Eliara Santana
Eliara Santana é doutora em Linguística e Língua Portuguesa, com foco em Análise do Discurso. Ela é pesquisadora associada CLE/UNICAMP, onde participa do projeto Pergunte a um/uma Cientista. É integrante do Observatório das Eleições. Desenvolve pesquisa sobre desinformação, desinfodemia e letramento midiático no Brasil.
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Jair na Paulista. Desprezar é perigoso, por Eliara Santana

Bolsonaro mudou o discurso de enfrentamento e adotou o personagem “perseguido”, a vítima que sofre perseguição porque tem missão importante

Reprodução Redes Sociais via Correio Braziliense

Jair na Paulista. Desprezar é perigoso

por Eliara Santana

Domingo de sol brilhando em São Paulo, e parte da Avenida Paulista estava tomada pelos verde-amarelos da terra plana. Todos respondiam à convocação do ex-presidente e agora inelegível Jair Bolsonaro para uma manifestação “pacífica” e “pela democracia”. No trio elétrico, Michelle Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, Romeu Zema, Nikolas Ferreira e vários outros garantiam a diversão e animavam a plateia. Há quatro dias, Bolsonaro ficou calado no depoimento que prestou à PF sobre a armação para dar um golpe e impedir Lula de governar. Mas, no domingo, ele soltou a voz, falou aos corações e mentes verde-amarelos, tirou a armadura e calçou as sandálias da humildade. 

A guerra é midiática, estamos em ano eleitoral da maior importância, e produzir belas imagens e acontecimentos de impacto é uma estratégia muito importante nos momentos de conflito e nos momentos de eleição. Não foi uma megamanifestação, com certeza; havia buracos de concentração na Paulista. Mas isso não é o elemento definidor. Na guerra de narrativas, a PM paulista do governador Tarcísio de Freitas – aliado de Bolsonaro que discursou na manifestação – deu a informação, ainda na noite de domingo,  de que havia entre 600 mil e 750 mil pessoas na Paulista durante o ato. Com tantos buracos e poucos quarteirões ocupados, nem os defensores  da Terra plana iriam acreditar nos números – mas os jornais da grande imprensa reproduziram o dado, pois a fonte é fidedigna e tem autoridade para informar o que informou; se isso é verdade, não importa muito. É um detalhe na guerra de narrativas, e os números serão reproduzidos nas centenas de imagens que mostram a Paulista cheia e que já estão circulando amplamente. Em tempos de domínio da desinformação, é assim que funciona.

O grupo de pesquisa “Monitor do debate político”, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, coordenado por Pablo Ortellado e Márcio Moretto, informou que havia 185 mil pessoas na Avenida Paulista acompanhando o inelegível ex-presidente Jair Bolsonaro. Apesar de bem menor do que os dados divulgados pela PM, é um número expressivo, não nos enganemos. Bolsonaro não é mais presidente, está sendo investigado pela PF sob acusação de ter participação na trama golpista para impedir a posse de Lula, está sendo investigado pela participação na arruaça do 8 de Janeiro em Brasília, fez uma gestão miserável da pandemia de Covid, deixando um legado de 700 mil mortos, arrasou o Estado brasileiro, emporcalhou completamente  a economia, e, mesmo assim, reuniu 185 mil pessoas num domingo de sol na Avenida Paulista – e antes que me dirijam comentários irritados, é claro que nada foi espontâneo, as pessoas não aderiram simplesmente, elas foram convocadas e convencidas e financiadas (muitas delas) pelos apoiadores de Bolsonaro. Espontaneidade, sobretudo em algumas questões, é algo cada vez mais raro (se não inexistente), tudo precisa precisa ser cativado e cultivado – e a extrema direita sabe bem como fazer isso.

Na Paulista, Jair Bolsonaro mudou o discurso de enfrentamento e adotou o personagem “perseguido”, a vítima que sofre perseguição porque tem uma missão importante: defender a justiça e a liberdade no Brasil. O discurso e o personagem são mobilizadores e capazes de ganhar eleição, como já ocorreu no passado, depois da facada. 

Feito o preâmbulo, quero salientar alguns aspectos que me parecem relevantes sobre o ato na Paulista:

 1 O ato foi muito importante para manter as narrativas da pauta da extrema direita em circulação  e para manter a base mobilizada. Temas como liberdade do indivíduo, defesa da Pátria, defesa da família, missão… tudo isso ganha muito corpo

2 Apesar do discurso calculadamente humilde, Bolsonaro não está sepultado

3 O bolsonarismo foi bastante abalado, mas não está enterrado, morto e sepultado. Pelo contrário, está ativo e reciclando formas de atuação e reeditando os discursos quando convém

4 A situação jurídica dele não se abala, mas cria-se uma “camada” de instabilidade 

5 Coloca o tema da anistia na pauta e no imaginário das pessoas, referindo-se aos “pobres coitados”, com “filhos órfãos de pais vivos”; isso cria uma disposição favorável, não se enganem

6 Reforça o papel de Michelle Bolsonaro, que é presidente do PL Mulher, como nome relevante para mobilizar o eleitorado feminino – que está sendo decisivo nas eleições no Brasil. E aqui vai uma sugestão: pesquisam sobre as “tradwives” 

7 Mais de 20 parlamentares da base do Governo Lula estiveram presentes ao ato na Paulista, além de governadores, como o de São Paulo e o de Minas Gerais. Não é pouca coisa.

Por fim, chego ao ponto que quero reforçar nesta conversa a partir do evento de domingo (24/02) na Paulista: o desprezo pelo opositor é perigoso, muito perigoso; seja na política, seja nas paixões, seja na mistura dessas duas coisinhas que parece ser o que dá o tempero do caldo político no Brasil. É perigoso porque revela a arrogância daquele que despreza e implica um olhar turvo e distorcido em relação à complexidade da realidade brasileira e também dos ressentimentos acumulados. E isso importa muito.

Sobre  ato, há uma pergunta geral que apareceu em várias análises e diversos comentários que é se o ato “funcionou”. A resposta tem a ver com a questão “funciona para quê?” – não funciona para mudar a situação jurídica de Bolsonaro, mas funciona, e muito, para manter as narrativas da extrema direita fortes e em circulação e a base acesa e empolgada, mobilizada, o que é ouro em ano de eleição local.

Para fechar: o ato de Jair Bolsonaro foi pauta no domingo e é pauta de destaque em todos os jornais e sites da imprensa na manhã desta segunda-feira. Portanto, não deveria mesmo ser tratado com desprezo arrogante.

Eliara Santana é doutora em Linguística e Língua Portuguesa, com foco em Análise do Discurso. Ela é pesquisadora associada CLE/UNICAMP, onde participa do projeto Pergunte a um/uma Cientista. É integrante do Observatório das Eleições. Desenvolve pesquisa sobre desinformação, desinfodemia e letramento midiático no Brasil.

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2 Comentários

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  1. A questão não é de menosprezar e sim de estudar.
    Estudar quais foram os elementos que conseguiram destruir no mundo todo características inerentes ao ser humano desde o surgimento da cultura.
    Como seres humanos, muitos,devidamente educados,conseguem negar elementos mais marcantes da natureza humana e partem para a defesa implícita e explícita da eliminação de tudo é todos que deles não concordem?
    Como aceitar a discriminação, a dominação de forma aviltante?
    Como neutralizar a pobreza em um mundo com o desenvolvimento científico e tecnológico que temos?
    Como calar-se diante de atrocidades como as cometidas pelos nazionistas e que são motivo de orgulho para eles?
    Como anistiar quem foi responsável e irresponsável pela morte de mais de 700 mil brasileiros?
    O que fizeram com a humanidade?

  2. Eliara,
    concordo com sua análise sobre a dimensão política do ato, e a função de manter a chama da extrema direita acesa.
    Só tenho reparos à dimensão física do ato, e o que me parece um sobredimensionamento da quantidade de gente presente nas duas avaliações. Também achava isso das avaliações dos atos no período do impeachment da Dilma e nas manifestações do ‘Fora Bolsonaro.
    A Av. Paulista tem cerca de 40 metros de largura (com uma razoável ocorrência de ocupações por instalações que diminuem o espaço disponível), e a manifestação de ontem ocupou em torno de 500 metros com vários espaços de vazios irregularmente distribuídos nesse trecho. São 20 mil metros quadrados, que para abrigar 200 mil pessoas teria que estar ocupado totalmente com 10 pessoas por metro quadrado, desafio digno de espetáculo circense.na região mais próxima do caminhão poderia se dizer que a concentração pode ter aglomerado de 4 a 5 pessoas por metro quadrado, numa área de 2 a 3 mil m². No resto, podemos considerar uma área de 2 a 3 mil m² com concentração de 2 pessoas por m² e no resto, menos de 1 pessoa por m². Fazendo o cálculo pelos máximos valores teremos: 15 mil + 6 mil + 14 mil = 35 mil pessoas. Se contarmos com a possibilidade de uma grande circulação de gente ao longo do evento, com uma flutuação alta dos presentes, podemos imaginar um outro tanto de gente, o que causaria um fluxo de 10 mil pessoas entrando e saindo por hora, o que seria perceptível.
    Para um cálculo com alguma perspectiva verista, podemos sugerir uma presença de 50 a 60 mil pessoas no evento.
    Saudações quantificaantes,
    Batata

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