O perigo de normalizarmos figuras como Janaina Paschoal, por Eduardo Borges

Paschoal fez uma perigosa ilação no sentido de vincular as ações do MT, com desapropriação de terras e com o próprio governo Lula.

O perigo de normalizarmos figuras como Janaina Paschoal

por Eduardo Borges

Nos últimos meses tem ganhado os noticiários a ação da Polícia Federal e do Ministério do Trabalho contra situação de trabalhadores em condições análogas à escravidão. Trata-se de um tema repugnante e da mais profunda crueldade que de certa forma deveria unificar a sociedade brasileira em detrimento da luta ideológica que tem nos fracionado nos últimos anos. Talvez por uma utópica e ingênua esperança no caráter do brasileiro, acreditamos em uma unânime empatia social em torno de causa tão cruel. Ledo engano. No Brasil do bolsonarismo, empatia humana é produto escasso. Tem aparentado privilégio de poucos. Que o diga a campanha transfóbica que tem tomado conta do nosso parlamento nessa legislatura.

Mas voltando à questão da escravidão, esta semana a “jurista” Janaina Paschoal mostrou que poderíamos descer ainda mais no esgoto da existência humana. Em um programa de “debates” do canal televisivo CNN, Paschoal destilou toda sua capacidade de construir narrativas levianas e toscas em defesa de causas reacionárias que ferem diretamente a dignidade humana. Buscando polemizar (ou é esse realmente seu pensamento genuíno?), a professora da USP (agora na condição de comentarista) simplesmente colocou em dúvida as recentes autuações policiais no combate à ações de exploração trabalhista em condições análogas à escravidão. Representando o pensamento da burguesia rural, Paschoal fez uma perigosa e, porque não criminosa, ilação no sentido de vincular as ações do MT, com desapropriação de terras e com o próprio governo Lula.

 Chegou ao despropósito de relacionar as péssimas condições de trabalho que motivaram as ações policiais a um possível “mimimi” materializado na separação por centímetros entre um beliche e outro nos alojamentos. Esquece a “eminente causídica” de que uma coisa é reclamar de cama muito próxima nos quartos do Copacabana Palace, outra é fazer o mesmo em um galinheiro improvisado. A falta de sensibilidade e empatia humana de gente como Janaina Paschoal só não nos assusta mais porque já provamos do que somos capazes quando elegemos para o mais importante posto da Republica uma figura abjeta como Jair Bolsonaro.

Aliás, no tocante ao trabalho análogo à escravidão, Jair Bolsonaro foi exemplar atuando em sintonia com a mentalidade de Janaina Paschoal ao relativizar o crime. Em 2004 durante o governo Lula foi criado uma “lista suja” que reunia as empresas que usavam trabalho em condições análogas à escravidão. Depois do golpe de 2016, Michel Temer tentou dificultar a divulgação dessa lista exigindo que só pudesse ser feita com a  “determinação expressa do ministro do Trabalho”. Em 2020, o STF desobrigou a necessidade de aprovação do ministro. Não satisfeito, em 2021, a Controladoria-Geral da União (CGU) sob o governo Bolsonaro, ainda que cumprindo a decisão do STF, buscou dificultar o acesso a dados dos autos de infração das empresas autuadas por trabalho análogo à escravidão. Em 2019, em uma entrevista, Bolsonaro teve o desplante de dizer que a “linha divisória do trabalho análogo ao escravo é muito tênue” e que o empregador necessitava de uma garantia para que as condições de seu trabalhador não fossem classificadas como análogas à de escravidão. Ou seja, para o presidente e agora também para Janaina Paschoal, o trabalho escravo realmente deve ser devidamente punido, mas “trabalho análogo à escravidão” precisa ser melhor analisado a culpabilidade de quem o exerce.

Mas o que verdadeiramente está por trás do argumento de Janaina Paschoal? Resposta: A escancarada ideologização das relações de trabalho no Brasil e, por tabela, a defesa do grande latifúndio que constituiu a base do desenvolvimento do capitalismo brasileiro desde os tempos da colônia, sustentado com base no trabalho escravo até 1888. Mas ao minimizar o trabalho análogo à escravidão e tripudiar sobre sua repressão Janaina Paschoal não somente ofendeu profundamente as vítimas dessa desumanidade, ela ofendeu a todas as parcelas da sociedade brasileira que seguem vítimas do capitalismo selvagem imposto por aqueles a quem Paschoal presta serviço e subserviência.

 Diante do exposto, a título de compreendermos o quanto Janaina Paschoal se mostra, enquanto “jurista”, desconectada da ciência que aparentemente diz ser representante, tracemos, ainda que de forma introdutória, a trajetória da escravidão na história das relações de trabalho no Brasil e o histórico de sua legislação em âmbito mundial e no interior do ordenamento jurídico brasileiro.

Pensada com uma lógica empresarial, a conquista da América portuguesa a partir do século XVI se deu com base na exploração ampla de interesses econômicos. Metais preciosos e circulação de mercadorias advindas das colônias sustentaram a acumulação primitiva de capitais no centro da Europa. Nesse contexto, não foi difícil enxergar no tráfico e na exploração do trabalho humano um interessante elemento de obtenção de lucros e dividendos. Descartado, depois de primeira experiência, a escravização dos indígenas, percebeu-se que o tráfico de humanos com a Costa africana poderia caracterizar duas fontes de exploração: mão de obra cativa e produto comercial. A escravidão se impôs como modo de produção hegemônico e do ciclo do pau-brasil, passando pelo o do açúcar, mineração e café, o trabalho escravo moldou a estrutura econômica brasileira até o século XIX. Contudo, a partir de sua abolição oficial em 13 de maio de 1888, a escravidão até desaparece como regime jurídico no Brasil, mas mantem-se mediando as relações sociais e econômicas até os dias de hoje. É justamente essa mediação que gente como Janaina Paschoal faz questão de não enxergar.

Faço coro com o sociólogo Jessé de Souza quando este deslocou a escravidão para o centro da formação histórica do Brasil. A existência, no passado, da exploração institucional de seres humanos acabou por definir uma “naturalização da desigualdade social”. De acordo com o sociólogo, a escravidão no período colonial foi a instituição que influenciava todas as outras, e continua por influenciar ainda hoje. A condição de subalternidade social e de explorada economicamente, vivenciada pelos escravizados do passado, é hoje reproduzida na exploração praticada pela classe média e pela elite sobre seus subalternos situados no ambiente privado e doméstico e devidamente naturalizada por gente como Janaina Pascoal. Mais do que isso, além da mesma prática do passado, sobrevive até hoje o ódio e o desprezo que se destinava ao escravizado negro, materializado no racismo e em outras formas abjetas de exclusão política, social, e até mesmo estética.

Pelo menos como “jurista” Janaina Paschoal deveria admitir que a escravidão, assim como a tortura, talvez sejam o último estágio da estupidez humana. Minimiza-la, em qualquer circunstância, mesmo para agir como sabujo da classe latifundiária, é quase um desvio de caráter por ensejar tamanha insensibilidade. Mas principalmente, como “jurista”, Paschoal deveria conhecer a historicidade da luta jurídica contra a existência de qualquer resquício de escravidão ou de condições análogas a esta. Desde a Lei do Ventre Livre e a dos Sexagenários, que antecederam a Lei Áurea, e mesmo que tenham sido muito mais um simulacro de lei protecionista, ainda assim são resultados de uma embrionária luta de abolicionistas engajados na defesa da dignidade humana. A ética e o princípio humanístico de Janaina Paschoal está defasado em mais de 100 anos.

No século XX, organismos internacionais intensificaram sua luta anti escravidão. Ainda no século XIX, foi assinado em Bruxelas, em 1890, um Ato Geral no sentido de reprimir o tráfico em toda África negra. Já no século XX, ao fim da Primeira Guerra Mundial, a Convenção de Saint-Germain-em-Laye, de 1919, assinada pelos países do centro do capitalismo mundial, buscou atualizar o Ato da Conferência de Bruxelas. Logo depois uma Convenção sobre a Escravatura foi assinada em Genebra, no âmbito da Liga das Nações, em setembro de 1926, sendo estabelecido que escravidão seria: “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade”.[1] Mas ainda estávamos em tempos coloniais e a Convenção não alcançou êxito imediato. Ainda na primeira metade do século XX, na Conferência Internacional do Trabalho (OIT), reunida em Genebra em 1930, foi adotada a Convenção n. 29, sobre a abolição do trabalho forçado. Vejamos o que dizia seu artigo primeiro:

Art. 1 — 1. Todos os Membros da Organização Internacional do Trabalho que ratificam a presente convenção se obrigam a suprimir o emprego do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas no mais curto prazo possível.[2]

O Brasil viria a ratificar a Convenção em 1957. O Brasil seguiu ratificando todas as decisões internacionais como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas de 1966, ratificado em 1992, que em seu artigo 8º proíbe todas as formas de escravidão. Depois veio o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas de 1966, ratificado pelo Brasil também em 1992 e que garantia a todos condições de trabalho equitativas e satisfatórias. O objetivo de trazer essa breve trajetória internacional da luta contra a escravidão é para apresentar a pessoas como Janaina Paschoal que a escravidão e qualquer uma de suas derivações devem ser combatidas de forma intransigente e que enxergá-la com lente ideológica é um verdadeiro ultraje à dignidade humana.

Além de ratificar os Atos internacionais o Brasil também buscou construir uma legislação referente ao tema da escravidão. É possível dizer que o Direito do Trabalho no Brasil nasce em 1930 com a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, Vargas esboçou o que viria a ser a legislação trabalhista do país visando a criação e proteção de direitos da classe trabalhadora. A partir de 2016 os governos Temer e Bolsonaro trataram de consolidar sua destruição com a execrável Reforma Trabalhista. No que se refere à condição análoga à escravidão se confirmou como crime no Ordenamento Jurídico brasileiro no artigo 149 do Código Penal de 1940 cujo texto é:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.[3]

Esta redação foi resultado de uma atualização do artigo 149 pela Lei nº 10.803/2003 assinada pelo então presidente Lula. A pena definida para quem cometer esse delito vai de 02 a 08 anos de reclusão além de multa e danos morais relativos à violência cometida.

Entretanto, voltando a Janaina Paschoal, a base de seu argumento no programa da CNN foi um possível risco de “invasão” de terras pelo MST em decorrência das autuações. Segundo ela, haveria uma coincidência entre a ampliação do volume de autuações nos últimos três meses de 2023 e um suposto pedido de expropriação de terras por parte de parlamentares de esquerda. O argumento é raso e ridículo, pois pode ser refutado com uma simples pesquisa no google. Segue informações do site Headline: “Em 2021, foram descobertas no Brasil 1.937 pessoas em situação de escravidão contemporânea – o maior número desde os 2.808 casos registrados em 2013, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT)”.[4] Ou seja, os números são de 2021, e quem governava o Brasil era o queridinho de Paschoal o inefável Jair, o sheik árabe.

Sem apresentar uma única prova de todas essas levianas acusações (ela é realmente advogada?), Paschoal deixou claro de que está orgulhosamente ao lado dos opressores na cruel luta de classes brasileira. Mas não se enganem, ela não é completamente ingênua, e sua preocupação com a expropriação de terras tem fundamento constitucional. Vejamos o que diz o artigo 243 da Constituição Federal de 1988:

Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014).[5]

O medo de Janaina Pascoal, como garbosa defensora da Casa Grande, é sintomático sobre a atual conjuntura política que derrotou a extrema direita que ela tão eficientemente ajudo a eleger quando forjou o golpe da ex presidente Dilma Roussef e se aliou ao grotesco Jair Bolsonaro. Certamente que como “jurista” ela conhece o artigo 170 do Texto Constitucional, em seu inciso III, que estabelece como princípio à ordem a chamada “função social da propriedade”. Apesar de reconhecer o direito à propriedade privada o artigo 170 visa assegurar que em uma democracia o interesse público deve se sobrepor sobre o privado. Mas Janaina Paschoal e sua corja de adoradores podem ser muitas coisas, menos democráticos e, muito menos, indivíduos preocupados com o interesse público.

Enfim, esse discurso “passapanista” de Janaina Pascoal em defesa das empresas que comprovadamente praticaram o trabalho análogo à escravidão não é gratuito, é ideológico e classista. Ao mesmo tempo, é preocupante que discursos desonestos como o dela continue sendo legitimado e normalizado na mídia corporativa como se fosse um simples exercício de “liberdade de expressão”. Falas como essas são perigosas pelo simples fato de continuarem municiando uma plêiades de fanáticos cuja única obsessão é golpear a democracia em nome de um escatológico projeto de poder baseado no fascistóide lema de “Deus, Pátria, Família e Liberdade”.


[1]http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/gen1926.htm#:~:text=Em%2025%20de%20setembro%20de,no%20tocante%20ao%20tr%C3%A1fico%20de

[2] https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235021/lang–pt/index.htm

[3] https://www.jusbrasil.com.br/busca?q=Artigo+149+C%C3%B3digo+Penal

[4]https://www.headline.com.br/milhares-de-trabalhadores-em-situacao-de-escravidao-contemporanea-foram-resgatados-no-brasil-7c851772

[5] https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10642247/artigo-243-da-constituicao-federal-de-1988

Eduardo Borges – Historiador

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. A publicação do artigo dependerá de aprovação da redação GGN.

Redação

3 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Janaina não é de deus, e ratificar pactos para o brasil é apenas enche-los de ratos, especialmente quando nossa política segue a “exemplar” política americana.

  2. A CNN é mestra em dar voz a lixo humano. Ou será lixo desumano?
    Tomara que quebre logo. De porcarias midiáticas já temos a globo e todas as outras da imprensa(sic) corporativa.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador