Lições da Inconfidência, por Iurutaí Puertas

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Tiradentes sendo preso no Rio de Janeiro – Foto: Reprodução de pintura de Antônio Parreiras (1914)

Por Iurutaí Puertas

Hoje completam-se 225 anos da execução pública, por enforcamento – e posterior esquartejamento do corpo – do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Para a maioria dos brasileiros só mais um feriadão, com os engarrafamentos de praxe noticiados pelas Tvs, e a oportunidade de sair da rotina de trabalho/estudo alienados e alienantes. Cabe, contudo, lembrarmo-nos das razões que levaram esta data ao status de Feriado Nacional.

Proclamada a República em 1889, cedo perceberam seus ideólogos a necessidade de um herói nacional que, diferente de um Duque de Caxias, não fosse assim considerado pelos serviços prestados ao Império, mas que representasse a resistência dos brasileiros à monarquia e seus poderes absolutos; mais, que pudesse encarnar a luta pela liberdade e autonomia da nação brasileira. Iniciou-se, então, um longo trabalho de pesquisa histórico-documental que trouxe à luz os autos dos processos da chamada Conjuração Mineira, um movimento no qual juntaram-se a arraia-miúda e alguns representantes das classes dominantes da época para propor um projeto de país que nos livrasse da Coroa Portuguesa e seu processo de exploração colonial. Tal Conjuração teve entre seus membros, padres, pequenos e grandes proprietários de terras, poetas, comerciantes, bacharéis, alguns soldados e alferes,e foi descoberta graças à inconfidência de Joaquim Silvério dos Reis, a partir da qual realizaram-se as primeiras prisões.

A leitura dos referidos autos muito nos ensina sobre as práticas de um Sistema Judiciário que tinha por objetivo atender aos desígnios do Império Colonial. Senão, vejamos: uma vez denunciados, os conjurados eram encarcerados tendo em vista a admissão de sua culpa e a denúncia de outros partícipes. Provas materiais não eram necessárias, bastando como acusação o ser delatado,  ao réu cabia o ônus de provar sua inocência, aí sim com provas materiais e/ou testemunhos considerados, pelos acusadores, dignos de fé. Aos juízes e escrivães cabia tomar os depoimentos e decidir sobre a validade de suas declarações. Os que delatavam outros participantes, demonstrando assim, para a justiça da época, seu arrependimento tinham penas mais brandas: degredo, por maior ou menor prazo de tempo conforme a importância de sua participação ou de sua delação, confisco dos bens ou prisão. Aos que não delatassem, a pena de morte, que era a pena para os crimes de traição à sua Majestade. Quer dizer, os réus, uma vez que haviam sido delatados, já iniciavam o processo como condenados só sendo possível conquistar o abrandamento das penas.

Tal processo arrastou-se de 1789 a 1792, estando durante todo este período encarcerados os réus. A partir de 1790 o processo foi unificado sob a alçada de três desembargadores da Suplicação vindos especialmente da Metrópole com esta finalidade.

Das dezenas de pessoas envolvidas na Conjuração, onze foram condenadas à morte, uma – Cláudio Manoel da Costa – suicidou-se na prisão, sendo declarada infame a sua memória e infames seus filhos e netos, e seus bens confiscados para o Fisco e a Câmara Real, por haver se subtraído à execução da justiça de sua Majestade. Dos restantes condenados, nove obtiveram a clemência da Rainha, tendo sido a pena capital comutada em degredo por 10 anos nas colônias d’ África.

Um, que não delatou e não renegou sua participação na Conjuração, foi condenado à pena capital sendo sua sentença paradigmática :

“(…) Portanto condenam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, Alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas, a que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, aonde em lugar mais público dela será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregado em postes pelo caminho de Minas no sítio da Varginha e das Cebolas, aonde o Réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações até que o tempo também os consuma; declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e a Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados e no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infâmia deste abominável Réu (…)”.

Passados esses 225 anos, lembramo-nos do alferes e do traidor. De um por sua grandeza, do outro por sua pusilanimidade. Dos desembargadores, juízes, procuradores, responsáveis pelo exercício discricionário da “justiça” da Metrópole, nem os historiadores, sem consulta às fontes, se recordam. É, a História ensina; difícil parece ser aprender com suas lições.

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

12 Comentários

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  1. Quantos de vocês notaram que

    Quantos de vocês notaram que o sistema judicial brasileiro continua seguindo o modelo do tempo do Império? E que as práticas continuam as mesmas?

  2. Por gosto e não por imposição

    Por gosto e não por imposição , li tanto sobre a Inconfidência que cheguei a seguinte conclusão:

    Não sei diferenciar o fato da suposição.

     Isso  começou no meu primário e continua próximo da casa de saúde aonde vão me colocar.

  3. Era vez um vasto território
    Era vez um vasto território que tinha milhares de povos indígenas que pertenciam a dezenas de troncos étnicos. Alguns deles eram aliados, outros adversários. As disputas também ocorriam entre tribos da mesma etnia.Chegaram uns portugueses e foram conquistando lentamente o território. Eles se aliavam com alguns índios para eliminar os inimigos deles. Alguns eram mortos, outros viravam escravos. Mas aqueles índios que eram amigos dos brancos perdiam sua identidade, sua língua, sua cultura e se tornavam subalternos num regime estritamente hierárquizado. Então os portugueses trouxeram milhares de negros. Eles exploraram as rivalidades entre negros de etinias rivais. Alguns eram bem tratados porque maltratavam os outros negros para que eles produzissem a riqueza colonial (açucar produzido de cana).Marx fala em conflito de classes. É possível ver isto na história do Brasil.Mas é possível ver outra coisa: a colusão de classes, pois o sistema não teria sido bem sucedido sem o apoio voluntário daqueles que eram incluídos no sistema de exploração colonial e de ocupação do território (com exclusão política e econômica).A colusão social é um fenômeno importante no Brasil.Certamente é um fenômeno importante nos EUA.Como disse Castor (a esposa de Sartre) o poderoso não seria tão forte sem a ajuda do oprimido. Não por acaso o sistema colonial se valeu de um delator para destroçar a conjuração Mineira como sua reencarnação está utilizando delações para destroçar o PT depois de ter destroçado Dilma Rousseff.

    1. Rivalidades étnicas – história oficial??

      Prezado Fábio,

      Sou admirador de vossas msg e artigos quase sempre conforme minhas convicções. Por isso, ouso a observação crítica ao vosso comentário: a escravidão dos ´negros´ foi imposta e exercida com imensa e permanente violência física.

      Essa historinha que bastava a exploraão das rivalidades étnicas não condiz com a realidade histórica. Serviram para aplacar a consciência de humanistas da época.

      Basta verificar alguns dados que historiadores sérios, como o saudoso prof. Clovis Moura, para não se crer nessa lógica perversa. Existiam os ´negros´ capitaes-domato, mas o sistema apenas sobreviveu por 300 anos em razão da extrema violência e crimes de lesa-humanidades praticados pelos senhores de escravos.

      Pela importância de vossa voz, considerei essencial alerta-lo sobre esse perigoso ´lugar comum´ do discurso de quem legitima e desculpa a escravidão africana, o maior crime e mais duradouro dentre os delitos de lesa-humanidade.

      Fraterno e solidário abraço… (também tenho passado minhas perseguições policiais, de Promotores e de Magistrados).

      1. A violência foi sem dúvida

        A violência foi sem dúvida imensa, contra índios e negros. Mas se não houvessem indígenas e escravos trabalhando voluntariamente para os portugueses o sistema rapidamente seria desmantelado (pois os colonos eram poucos e os “outros” eram muitos). Fenômeno semelhante ocorreu na Europa ocupada por nazistas. Estudando atentamente o holocausto, Hannah Arendt notou que os documentos demonstravam um fato importante: a mortandade dos judeus foi menor nos países em que eles estavam desorganizados; nos países onde eles eram bem organizados as organizações judaicas colaboraram com seus verdugos e a mortandade dos judeus foi maior. A colaboração foi forçada em alguns casos (como ocorreu no Brasil colonial), mas há também casos documentados de colaboração voluntária. Até mesmo no alto comando nazista existiam descendentes de judeus, como Herman Goering e Reinhand Heydrich eram descendentes de judeus.

        Grato pelo comentário. Longe de mim tentar diminuir a importância da violência no processo de construção e expanção do Estado dentro deste vasto território que hoje chamamos de Brasil.

        Fico lisongeado com sua observação sobre minha importância, mas não sou nenhum pouco deslumbrado. Sei que sou apenas um amador cujos comentários são lidos por um publico diminuto. 

  4. Mas diferente dos juízes e

    Mas diferente dos juízes e desembargadores de outrora, cujas biografias desapareceram dos registros históricos, acredito que o juiz da Lava Jato (e me recuso a grafar seu nome!) será certamente lembrado pelos historiadores do futuro não por suas qualidades, pois claramente não as têm! Ele será lembrado como um dos principais personagens responsáveis pela derrubada de um governo legítimo e pelo fim da democracia no país através da  infame estratégia do Lawfare (a guerra jurídica contra o inimigo político). Enfim, é certo que a implacável lata de lixo da história o aguarda.

  5. Não agora, pois nesse estado

    Não agora, pois nesse estado de exceção não há lei, mas tão logo o pais retome a normalidade democratica, faz-se necessário a instalação de uma Comissão da Verdade para colocar a Farsa a Jato em pratos lmpoos: o povo tem o direito de saber a verdade sobre o golpe de estado do qual fez parte esse conluio midiatico penal criminoso

    https://jornalggn.com.br/blog/jose-carlos-lima/por-uma-comissao-da-verdade-que-coloque-em-pratos-limpos-a-industria-da-delacao-ou-o-problema-nao-e-a-ba-0

  6. E Tiradentes, que nada mais

    E Tiradentes, que nada mais era que um policial da força pública. Percebam que havia as forças públicas e particulares, esta última formada por capturadores de escravos fugídios e guarda pessoal dos ricaços. Mas como se tudo isso não bastasse, a força pública, a qual Tiradentes pertencia, também era uma força que essencialmente só servia aos ricos. E foi nessa condição que ela acabou arrastada para o centro do movimento da Conjuração, cujo objetivo principal não era se livrar da Corte, mas se livrar de pagar as dívidas tributárias que os ricos das Minas tinham junto à Corte. Como a Força Pública (PM daquela época), tal como hoje só enxerga os ricos, foi chamada para servir de suporte a uma possível resistência. Não contavam que os ricos daquela epóca, tal como os de hoje, traem por qualquer motivo que vê mais vantagem pessoal. Apareceu um traidor (Silvério dos Reis), que entregou todo mundo. E o restante é a história tal como a conhecemos.

    Sobrou para o mais pobre que idiotamente se meteu a ajudar pilantras ricos e traidores. Ao longo desses 225 anos mudou alguma coisa?

    1. E Tiradentes….

      Lições da Inconfidência: Sempre que o Brasil estiver para explodir e sua Casa Grande, sua Elite não souber para onde ir, arranjará uma saída à mineira. Tiradentes, Juscelino, Tancredo….Só que o último deixou o neto para sabermos como seria se continuasse vivo. A morte do mito escondeu a farsa da realidade. 

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