A Argentina se levanta – para o abismo, por Afonso Junior Ferreira de Lima

Enquanto isso, Cristina foi genial percebendo que a direita iria ganhar e colocou na urna sua própria direita: Sérgio Massa

World Economic Forum / Benedikt von Loebell

A Argentina se levanta – para o abismo

por Afonso Junior Ferreira de Lima

Parece que o que a Argentina está assistindo é o começo do fim do Estado.

Com o ápice do neoliberalismo em 2001, o país teve uma revolta popular desencadeada pelo “corralito” – uma espécie de Plano Collor, que impediu as pessoas de retirar seu dinheiro do banco. Elegeram o peronista Néstor Kirchner em 2003.

O que mudou agora, quando também há revolta e os trabalhadores precários votam no Javier Milei?

A resposta é: internet.

Esse universo desregulado que dá bom dia com ódio no celular de todo trabalhador frustrado. E são muitos: é o vendedor do mercadinho, o porteiro, o trabalhador do Uber…

Enquanto isso, Cristina foi genial percebendo que a direita iria ganhar e colocou na urna sua própria direita: Sérgio Massa.

Não vai rolar um slogan: “Vote Massa para não piorar”.

Déjà vu para brasileiros.

Conversando com um conhecido, pergunto se ele gostou do governo Macri (2015-2019), que levou a crise econômica a um limite insustentável.

“Macri matava os pobres”. Pergunto em quem vai votar. Milei, claro, eles precisam de mudança.

Javier Milei começou como aquele que podia falar tudo em programas de auditório.

Quando, em debate presidencial, desafia o tabu sobre os crimes da ditadura afirmando que não foram 30.000 detidos desaparecidos (um número simbólico que reflete o cálculo razoável da esquerda, levando em conta que cada família tem seu preso político, e marca uma linha vermelha ao autoritarismo no país) está seguro de que o jovem da periferia não pode julgar e aproveita para vender o combo todo. 

Eduardo Eurnekian, um dos homens mais ricos da Argentina, dono de 53 aeroportos, foi quem apresentou a Milei o mundo empresarial. Parece que decidiu criar seu candidato quando Macri ameaçou retirar alguma concessão dos seus aeroportos. Javier Milei também sonhou ser secretário de Política Econômica de Macri, mas acabou vetado.

O jornalista Juan Luis González descreveu o personagem como “o louco”, tendo vindo de abusos familiares, com um pai que fez dinheiro de modo suspeito, e disposto a crer que Deus o escolheu para dar liberdade aos mercados. O mais impressionante é que JM não deixa espaço para os outros falarem. Parece viver no mundo das teorias da conspiração, parece incapaz de investigar, faz política apenas com sentimento de destruição.

Mas o mais perigoso é que a propaganda “libertária” vende o plano da desigualdade.

O outsider aristocrático Capitão Milei vai implantar o plano econômico da ditadura, que é a desigualdade, o que necessita da perseguição aos ativistas e criminalização do pensamento diverso.

Essas figuras querem dividir a sociedade, usando como “bode-expiatório” os pobres “que não querem trabalhar”, sempre com conteúdo racial; na realidade defendem a desregulamentação total, e o resultado é que os predadores empresariais criam uma sociedade de miséria e escravidão.

O que o caso da Argentina está mostrando é que esquerda centrista, que não faz diferença na vida diária do informal e do jovem periférico de dezoito anos perde para o ódio fluído da rebelião rappi e da política tiktok guiados pela aristocracia.

Só podemos imaginar o que virá de uma personalidade tipicamente autoritária, daquelas analisadas por Hannah Arendt: tudo flui, só fica a vontade livre do líder. Vários aliados de ontem caíram por uma frase mal dita, uma mudança súbita de interesse.

A burrice é uma categoria política. Para a América Latina, fica a reflexão sobre se é possível ter democracia com o ódio que penetrou profundamente nas camadas populares incapazes de avaliar o melhor.

A maior crise da esquerda, hoje, é a crise da comunicação. Lembro que, em 2018, teve um mês do ‘vira”, era toda São Paulo saindo na rua com bandeiras e cantando “Vira, Haddad”. A gente estava na campanha de 2002, e eles dentro de cada celular. Acho que é por isso que se chama celular, para o câncer matar a democracia.

Enquanto o fundamentalismo racista-religioso exporta apartheid, precisamos regular nas redes o lucro com ódio, ou o modelo político do século XXI será o totalitarismo colonial.

Afonso Junior Ferreira de Lima – historiador, Mestre em Filosofia (PUCRS), doutorando UNB.

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Redação

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