deveria proteger os direitos individuais e coletivos, a pandemia de depressão e outras doenças relacionadas ao trabalho, etc. Esse novo padrão “ético” ocorre no bojo da mais avassaladora escalada da concentração de poder econômico registrada desde o início do século XX, consolidando-se em fusões e aquisições que constituem megacorporações cada vez mais influentes em escala mundial.

    Se a história nos ensina alguma coisa sobre o capitalismo como modo de produção é que ele vem sendo capaz de se manter intacto a despeito das grandes crises econômicas e políticas do século XX e desse início de século XXI e se expandir nas mais variadas condições, ao custo da deterioração contínua das condições das forças produtivas. A face mais cruel desse estado de coisas tem sido a opressão dos trabalhadores pela manutenção, com a anuência do Estado-nação, de um constante exército de reserva de mão-de-obra. Enquanto dezenas de milhões de trabalhadores na União Europeia enfrentam a precarização de suas relações de trabalho, centenas de milhões de pessoas na África, na Ásia e na América Latina imploram por uma oportunidade de trabalho e renda, ainda que em condições degradantes.

    O desafio posto talvez não seja eliminar o exército de reserva incorporando esse enorme contingente de pessoas a uma ocupação remunerada em níveis satisfatórios e em condições dignas de trabalho, tal como propõem os setores de esquerda ou progressistas. O meio mais “radical” para eliminar esse exército de reserva seria, quem sabe, garantir condições dignas para todos aqueles que não trabalham ou que não queiram trabalhar em atividades que não satisfaçam seus anseios pessoais. Significaria remunerar e dar condições satisfatórias para pessoas que preferem ficar em casa cuidando do irmão adicto em drogas ou álcool, ou pessoas que preferem dar aula para jovens a ganhar pequenas fortunas como operadores na bolsa de valores, e mesmo pessoas de qualquer idade interessadas em escrever ou fazer música. Isso em nada comprometeria a economia, justamente porque há muitas pessoas que se interessam por uma boa remuneração ou desafios de uma carreira bem-sucedida em uma empresa com fins lucrativos. A grande transformação seria a de que trabalhar e receber um salário não seria a única alternativa de vida produtiva, muito menos a única maneira de “sobreviver”!

    Tal mudança forçosamente implicaria na diminuição drástica das fortunas acumuladas mundo afora, por meio da atuação do Estado em favor da sociedade como um todo. Tal como se observa o momento atual, trata-se de uma proposta autenticamente utópica. Porém, vista de outra perspectiva, trata-se de uma mudança fundamental, talvez a única possível, diante de um cenário que abrange graves problemas ambientais, recrudescimento de tensões sociais de natureza étnica, religiosa, de gênero, que ameaçam as sociedades com uma nova onda de barbárie. A outra alternativa, nada fazer, poderá conduzir a um novo tipo de totalitarismo, muito pior do que o nazi-fascismo do século XX, visto que os meios para o “controle” social estão muito mais sofisticados. Ou será que o pessoal de Davos já está trabalhando nesse “projeto”?

  4. Jornada de 4 horas já era um sonho possível no Século XIX
    No século XIX já era possível uma jornada de 4 horas diáriasTomás Morus tb falou sobre redução da jornada 13/02/2010 13:43

    “Uma nação que procura desenvolver-se espiritualmente com maior liberdade não pode continuar vítima das suas necessidades materiais, escrava do seu corpo. Acima de tudo, precisa de tempo livre para criar e usufruir da cultura. Os progressos da organização do trabalho facultam esse tempo. Um simples trabalhador na indústria do algodão produz agora frequentemente, com a ajuda de novas forças motrizes e das máquinas aperfeiçoadas, tanto como antes produziam 100 ou mesmo 250-350 trabalhadores. Iguais realizações há, embora não na mesma escala, em todos os ramos da produção, como conseqüência necessária do fato de as forças da natureza se verem progressivamente forçadas a colaborar com o trabalho humano. Se a quantidade de tempo e de esforço humano, que em época anterior se necessitava para satisfazer determinada soma de necessidades materiais, foi reduzida pela metade, então o tempo disponível para criação e usufruto da cultura, sem qualquer redução no bem-estar material aumentou em igual medida. Mas a divisão das vantagens que conquistamos ao velho Cronos no seu próprio campo é ainda determinada pelo jogo dos dados do acaso cego e injusto. Calculou-se já que na França, no presente nível de produção, a média de um trabalho de cinco horas diárias por cada pessoa capaz de trabalhar seria suficiente para obviar todas as necessidades materiais da sociedade {…} apesar de a economia de tempo por meio do maquinário, a duração do trabalho servil nas fábricas aumentou para grande parte da população.” – Wilhelm Schultz, citado por Karl Marx nos Manuscritos Econômicos-Filosóficos.

    https://midiaindependente.org/pt/blue/2010/02/464929.shtml

    https://midiaindependente.org/pt/blue/2013/05/519572.shtml

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