100 dias de governo Lula: caminhos e descaminhos da encruzilhada brasileira, por Erick Kayser

Suceder Jair Bolsonaro, um governo que dedicou 4 anos a ser um “antigoverno”, torna muito mais árdua e desafiadora a tarefa de governar.

Ricardo Stuckert

100 dias de governo Lula: caminhos e descaminhos da encruzilhada brasileira

por Erick Kayser

O presidente Luís Inácio Lula da Silva está completando os primeiros 100 dias de seu terceiro mandato presidencial. Ainda é um tempo muito curto para se estabelecer juízos mais definitivos sobre os rumos do novo governo, ainda mais se levando em conta toda a série de condicionantes atípicas que o cercam, impedindo análises amparadas em parâmetros de normalidade institucional e social no país. Suceder a presidência de Jair Bolsonaro, um governo que dedicou seus 4 anos a ser um “antigoverno”, colocando o país em crise, torna muito mais árdua e desafiadora a tarefa de governar. É sob este prisma que devemos analisar o novo governo, aqui não se pretende apontar para um balanço pormenorizado, mas lançar alguns pontos gerais que o situam frente aos caminhos e descaminhos da encruzilhada política brasileira resultante de sua crise.

A reconstrução é sempre um trabalho mais árduo que o da destruição. O fato do novo governo, poucos dias após tomar sua posse, ter enfrentado uma tentativa de golpe em 08/01, deram uma eloquente materialidade as dificuldades deste início, dando contornos dramáticos a crise democrática brasileira. Nestas condições, seria desejável, ou mesmo necessário, contar com um maior período de tolerância para a transição do novo governo. O “salvo-conduto” que, em geral, todos os governos em início de mandato costumam ter, quando amparado pela popularidade majoritária das urnas, permitem a nova gestão um período de ajustes, onde eventuais erros e medidas impopulares são aceitas com uma menor pressão contrária. A anomalia de suceder a um antigoverno exige uma maior complexidade na tarefa de construção do governo. Contudo, estas mesmas condições anômalas estimulam uma pressão social que reduzem este tempo de transição.

Existe grande expectativa em parcela significativa da população por resultados rápidos do novo governo Lula. Mesmo que o imediatismo não seja próprio da política, onde ações governamentais demandam tempo para elaboração, negociação para aprovação e execução, a urgência por resultados imediatos é grande, dada a crise vivida pelo país. Como já ensinava o sociólogo Herbert de Souza, nosso saudoso Betinho, “quem tem fome tem pressa” e o Brasil legado pelo governo anterior é de um aumento assombroso no número de pessoas famélicas e jogadas na extrema pobreza. Pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), realizada entre novembro de 2021 e abril de 2022, indicou a existência de 33 milhões de brasileiros vivendo em situação de fome. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que o país passou a ter 62,5 milhões de pessoas (29,4% da população) abaixo da linha da pobreza. Lula ganhou as eleições com a expectativa desde quadro ser revertido, de os “pobres serem incluídos no orçamento”, como afirmou repedidas vezes na campanha. Esta tarefa, como indicam estes primeiros 100 dias de governo, será complexa.

A ortodoxia neoliberal da gestão Paulo Guedes na economia foi ruinosa, além do já mencionado aumento da miséria e da fome, o país registrou crescimento baixo, o investimento público teve o menor nível da história e um elevado desemprego. Suas políticas de desonerações fiscais erráticas, além dos pacotes eleitoreiros praticados no último ano de gestão, legaram um rombo nas contas públicas, um resultado um tanto desmoralizante para uma gestão adepta do discurso fiscalista. Neste terreno minado, o governo, através do ministro da fazenda Fernando Haddad, parece buscar trilhar um caminho que retome uma agenda de desenvolvimento, mas sem promover rupturas com a herança neoliberal, buscando um equilíbrio cujo êxito parece um tanto improvável. Em um cenário internacional adverso, sem haver uma presença forte do Estado promovendo investimentos públicos, será pouco crível projetar uma retomada econômica capaz de gerar empregos na escala necessária. Sem alguma descontinuidade da captura do orçamento público pelo mercado financeiro, não haverá os recursos para uma expansão robusta nos investimentos.

A proposta do chamado novo “arcabouço fiscal”, ainda que represente um inegável avanço frente ao famigerado “teto de gastos” aprovado no governo Temer, mantêm uma lógica de continuidade com a austeridade fiscal. Talvez a principal fragilidade seja justamente o tratamento dado a questão dos investimentos públicos, em patamares insuficientes e que perderão espaço em relação aos privados. Além, é claro, que qualquer medida que vise controlar a expansão dos gastos sociais caminha na direção oposta da urgência social de uma necessária promoção de maior distribuição de renda. Outro problema a ser enfrentado é a elevada taxa de juros praticadas no país, freando uma retomada maior da atividade econômica. Mesmo com os inúmeros gestos de concessão do governo e com a apresentação da proposta do novo arcabouço fiscal, o Banco Central (BC) comandado pelo bolsonarista Roberto Campos Neto já sinalizou (ou ameaçou?) não só que não ocorrerá redução da taxa de juros no próximo mês, como poderia ocorrer algum aumento. Sem forçar a saída de Campos Neto do BC, o governo seguirá contando com um adversário aberto do governo sabotando suas políticas econômicas. Mas para além da “trincheira neoliberal” do BC, o governo encontrará dificuldades resultantes de suas próprias escolhas. A estratégia de buscar uma paz com o mercado financeiro, ainda que possa encontrar justificativas pragmáticas, no médio prazo provocará contradições de interesses incontornáveis.

No campo político, o governo Lula tomou uma série de importantes medidas carregadas de forte simbolismo – recriação dos ministérios da Cultura; da igualdade Racial; das Mulheres, do Trabalho; a criação do ministério dos Povos Originários; a mudança estratégia na política ambiental, colocada como central; a volta do Bolsa Família e de programas como o Minha Casa, Minha Vida e o Mais Médicos; etc – indicam os contornos gerais de como será a gestão pelos próximos anos. O sentido geral destas e outras medidas foram de que os tempos de um antigoverno de destruição nacional acabaram, o país voltou a ter um governo de verdade. Faltam ainda “novas marcas” da gestão, por hora se operou o retorno de programas exitosos no passado. Ainda que insuficiente, frente a crise social colocada, o novo governo conseguiu já funcionar como um “freio de emergência” civilizatório, impedindo o país de aprofundar sua crise e mergulhar em caos social, decorrência inevitável de uma continuidade do projeto autoritário então em curso, iniciado após o golpe de 2016, com Temer, e tendo sua continuidade e aprofundamento com Bolsonaro.

Não menos importante, a reinserção do país no cenário internacional é uma realidade, retirando o Brasil da condição de pária autoimposta pelo último governo. Além das inúmeras possibilidades de atrair investimentos no país, como na retomada do Fundo da Amazônia, essa volta do Brasil como um ator nos debates das grandes questões globais, como a crise climática ou o tema da paz, ocorre em um momento de sensível instabilidade. A liderança de Lula poderá preencher um vácuo, dada a escassez de lideres dispostos a fortalecer uma via diplomática de diálogo com as diferentes nações e blocos litigantes. Este peso internacional do governo Lula também é um importante ativo político no plano local. Além de auxiliar na busca de apoios para a governabilidade, a legitimidade e reconhecimento global da figura de Lula impedem que aventuras golpistas ganhem corpo e apoio institucional.

Mesmo que uma ameaça golpista hoje pareça frágil, a crise democrática e a fratura social por ela desencadeada seguem colocadas, sendo terreno fértil para toda sorte de instabilidades. Como vaticinava o poeta alemão Bertoldt Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio”, mesmo com os resultados pífios de seu governo, com mais de 700 mil mortes pela Covid-19 e envolvimento em diversos escândalos de corrupção, diferentes pesquisas recentes indicam que, pelo menos, um terço do eleitorado segue fiel a extrema-direita. Reconhecendo a força de seu antagonista, o governo deveria ter como prioridade “desbolsonarizar” a máquina pública federal, seja em seus agentes diretos ou na continuidade de suas políticas, como forma de frear e retroceder sua influência social. Neste sentido, por exemplo, está na direção correta o anúncio de uma política de desarmamento da população. Por outro lado, algumas áreas estratégicas do governo parecem ignorar este imperativo, mantendo políticas ou até mesmo pessoas com ligações orgânicas com o antigo governo, como é o caso da educação.

Mais do que apenas frear ou desarticular o extremismo neofascista e reestabelecer alguma “normalidade” democrática, para superar a crise política brasileira, o governo Lula deverá buscar formas de avançar para patamares democráticos qualitativamente superiores. Apostar que a reconstrução democrática se dará apenas “por cima”, pela via institucional já estabelecida, é a receita para o fracasso. Não basta se apegar em uma “defesa da ordem”, mesmo que esta “ordem” seja a própria democracia. É necessário apontar para um horizonte de expectativas elevado, que canalize as insatisfações com o modelo representativo liberal e, “desde baixo”, promova um alargamento inclusivo das balizas democráticas. Em outras palavras, a radicalização democrática é o maior antídoto para a radicalização autoritária. Dentro dos estreitos limites do que o governo Lula pode fazer sem depender de negociações com um parlamento conservador, investir na participação popular é uma decisão acertada. Seja através de mecanismos de representação setorizadas (Conselhos e conferências temáticas) ou de participação popular direta (criação do Orçamento Participativo nacional), se exitoso, promoverá um virtuoso processo de disseminação de uma maior cultura democrática e cidadã no povo, além de inevitáveis avanços no arranjo democrático brasileiro.

Como se buscou pontuar até aqui, o cenário deste início de governo Lula é complexo e desafiador, mas rico em potencialidades. Desde o início da crise democrática pós-2013, o Brasil se vê enredado em uma encruzilhada com muitos descaminhos que conduziram a destinos trágicos. O desastre bolsonarista pode ter sido o ápice do projeto de saída autoritária para a crise, mas dada suas demonstrações de resiliência, esta saída de cena pode ser apenas momentânea. O sucesso do governo Lula será decisivo para impor uma derrota estratégica à extrema-direita. A conjuntura parece afunilar entre os caminhos de uma reconstrução democrática com justiça social e os descaminhos do autoritarismo neoliberal, onde a encruzilhada brasileira poderá estar atingindo o seu decisivo desfecho.

Erick Kayser é historiador

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