Argentina mostra que a extrema-direita segue viva e (quase) sem adversários, por Erick Kayser

As últimas décadas sob a hegemonia do neoliberalismo permitiram que a insatisfação social fosse absorvida pelos radicalismos neofascistas

Javier Milei, Eduardo Bolsonaro e José Antonio Kast – Reprodução Redes Sociais

Argentina mostra que a extrema-direita segue viva e (quase) sem adversários

por Erick Kayser

            Se após a derrota de Trump na sua tentativa de reeleição nos EUA e a vitória de Lula contra Bolsonaro, nas eleições brasileiras de 2022, pareciam indicar uma reversão do crescimento eleitoral da extrema-direita pelo mundo, a recente vitória de Javier Milei na Argentina mostra que a situação não é esta.

            Poucos dias após a conquista da presidência argentina pela excêntrica figura de Milei e suas posições autodeclaradas anarco-capitalistas, na Europa, as eleições nos Países Baixos foram na mesma direção. O Partido pela Liberdade (PVV), liderado por Geert Wilders, conhecido pelas posições nacionalistas chauvinistas, foi o mais votado, ficando com 36 dos 150 assentos nas eleições legislativas, dobrando o número de cadeiras da sigla. Anteriormente, a Itália com Giorgia Meloni, fez sua guinada para extrema-direita, demonstram que este é um fenômeno politico abrangente e perene. Aparentemente, a “nova” extrema-direita venho para ficar.

            Tratada como um fenômeno anômalo, expressão da crise das democracias ocidentais e ocidentalizadas, o crescimento das extremas-direitas, entre outras coisas, responde a insatisfações difusas, mas palpáveis, que são instrumentalizadas politicamente através de falsas soluções, cujos limites evidentes de efetividade para solucionar os problemas, é encoberto por uma radicalidade retórica. O líbelo a ação, apontando para soluções imediatas, mesmo que irrefletidas, alimentam uma esperança política ausente no discurso liberal dominante.

            As últimas décadas, sob a hegemonia do neoliberalismo, ao mesmo tempo que aprofundaram as desigualdades sociais em uma escala inédita, com as mudanças no mundo do trabalho e o enfraquecimento do sindicalismo e de redes associativistas, aliada ainda ao recuo ou cooptação de uma parcela expressiva da esquerda ao discurso da ordem liberal, permitiram que a insatisfação social fosse absorvida pelos radicalismos conservadores ou neofascistas. Atacando sintomas das políticas neoliberais, pontualmente até mesmo contrapondo-se a alguns de seus fundamentos – críticas ao mercado financeiro ou a globalização -, estes grupos políticos da direita “iliberal” (termo usado por Viktor Orbán na Hungria), na prática, jamais rompem com a ordem neoliberal.

            Na disputa da arena política, feita cada vez mais através da espetacularização midiática, a demagogia da extrema-direita, com sua linguagem estridente e violenta, captura audiência frente a pasmaceira do “pensamento único” liberal. Se a partir da crise de 2008, a legitimidade do consenso neoliberal se enfraqueceu, a alternativa apresentada pela extrema-direita quase não encontrou adversários na esquerda. Pela forma como a esquerda perdeu muito da sua identidade forjada no século XX e tendo suas ideias colonizadas pelo liberalismo, encontrara-se desarmada, sem o arsenal crítico e a combatividade política para enfrentar um oponente que rejeita mediações e consensos.

            Uma anedota contada pelo deputado conservador inglês Conor Burns no jornal The Telegraph, em 14 de abril de 2013, ilustra bem essa assimilação neoliberal que ocorreu, com diferentes matizes em quase todas as latitudes. Em um jantar em 2002, diz Burns, questionaram Margaret Thatcher sobre qual teria sido sua principal conquista. A ex-primeira-ministra respondeu: “Tony Blair e o Novo Trabalhismo. Nós forçamos nossos adversários a mudar”. Essa mutação da social-democracia em “social-liberalismo” produziu o que o intelectual britânico Tariq Ali chama de “extremo centro”, que é a convergência da esquerda pró-empresarial e a direita pró-patronato orientados pelo mesmo fundamentalismo do mercado. O efeito despolitizador é bastante nítido, com partidos outrora antagônicos assumindo uma quase indiferenciação, não importando quem vença as eleições, a “responsabilidade fiscal” e seus fundamentos seguirão inabalados.

            Para uma esquerda que deu as costas à contradição capital-trabalho e à luta de classes para abraçar a ilusão da conciliação, a contradição se vê reduzida a mera diferença e o inimigo redefinido como mera oposição. Respostas como a negação da forma partido e o centramento em lutas identitárias, se mostram insuficientes. Com sua seccionalidade intrínseca, permitem apenas resistências focais, que por sua natureza antiuniversalistas, são incapazes de uma disputa de hegemonia. Nos momentos em que conseguem mobilizar as ruas e ganhar uma maior radicalidade, logo em seguida se esvaem, pela efemeridade da ausência de uma disputa concreta do poder. Tornando-se, portanto, assimiladas ou marginalizadas na polarização política.

            Um outro desafio para a esquerda é o de superar o fetichismo da democracia liberal e sua forma jurídica, o chamado Estado de direito. A história recente mostrou o quanto esta ilusão pode ser fatal, permitindo que a extrema-direita subverta os meios democráticos e jurídicos para derrotar seus oponentes. Foi através da democracia liberal e do Estado de direito sob os quais a Cristina Kirchner foi criminalizada, anulando-a como opção eleitoral, facilitando a vitória de Milei. Algo semelhante aconteceu no Brasil quando arbitrariamente prenderam Lula, garantindo a eleição de Bolsonaro.

            Ao redor do mundo existem inúmeros grupos de esquerda buscando construir uma nova alternativa, atualizando um horizonte anticapitalista e socialista para a esquerda, contudo, ainda são expressões socialmente minoritárias, sem os meios para, efetivamente, antagonizar com o neofascismo. Fato é que não será o extremo centro que poderá derrotar a extrema-direita, na ausência de uma extrema-esquerda equivalente, que pelo menos tenhamos uma esquerda autêntica, combativa, antiliberal, que não se resigne a uma mera defesa da “ordem”, resgatando uma dimensão política utópica. Do contrário, seguiremos sob a ameaça dos pesadelos distópicos neofascistas.

*Erick Kayser é historiador

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Redação

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