Os milicianos e o voluntarismo conservador, ontem e hoje, por Marcos Silva

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Os milicianos e o voluntarismo conservador, ontem e hoje

(Tropa de elite 2 – O inimigo agora é outro)

por Marcos Silva

O filme Tropa de elite, dirigido por José Padilha em 2007, alcançou grande sucesso de público e crítica. Chegou a merecer homenagens, aparentemente espontâneas, no carnaval carioca seguinte a seu lançamento: homens e mulheres, de diferentes faixas etárias, apareceram em público com a roupa básica do BOPE, grupo policial que a obra expôs de forma detalhada em sua face francamente dedicada à missão profissional (muito sofrida, pelas agruras resultantes da absoluta honestidade) no combate ao crime e à corrupção.

O talento do diretor nos campos de montagem e direção de atores (com destaque para Wagner Moura, no papel do Capitão Nascimento, mais um bom elenco de apoio) e múltiplos prêmios em festivais contribuíram para que significados francamente conservadores da película de 2007 merecessem pouca atenção. O BOPE findou caracterizado como um Esquadrão da Morte redimido, “do Bem”, com honestidade que legitimava o espetacular justiçamento de traficantes e violências contra quem tivesse relações pessoais com eles (mesmo que não participasse do tráfico), inclusive torturas realizadas ou ameaçadas – torturas reabilitadas no Brasil posterior à ditadura de 1964/1985, depois de denunciadas em tantos filmes sobre esse período ditatorial. O argumento dos Direitos Humanos apareceu na condição de veleidade própria a pessoas caracterizadas como coniventes com a corrupção – universitários irresponsáveis, consumidores de drogas e integrantes de ONGs demagógicas, suportes mais ou menos involuntários para o tráfico e outros crimes.

Tropa de Elite 2 – O inimigo agora é outro, do mesmo diretor, foi realizado em 2010, com Moura a retomar o papel de Nascimento – agora, já Tenente-Coronel, que ocupa um posto de destaque na Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, narrador que articula as ações em off, voz onisciente até como autocrítica. Ele estabeleceu claros vínculos com seu antecessor de 2007 (fotogramas, tema musical) e sugeriu conexões com tópicos da política brasileira em andamento naquele período. Era fim do segundo governo Luís Inácio Lula da Silva, primeira eleição de Dilma Roussef – segunda petista a ocupar a presidência da república -, supostos avessos em relação à ditadura de 1964/1985 e dos conciliatórios governos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Tais avessos foram questionados no filme: tudo parecia piorar num universo de descontrole. Tropa de Elite 2 deu ênfase à denúncia de corrupção (lema muito exposto na política brasileira a partir do chamado Mensalão, em 2005, escândalo contra o PT e seus representantes no Legislativo e noutras áreas de governo) e à desqualificação de quase todos os políticos existentes, enfrentados com bravura pelo honesto e destemido Nascimento. Vale lembrar que o início de Tropa de elite 2 traz a legenda “Rio de Janeiro dias de hoje”.

O deputado Fraga (interpretado pelo ator Irandhir Santos), professor de História, defensor dos Direitos Humanos e novo companheiro de Rosane, ex-mulher de Nascimento (papel da atriz Maria Ribeiro), é a exceção absoluta num mar de políticos associados à bandidagem. Não há partidos nem movimentos sociais, exceto uma pequena claque para aplaudir Fraga numa sessão de CPI. A Política morreu e ninguém faz seu trabalho de luto – cabe lembrar que setores ditatoriais de 1964/1985 falavam muito mal dos políticos, como se eles mesmos não desempenhassem esse papel na sociedade. Nascimento pretende encarnar um mundo melhor e sem política – a exceção de Fraga, que o tenente-coronel hostiliza no começo do filme, não redime esse universo da experiência humana, é qualidade individual também.

O filme se articula didaticamente, com imagens que ilustram falas de Nascimento. As práticas corruptas são mostradas ostensivamente, incluindo extorsão, roubo, execuções com incontáveis tiros.

Uma cena inicial de Tropa de Elite 2 mostra o dedicado policial carregando o tambor de sua arma, imagem sucedida por apresentação de equipamentos num quarto de hospital – depois, entenderemos o contexto dramático de internação de seu filho, que corria risco de vida, baleado em atentado contra Fraga. Mas o trajeto do militar, nesse novo universo, é de se aproximar de alguma política, através de Fraga e talvez mais que isso. Quase no final da narração, aparecem breves cenas em Brasília, DF. São ruas desertas, sem cidadãos, a cidade parece ter sido construída para isso. A cidadania é sequestrada pelos heróis impolutos, eles devem lutar em salas fechadas (o gabinete de Nascimento, o escritório de Fraga), heróis de si, expostos pelo filme à admiração pública como troféus de suas guerras.

O messianismo conservador de Tropa de elite 2 se associa àquelas qualidades técnicas do diretor e a seu talentoso elenco, incapazes de verem e mostrarem mais que o inimigo do momento: existem policiais e políticos corruptos, desdobrados em milícias, existem traficantes (não mais o inimigo…) e outros bandidos explícitos, o resto da sociedade é um enigma – aquilo é Capitalismo? A violentíssima corrupção policial e política aparece articulada a alguns itens de consumo dos indivíduos corruptos (barco no lazer de final de semana, carros vistosos, belas mulheres disponíveis – não há policiais gays nem impotentes, não há gays/lésbicas nem mulheres heterossexuais participantes da corrupção -, bebidas e roupas caras em alguns casos).

As personagens femininas surgem quase sempre como vítimas, talvez elos de articulação entre situações. A corajosa repórter Clara Vidal (interpretada pela atriaz Tainá Müller) consegue identificar vínculos entre policiais corruptos e campanha eleitoral do governador mas é cruelmente assassinada, deixa como legado a gravação de sua fala, em escuta ordenada por Nascimento, com o editor do jornal onde trabalhava.

Os pobres são explorados no consumo dos produtos básicos comercializados pelos corruptos ou por seus representantes (“Toda favela é um mercado poderoso de muita coisa comprada e vendida”, em fala de Nascimento – o filme cita e/ou mostra botijões de gás, garrafões de água, usuários de lan-house e de agência de empréstimos), não no trabalho cotidiano – o trabalho parece ter morrido também ou sobreviveu apenas no assassinato e na tortura, produzidos por uns, e no ideal absoluto, cultivado por pouquíssimos outros. O Capitalismo brasileiro acumula a partir das comunidades pobres. FEBRABAN, FIERJ (cuja sede foi cenário para a sessão de Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa, nesse filme…) e congêneres não existem como poderes. Mas há um Sistema em abstrato, encarnação do Mal que move violências e corrupções de policiais e políticos.

Padilha, como todo artista, aprendeu com outros artistas – cineastas de diferentes nacionalidades. Nesse caso, há diálogos com filmes estadunidenses sobre a Guerra do Vietnã e os também ianques filmes de ação. Em Apocalipse now, de Francis Ford Coppola, um hábil surfista exibe seu estilo, a partir de ordem de seu comandante, no meio de bombardeio promovido pelos companheiros, é suporte para reflexão sobre a violência espetacularizada: a cena supera criticamente o efeito; o que interessa é a cultura dos ocupantes; Vietnã e mundo que se danem! Em Tropa de Elite 2, a cena do helicóptero da Secretaria de Segurança sobrevoando um campo de futebol em morro carioca, é uma bonita imagem na qual o poder se faz visível – mas poder é somente isso (equipamentos tecnológicos inalcançáveis para a maioria)? O elenco brasileiro dos dois filmes de Padilha, certamente, é superior aos congêneres de ação norte-americanos – Bruce Willis, Chuck Norris, Steven Seagal e similares. Resta pensar sobre o que deriva dessa e de outras habilidades nacionais, que fez sucesso no país inspirador de seu estilo e até embasou carreiras cosmopolitas para Padilha e Moura. Afinal, o honesto e mártir capitão André Mathias (o ator André Ramiro), amigo e mesmo discípulo de Nascimento no filme anterior, tortura um traficante preso, depois assassinado pelo Major Rocha (o ator Sandro Rocha) – esse sim corrupto e vilão, tanto que mata pelas costas o próprio Mathias ao perceber que o jovem oficial estava prestes a desmascará-lo no episódio de assalto a uma delegacia e roubo de armamentos por policiais, ações falsamente atribuídas a traficantes.

A voz narrativa de Nascimento se confunde com a direção do filme, apresentado como retrospecto a partir do atentado que ele sofreu ao sair do hospital onde o filho estava internado (“hora da morte”, em monólogo do personagem) que ocorreu por conseguir identificar, com documentação obtida naquela escuta, altas corrupções envolvendo políticos e policiais.

O tenente-coronel age individualmente, admite certa aliança com Fraga – outro indivíduo heroico e honesto. Não dá para entender como nascem esses homens abnegados. Sem eles, o filme e o mundo não existiriam. Narrar seus trajetos é um pacto com o acaso num mundo talvez sem Deus. Ou Deus se encarna nesses poucos impolutos heróis e o diretor que os materializa é seu evangelista?

Há um importante ponto de partida para o que se narra: Nascimento orientou uma invasão do Presídio de Bangu pelo BOPE, durante sangrenta rebelião de presos, identificados como chefões do tráfico. Diante das mortes de líderes nesse meio e da ascensão de Nascimento a um cargo na Secretaria de Segurança, um pouco forçada pela boa repercussão que seu comando naquela investida mereceu (é publicamente aplaudido em restaurante onde entra, procurando pelos superiores hierárquicos), seguida de forte repressão a traficantes ainda fora da cadeia, tudo parece sugerir sucesso do policial em sua missão.

No contexto daquela sangrenta rebelião, o governador do Rio de Janeiro disse para seus assessores próximos: “Não quero outro Carandiru. Cadê o cara dos Direitos Humanos?”. Fraga – esse cara – foi introduzido no filme sob o signo da hostilidade pessoal de Nascimento (é o novo companheiro de sua ex-mulher, admirado pelo filho do policial) e de hostilidade política do dedicado oficial do BOPE, que o considerava manipulado por aquele governo em nome dos Direitos Humanos, demagógico punhado de nada. O professor se ofereceu para ficar sob controle dos rebeldes, foi tratado como refém e salvo pelos integrantes do BOPE, sob comando de Mathias. Fraga, em seguida, acusou publicamente Nascimento e Mathias pelo assassinato dos presos (caracterizou isso como limpeza étnica e social, estabelecendo paralelo com procedimentos similares em favelas) naquela rebelião; Mathias sofreu retaliações graves, foi retirado do BOPE, deslocado para atividades burocráticas caóticas, acusou o governador de se interessar apenas por política, punido com prisão disciplinar, assassinado traiçoeiramente por Rocha.

A Poética de Padilha, mesmo com pretensões realistas (treinamento dos atores por ex-policiais, advertência na abertura do filme: “Apesar de possíveis coincidências com a realidade, este filme é uma obra de ficção”), constrói explicitamente um mito: fala da política e pretende estar fora de seu espaço; poder e corrupção são graves problemas dos outros; um filme, nessa perspectiva, não é ato de poder, não existe corrupção simbólica praticada por cineastas e outros artistas. Anos depois (2018), no seriado internacional O mecanismo, sobre a Operação Lava Jato, Padilha atribuiu a personagem identificado com o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva palavras originalmente pronunciadas pelo senador Romero Jucá, um dos líderes na derrubada de Dilma Roussef em 2016: o apotegma que propunha o impeachment da presidenta a partir de um acordo “com o Supremo, com tudo”. Questionado, o diretor apelou para o argumento da licença poética própria à ficção – apesar das coincidências com a tal realidade… Tais coincidências podem ser também sofisma e ideologia, como se vê!

Nascimento foi mais ou menos cooptado ou momentaneamente neutralizado pelo Sistema através da referida nomeação para um cargo de prestígio no governo do Rio de Janeiro – subsecretário na área de Segurança, “queda para cima”, em suas palavras -, tornou-se responsável por todos os “grampos” (escutas, nem sempre autorizadas, de suspeitos), intuiu que havia alguma coisa errada a acontecer, recolheu provas, sofreu atentado e correu risco de vida, seu filho foi gravemente atingido por disparo daqueles policiais corruptos.

Nessa perspectiva, a corrupção dos policiais/milicianos é a outra face da corrupção política, particularmente no que se refere a financiamento de campanhas, circuito fechado que ignora outros níveis de Sociedade e Economia. Vale lembrar que, na novela Duas caras, da Rede Globo, 2008, os milicianos eram líderes de comunidade boníssimos, o ator Antonio Fagundes representava um simpático chefe de grupo, com jovem bela namorada e apoio a escola de samba.

A palavra “Máfia” chega a ser empregada por Fraga (já eleito deputado estadual, no exercício do mandato, a propor uma CPI sobre milícias e suas conexões) para descrever esse universo e enfaticamente rejeitada pelo deputado corrupto e apresentador cômico-policial de televisão Fortunato (o ator André Mattos), que age em seu programa “Mira geral” com forte teatralidade corporal e vocal. No filme O poderoso chefão, de Francis Ford Coppola, antes disso, caracterizara os mafiosos como homens de negócios Fazer isso foi materializar um Sistema econômico, social e político e apresentar outros homens de negócios (aqueles das grandes corporações, federações e entidades assemelhadas…) como mafiosos refinados e bem-sucedidos, dentro da Lei, talvez até administrando a Lei ou a subordinando a seus desígnios, o que parece alheio aos objetivos de Padilha.

Há um final feliz: Fortunato na prisão, filho de Nascimento a se recuperar.

Ficção ou realidade? Ficção-realidade!

A ficção é dotada de realidade própria, com poder de interferência na “outra” realidade. E essa “outra” realidade abriga faces de ficção – projetos que podem ou não ser retomados.

Tropa de Elite 2 é uma influente realidade ficcional no Brasil de 2010 e depois – outros milicianos perto de poderes muito maiores.

Marcos Silva – Depto. de História da FFLCH/USP

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

2 Comentários

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  1. Salvador da patria
    O Brasil sofre da sindrome do salvador da patria. Collor, Capitão Nascimento, Sergio Moro, Bolsonaro, todos tem em comum um desejo por mudança mas que no final significa não mudar nada.

    Collor não caçou marajas, Nascimento não resolveu a corrupção da Polícia, Moro perseguiu desafetos enquanto protegia comparsas, Bolsonaro é um ser desprezível, do pior que a humanidade poderia produzir.

    O unico salvador que tentou mudar aos poucos sem mecher nas estruturas de poder está preso justamente por ter ousado isso, a mudança.

    Triste é um pais que venera Moro e Bolsonaro enquanto regojiza com a prisão de Lula.

  2. O filme tanto o primeiro

    O filme tanto o primeiro quanto o segundo são fascistas. O diretor Padilha não sei se é fascista por convicção ou oportunismo

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