A nova extrema direita e neoliberalismo, por Alessandro Miebach e Andres Haines

O que emerge é uma “nova extrema direita”, ou “alt-right”, que é uma das formas de resposta às contradições do neoliberalismo

Alt Right

A nova extrema direita e neoliberalismo

por Alessandro Donadio Miebach e Andres Ernesto Ferrari Haines

                O avanço da extrema direita tem sido percebido por segmentos do campo progressista como uma anomalia surpreendente e de difícil compreensão. A tendência usual para abordar tal avanço fenômeno consiste basicamente na aplicação do conceito fascismo como apto a descrever essa manifestação política, o que, ao nosso ver é não é o mais adequado. O ponto de partida correto para compreender esse fenômeno político das primeiras décadas do século XXI consiste em constatar que se trata de processo eivado de continuidades e descontinuidades. Argumenta-se aqui que o que emerge é uma “nova extrema direita”, ou “alt-right”, que é uma das formas de resposta às contradições do neoliberalismo. Assim o entendimento de sua consolidação transcende a conjuntura imediata e deve ser procurado a partir da emergência e consolidação do neoliberalismo ao longo das décadas de 1980 e 1990.

                No ocidente, tanto nos países centrais como nos periféricos, o neoliberalismo se constituiu em uma ofensiva das classes superiores contra as classes populares. Tal ofensiva se materializou com um combate aos sindicatos, e outras formas de organização dos trabalhadores, com a privatização da provisão de bens públicos, no processo de offshoring que deslocou empregos industriais para outros países, notadamente para o Leste asiático, em especial à China, e na mudança nos padrões de intervenção estatal que encolheu a rede de proteção social aos trabalhadores e pobres enquanto que expandia sua atuação com vistas a beneficiar a gestão da riqueza privada por parte das oligarquias financeiras ocidentais. Os resultados foram redução da renda dos trabalhadores, maior insegurança e instabilidade na vida dos mais pobres, piora nos padrões de vida e brutal aumento nas desigualdades sociais.

                O neoliberalismo deve ser compreendido como a retomada dos padrões sociais oligárquicos das sociedades capitalistas ocidentais, anteriores a chamada “era dourada do capitalismo” (aproximadamente entre 1945 e 1975). O neoliberalismo gerou prosperidade para a oligarquia ocidental. Já para os setores populares, ocorreu o tensionamento de suas condições materiais de forma paulatina, sendo inicialmente contraposto pelo crescimento na economia ocidental ao longo da década de 1990 com o boom associado a adoção de novas tecnologias, seguido pela generalização e expansão do endividamento. A crise financeira de 2008, vista por alguns setores progressistas como uma crise do Neoliberalismo, representou o fim da etapa na qual os setores populares ainda preservada suas condições de vida em um contexto de moderado crescimento e acesso a crédito barato. A solução neoliberal a essa crise consistiu no resgate do próprio arranjo neoliberal salvando aos ricos e as grandes corporações e deixando sem moradia a milhões que não podiam pagar suas hipotecas.

                Do ponto de vista sociocultural o neoliberalismo implicou em valorizar o individual em detrimento do coletivo, o que também pode ser entendido como a ênfase no particular e o apagamento do geral. Esse individual ou particular somente é reconhecido se merecedor de tal reconhecimento. E assim foi que os princípios neoliberais se articularam contraditoriamente com o legado dos movimentos dos anos 60 e 70. Tais movimentos de contestação originalmente combinavam simultânea crítica aos preconceitos identitários e o combate às desigualdades sociais, sendo uma figura exemplar nesse processo o Reverendo Martin Luther King Jr, assassinado em 1968 e cujo ativismo denunciava simultaneamente o racismo e as generalizadas iniquidades sociais nos EUA no período. O Neoliberalismo atuou purgando das contestações seu sentido geral e coletivo e priorizando os elementos individuais e particularidades. Um exemplo deste processo foi a adoção do discurso dos direitos humanos sob uma perspectiva individualizada.

                Emergem assim as políticas focais que visam atingir grupos historicamente marginalizados por questões raciais, associadas a gênero, orientação sexual, pertencimentos religiosos, e outras características. Ou seja, de maneira complexa e contraditória, no Neoliberalismo, os preconceitos e as formas de violência correlata são reconhecidos como problemas, entretanto são tratados como problemas de indivíduos ou de conjuntos de indivíduos, de maneira geral minoritários, senão em termos reais, ao menos em termos discursivos, e não articulados com grandes questões sociais. Isso se dá pois não existe o social como instância de ação, existem apenas indivíduos e suas famílias, como asseverou Margareth Thatcher.  Assim, as políticas que o neoliberalismo advoga para o combate a tais formas de violência são aplicáveis pelos governos a partir de critérios que estabelecem grupos elegíveis a tais políticas, e a elegibilidade se dá tanto por critérios de precariedade social como unicamente pelo pertencimento a determinado grupo, independentemente da condição material objetiva do indivíduo.

                A generalização das dificuldades materiais após 2008 combinou-se com os questionamentos de alguns valores sociais que se estruturam com o neoliberalismo. Na medida em que as políticas de focais eram concebidas para minorias elegíveis, uma regressão generalizada nos padrões de vida como observadas especialmente a partir da Crise do Neoliberalismo acabou abrindo espaço para contestações. E neste contexto que a nova extrema direita prosperou.

                A nova extrema direita foi capaz de articular uma crítica ao neoliberalismo, vinculando os beneficiários das políticas focais como detentores de privilégios. Ela também construiu uma identidade distorcida entre tais políticas e a governança corporativa das grandes empresas, que buscam mascarar a natureza predatória de sua atividade em relação as condições de vida dos mais pobres através da “responsabilidade social” baseada nas próprias políticas focais. Ainda assim as corporações continuaram a sustentar sua cada vez maior apropriação da renda e da riqueza. A alt-right, ao mesmo tempo que não tem efetivo interesse em contestar a estrutura oligárquica de produção e distribuição de riqueza inerente ao capitalismo, identificou os beneficiários das políticas focais em seus mais diversos matizes como os ganhadores do neoliberalismo. Por mais que sejam direcionadas aos grupos historicamente subalternizados na modernidade, as políticas focais são significadas pela extrema direita como artefatos que beneficiam uma minoria organizada que acaba por “explorar” a sociedade.  

                A nova extrema direita acolhe grupos fascistas, porém sua natureza difere do fenômeno da década de 30. Enquanto o fascismo concebe a sociedade como um conjunto social monolítico e homogêneo, sem espaço para dissenso, a nova extrema direita se coloca como uma confederação heterogênea de visões críticas aos elementos mais aparentes do neoliberalismo e aos assim percebidos “beneficiários” do neoliberalismo. Assim, aos grupos de natureza fascista se articulam segmentos ultra neoliberais que esposam doutrinas explicitamente antiestatais e individualistas como o que se como o anarcocapitalismo, segmentos religiosos, em alguns casos com perfil fundamentalista, em geral buscando mais ação estatal na regulação das condutas individuais e apresentação concepções românticas da trajetória histórica, além de outros grupos específicos a depender da conjuntura local. A resultante é a proposição de arranjos políticos com graus variáveis de autoritarismo como a forma de gerir sociedades percebidas como em estado de natureza Hobbesiano. Ao longo da última década este construto político tem sido hábil em captar adesões da população abandonada pelo neoliberalismo a própria sorte. O mal-estar é convertido em ódio potencializado pelas novas tecnologias, especialmente naquele conjunto da população que termina por ser não elegível às políticas focais. A alt-right explicita assim alguns elementos do neoliberalismo como causadoras do processo de sofrimento social que viceja no ocidente.

                Os setores progressistas falham ao rotular a alt-right e seus eleitores como “fascistas”. Ao utilizar tal designação alienam um conjunto de cidadãos que rejeitam o status quo neoliberal; atribuem a nova extrema direita uma organicidade inexistente e, contraditoriamente, reforçam os vínculos dos grupos que se estruturam ao redor da alt-right; não enfatizam a destruição que o neoliberalismo promoveu nos padrões de vida das populações do ocidente; e por fim terminam por reproduzir os pressupostos neoliberais de ênfase no individual e no particular ao não propor ações de amplitude coletiva e geral.

                A nova extrema direita é produto do neoliberalismo. A crítica da nova extrema direita à sociedade neoliberal é limitada pois limitada é sua concepção de mundo que ainda se aferra aos próprios substratos que geraram o neoliberalismo como o discurso na crença na alocação via mercado e no individualismo, para depois tomar o estado em seu próprio benefício. Essa contradição entre prática e discurso explica de certa forma algumas de suas derrotas eleitorais recentes.

                Entretanto a alt-right continuará encontrando guarida na incapacidade dos setores progressistas em ultrapassar as limitadas políticas focais que no máximo mitigam os danos do ciclo neoliberal para pequenos grupos. Enquanto isso a continuidade das políticas neoliberais permanecerá engendrando piora nas condições de vida da maioria, com reduções na renda e aumento das desigualdades. Assim, não se trata de escolher entre uma ou outra, mas sim de estabelecer aproximação e diálogo com as vítimas do neoliberalismo que creem no discurso da nova extrema direita, talvez até por desespero. Enquanto isso não seja feito os setores progressistas do ocidente não serão capazes de construir uma alternativa crível a extrema direita.

Alessandro Donadio Miebach, Professor da FCE/UFRGS

Andres Ernesto Ferrari Haines, Professor da FCE/UFRGS

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