Sobre os riscos do mundo se incendiar, por Arnaldo Cardoso

Henry Kissinger publicou artigo em que, além de caracterizar a situação presente do mundo como inédita e de acentuada gravidade, traça um cenário pós-pandemia que demanda ações imediatas e futuras

Sobre os riscos do mundo se incendiar

por Arnaldo Cardoso

Hoje não é possível prever com segurança quanto tempo a pandemia do coronavírus ainda consumirá até ser controlada e ainda mais incerta é a extensão de seus danos além das mais de cem mil vidas que já ceifou.

No último dia 3 o ex-secretário de estado dos Estados Unidos Henry Kissinger publicou no Wall Street Journal o artigo  “The Coronavírus Pandemic Will Forever Alter the World Order” em que além de caracterizar a situação presente do mundo como inédita e de acentuada gravidade traça um cenário pós-pandemia que demanda ações imediatas e futuras para que não tenhamos que ver o mundo se incendiar.

A preocupação com a ordem mundial e particularmente com o lugar dos Estados Unidos nela foi uma constante na trajetória deste que foi o arquiteto da política de détente no final da década de 1960 e começo de 1970, a qual promoveu a distensão das relações entre os Estados Unidos e a China. Em sua produção teórica dedicou especial atenção a realpolitik  e à revisão das duas concepções centrais na tradição diplomática europeia, quais sejam,  a da ideia de razão de Estado (raison d’état) em que os interesses de Estado justificam o uso de meios externos inaceitáveis na política doméstica, e a do equilíbrio de poder que deve ser manipulado por governantes, especialmente de grandes potências, visando manter a ordem internacional favorável aos membros do status quo.

No artigo em questão Kissinger expõe diferentes níveis de apreensão: a) com a capacidade de governos em manter a solidariedade social; b) com a relação entre as sociedades e c) num nível sistêmico, com a paz e estabilidade internacionais.

Já logo no início do artigo seu autor afirma a necessidade de governos “eficientes e previdentes” e de instituições capazes de “prever calamidades, deter seu impacto e restaurar a estabilidade” para, longo em seguida, sentenciar que “Quando a pandemia do Covid-19 terminar, as instituições de muitos países serão percebidas como tendo fracassado”.

Na análise do influente consultor há a constatação da falta de testes e de vacinas, insuficiência de suprimentos médicos, limitação de hospitais, até mesmo no país mais rico do mundo onde já são contabilizados mais de 500 mil casos da doença e 18 mil mortes, mas não há uma única linha de crítica ao modelo econômico que produziu esse quadro deprimente.  

Contrastando com inúmeras análises de economistas como Alan Greenspam que presidiu o Federal Reserve Bank por quase vinte anos e de Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia de 2001, sobre a crise econômica de 2008 que teve nos EUA seu nascedouro e se alastrou pelo mundo, Kissinger afirma em seu artigo que “os líderes globais aprenderam lições importantes da crise financeira de 2008”. Caberia indagar ao ex-secretário norte-americano quais foram essas lições aprendidas pois antes da pandemia o que se tinha era um ambiente internacional marcado pela crescente financeirização da economia, guerra comercial entre potencias econômicas provocando perdas para todo o mundo, precarização de contratos de trabalho em nome de doutrinas econômicas pró-mercado, aumento da desigualdade social, guerras prolongadas com genocídios como na Síria sendo palco de disputas mesquinhas entre potencias, crises migratórias, campos com milhares de refugiados, desmonte de organizações internacionais multilaterais, entre outras deploráveis situações.

Propondo um “programa colaborativo global” para além do imediato combate a propagação do vírus, Kissinger aponta três abordagens necessárias para o tal programa: 1ª) “reforçar a resiliência global a doenças infecciosas”, 2ª) “curar as feridas da economia mundial” e 3ª) “salvaguardar os princípios da ordem mundial liberal” e do “equilíbrio entre poder e legitimidade”.

Quanto ao terceiro item do programa é muito preocupante o fato da pandemia do coronavírus não ter interrompido a escalada da propaganda de certos líderes políticos antidemocráticos, destacadamente de extrema direita,  servindo-se de meios digitais para a manutenção do engajamento de cidadãos, heterogêneos em idade, classe econômica, formação profissional e intelectual, especialmente nos países mais castigados pela pandemia, onde o isolamento social agudiza os sentimentos de impotência e incerteza sobre o futuro, alimentando a revolta que é capturada por esses líderes que acenam com falsas promessas de redenção nacional. (Enquanto ontem eu mantinha diálogo com um amigo europeu de um país castigado pela pandemia, ele que já realizou pesquisa sobre política de ódio, me descrevia o conteúdo de conversas de jovens de rica região do país em grupos de whatsapp, onde se destilava mensagens de ódio e apoio a um político de extrema direita com estruturada ação política em plataformas digitais com sistemáticos ataques ao governo constituído, mesmo em meio a pandemia). Como meu amigo bem observou “o medo e a incerteza, em certos contextos, produzem como resposta a violência”. 

Como nos dias que se seguiram aos atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA, quando muitos analistas sentenciaram que o mundo nunca mais seria o mesmo, no artigo em questão Kissinger arrisca a mesma sentença sobre o pós-epidemia.

Me parece justo concluir que o pior será se o mundo continuar sendo o mesmo, sem nada aprender com a calamidade produzida pelo  vírus, mas combinando em doses ainda mais tóxicas, a ganância desenfreada de elites empresariais insensíveis ao sofrimento humano, a devastação ambiental, níveis ainda mais altos de desigualdade social e a nefasta aposta na estupidez de extensa parcela da população para sustentar o despotismo de líderes políticos obtusos  movidos pelo ódio e pelo sectarismo.

 Arnaldo Cardoso, cientista político

Redação

5 Comentários

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  1. Evidente que a preocupação dos Sr. Kissinger é como manter a hegemonia dos EUA no mundo frente as ameaças que são a China e a Rússia se entendendo. Suas propostas buscam o “domínio de espectro total” por parte da elite financeira global com sede no país dele.

    1. Salvaguardar os principios liberais…..mas é justamente isso que tem que explodir e todos os que defendem essa trolha irem para o inferno…………o cidadão deveria fivar calado, não se cansou de fazer muita m…na vida não?

  2. Me parece que além da pandemia, a ganância e a ignorância, o que poderá e deverá transformar o planeta, serão os desastres naturais, tais como uma ação em Yellowstone e o fim do império norte-americano

  3. O artigo foi publicado após os EUA enviar aviões à China e roubar a carga destinada a outros países. Como isto não entrou nos conselhos de um suposto mundo mundo solidário do sr. Kissinger, não faria diferença a um texto de alguém do principado tucano brasileiro a proferir suas balelas, apenas com o desejo furtivo de que a vida volte ao normal, para que possa voltar a tomar seus chás nas tardes frescas da primavera parisiense.
    A hipocrisia e a ganância vieram numa crescente até aqui e como não vão renunciar a elas, mais adiante no afunilamento do tempo, vai ser difícil passar com tanta carga pelo “buraco da agulha”, quem dirá “entrar no reino dos céus”. Estes anjinhos com suas asas de cera, não notam que estão construindo um inferno embaixo de si e que quando o sol estiver mais forte e o calor derreter suas asas, a queda não será para o alto e a chegada no inferno não serão com trombetas, mas sim, com um tombo no meio dos que estarão a ranger os dentes.

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