A dolarização ameaça os argentinos pobres, por Maria Luiza Falcão Silva

No final do século passado e início do século XXI a Argentina experimentou sistemas próximos à dolarização.

A dolarização ameaça os argentinos pobres

por Maria Luiza Falcão Silva

Continua muito incerto o destino da economia argentina sob o novo presidente eleito, Javier Milei, na perspectiva de que o processo de dolarização, prometido em campanha, realmente se concretize. Será um movimento gradual ou de imediato?

Se de imediato, onde levantará a Argentina os dólares necessários para fazer face à conversão de ativos denominados em peso para dólares? O Banco Central Argentino não dispõe dos dólares necessários para bancar a mudança de moeda quando  olharmos para o movimento das reservas internacionais argentinas e para o caixa do Banco Central. Em setembro de 2023, as reservas internacionais argentinas, em dólares, eram de US$ 28 bilhões. Especula-se que hoje , em termos reais, estejam negativas.

Como consequência, pode haver uma escassez de dólares para a população, como um todo, implicando em: i. uma crise de liquidez ; ii.  um processo incomensurável de desvalorização do peso argentino, iii.  uma disparada de preços rumo a uma hiperinflação, no curto prazo, iv. um aumento de pessoas abaixo do nível da pobreza, hoje em torno de 40% da população e v.  agravamento dos inúmeros problemas sociais por um impacto recessivo na economia como um todo e vi. aumento do contingente de desempregados. A transição embute um altíssimo custo social.

 Os ricos argentinos, os 1%, os 5% mais ricos da pirâmide de distribuição de renda e riqueza, não temem a dolarização. Eles vêm acumulando suas poupanças em dólares, de formas diversas, inclusive em paraísos fiscais. Estima-se que mais de US$ 200 bilhões. Comenta-se que guardam dólares até embaixo dos colchões, ou que acumularam no período recente, em que a inflação já ultrapassou anualmente 140%, bens chamados de bens de raiz (imóveis, terras) ou  bens duráveis de consumo como automóveis, televisões,  geladeiras, dentre outros. O déficit público não os assusta. Sempre lidaram com eles em períodos diversos sob múltiplos governos peronistas e não peronistas. Os poderosos não temem a dolarização e por isso Javier Milei não os ameaça.

Imaginando-se que os dólares guardados debaixo do colchão não sejam suficientes para fazer rolar a economia, o resultado será recessão com uma imensa depreciação da taxa de câmbio e queda dos ganhos reais dos salários e rendas dos produtores de bens e serviços que não são commodities e, por isso, têm seus preços formados no mercado interno.

A transição gradual seria menos dolorosa na medida em que a corrida para o dólar e a desvalorização da moeda argentina seriam mais lentas, obedecendo a um cronograma e certo grau de planejamento se é que podemos falar nisso no governo do anarcocapitalista que se intitula ultraliberal e que se aconselha com cachorros e segue cartas de tarôt.

Em ambos os casos, porém, os custos em termos de autonomia serão imensos. O país dolarizado perde o poder de realizar política monetária, perde a autonomia de emissão. Nesse sentido não precisa de fato de um Banco Central como costumamos conceber uma vez que a autoridade monetária abdica, também, de sua função de  emprestador de última instância. A taxa de juros que prevalecerá irá na direção da moeda do país emissor dos dólares, os Estados Unidos.

No final do século passado e início do século XXI a Argentina experimentou sistemas próximos à dolarização. Nos anos 1980, passou por sucessivas crises da dívida, déficits e inflação elevados, fracassos na implementação de inúmeros planos de desinflação e duas hiperinflações – do final da década de 1980 e inicio dos anos de 1990. Em resposta às hiperinflações, já em 1991, a Argentina adotou o Plano de Conversibilidade passando a funcionar sob um sistema de caixa de conversão e de paridade entre o dólar e o peso de um para um, que se estendeu até final de 2001. Em janeiro de 2002 a conversibilidade foi abandonada. Nesse período a Argentina experimentou crescimento e reformas apesar de déficits elevados, mas, também, momentos conturbados pelos efeitos de choques externos adversos de crises econômicas e financeiras em inúmeros países latino-americanos como Brasil e México e países como a Rússia.   

Vários países latino-americanos, em busca de soluções para fenômenos hiperinflacionários e maior estabilidade econômica e financeira, já se dolarizaram: Panamá, Equador, El Salvador são exemplos. Em todos os casos, a inflação no médio e longo prazo caíram substancialmente e situam-se, no período mais recente, abaixo de cinco por cento ao ano. Em alguns outros países o dólar é usado para firmar contratos e como unidade de conta para estabelecimento de preços de bens duráveis e contratos. Contas bancárias são abertas em dólares e as duas moedas, a local e a doméstica, circulam livremente. Isso acontece no Uruguai e Perú.

Interessante que as duas moedas conviviam na Argentina no período de vigência do plano de conversibilidade, mas enquanto em Buenos Aires havia uma clara preferência pelo dólar, províncias como Tucumán só recebiam pagamentos em peso, até nos hotéis. Isso mostra que a transição não é mecânica. Moeda é um símbolo nacional e as pessoas não trocam sua moeda pela de outro país de forma indiferente. A Inglaterra nunca abdicou da libra esterlina e por isso mais tarde aconteceu o Brexit, de forma tão surpreendente.

Na verdade, a Argentina nunca conseguiu controlar a sua moeda. Por isso a ideia de uma moeda cuja oferta seja controlada exogenamente.  Abdica-se da política monetária e dos benefícios advindos da senhoriagem, pela estabilidade dos preços.

Milei, um outsider da política e seus aliados estão convencidos de que, com a dolarização, o controle da moeda será retirado das elites e dos políticos por eles vistos como “corruptos”, e  a inflação será debelada de forma mais rápida. No Brasil já experimentamos um Milei muito recentemente. O resultado é dureza: mais pobreza, menos democracia, menos soberania e autodeterminação do povo argentino, com impactos indesejáveis e preocupantes sobre os países latino-americanos e suas políticas e acordos de cooperação. 

Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. 

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Redação

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