Para não esquecer o terror de Estado, por Walnice Nogueira Galvão

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Especial para o GGN

O documentário O Ato de Matar (The Act of Killing), que a HBO está exibindo por estes dias, é um horror : sem exagerar, é o filme mais aterrorizante que já vi.

Neste ano de 2014, que assinala o meio século decorrido desde o golpe de 1964, surgiu um bom número de filmes sobre as barbaridades que a ditadura brasileira cometeu. É uma efeméride a lembrar, embora certamente não para celebrar. Alguns de nossos melhores e mais firmes documentaristas, como Sílvio Tendler, que nunca abriu mão da linha política, trouxeram novas contribuições.

Mas O ato de matar deixa a todos no chinelo, inclusive em inventividade. Pois consegue fugir ao padrão incontornável de entrevistas com sobreviventes feitas no momento da realização, a que se soma o material de arquivo com filmes da época.

Este aqui dá um passo gigantesco na superação desse padrão. Sua ideia central, de arrepiar os cabelos, é propor aos algozes que reencenem como agiram para praticar tortura e assassinato. E o pior é que eles concordam alegremente.

As circunstâncias peculiares à Indonésia explicam, embora não justifiquem, algumas coisas. Quando os militares resolveram dar um golpe e derrubar o governo progressista de Sukarno, convocaram e soltaram a rédea à escória da sociedade, constituindo batalhões de bandidos com passe livre para torturar e exterminar os “comunistas”, ou seja, qualquer opositor. Em menos de um ano eles tinham assassinado um milhão de cidadãos. Como o regime prevaleceu, e muito deveu aos 30 anos em que Suharto o liderou, esses bandidos tornaram-se herois nacionais. Não têm o menor pudor em falar de suas façanhas, e vemos no filme o vice-presidente dirigindo um ato público deles, elogiando abertamente sua contribuição à “limpeza” social.

Valendo-se disso, o filme propõe a esses herois que reencenem seus crimes para a câmera, dando-lhe a chance de escolher o gênero do filme, thriller, western, até musical, com maquiage específica e figurinos também. E estes psicopatas o fazem sem hesitar. A tortura é minuciosamente mostrada e explicada, as execuções com garrote também (“derrama menos sangue”). O espectador os vê decapitando um manequim. Encenam igualmente o ataque a uma aldeia, com estupros, assassinato de crianças e incêndio generalizado: este episódio não com manequins mas com gente de verdade.

Os rostos facinorosos e as expressões faciais dos gângsteres já contam pelo menos metade da história. Além do mais, são bem informados, e sabem contra-atacar com os malfeitos de George W. Bush invadindo um Iraque inocente das armas de destruição em massa, ou o genocídio dos índios e dos palestinos, etc.

Riem-se bastante entre eles, relembrando um passado que lhes deu muito gosto e que os cobriu de glória, uma glória que persiste até hoje. Às vezes choram, babam e vomitam com toda a sinceridade, quando, invertendo os papéis, um deles finge ficar na posição da vítima aterrorizada e sufocada pela agonia da dor.

O Ato de Matar é uma produção dinamarquesa/inglesa/norueguesa de 2014, que já ganhou o prêmio inglês BAFTA e se candidata ao Oscar de melhor documentário.  O diretor é Joshua Oppenheimer. Os dinamarqueses, aliás, estão fazendo grande cinema e grande televisão. Em cinema, lembremos os feitos do movimento Dogma e de Lars von Trier. Em televisão, as séries Borgen, The Bridge e The Killing – em exibição no momento – são lições a não desperdiçar. A primeira delas é diretamente sobre política, pois mostra as intrigas do poder quando uma mulher ocupa o cargo de primeiro-ministro da Dinamarca. The Bridge e The Killing, apesar de policiais, são muito politizadas. Esta última vai mostrando as consequências de um homicídio e sua investigação não só para os próprios detetives e para a família da vítima, mas também para os altos escalões do governo que se vêem envolvidos. A qualidade técnica e estética é de deixar seus equivalentes americanos envergonhados.  

Está na hora de prestar atenção  nesses dinamarqueses.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

11 Comentários

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  1. Depois que Zé de Abreu

    Depois que Zé de Abreu ajudoiu Dilma destroçar Serra mostrando que a Gloriosa foi super branda, que em véspera e eleição aparece essa coisa de ditadura para tentar vencer o petismo, pois se fosse isso mesmo teria acabado com o imposto sindical, o que faria com que o petismo jamais existisse

    ==========

    http://www.youtube.com/watch?v=uWxlygwiezs

     

     

  2. “convocaram e soltaram a

    “convocaram e soltaram a rédea à escória da sociedade”

    Nossa, pode usar esses termos em blog progressista?

    Achei que bandido fosse vítima da sociedade, da desigualdade, e merecesse sempre uma segunda, terceira, quarta chance….

    Talvez a diferença de tratamento se dê no fato de que esses assassinos covardes tenham matado militantes de esquerda, e por isso merecem o epíteto de “escória”.

    Caso tivessem matado cidadãos comuns, como fazem todos os dias no Brasil (50 mil homicídios/ano), os mesmos militantes de esquerda não os chamariam de escória (jamais!), mas sim de “vítimas da desigualdade social”….

    Ou estou falando mentira?

     

    1. Charlie,
      escória da sociedade

      Charlie,

      escória da sociedade não são apenas alguns dos elementos que estão dentro das cadeias brasileiras. Uma boa parte dessa escória é o pessoal que coloca mais e mais gente lá dentro. Afinal, se você quer arregimentar um grupinho bom em exterminar, a ROTA deve ser um dos primeiros da lista, bem pertinho do seu irmão gêmeo, o PCC.

    2. Você precisa de um psicólogo…

      Tô achando que você está desenvolvendo sintomas de paranóia, como não sou especialista te aconselho a procurar um psicólogo o quanto antes e debater isso com ele.

  3. Do Dicionário Michaelis on

    Do Dicionário Michaelis on line:

    sofisma 
    so.fis.ma 
    sm (gr sóphisma) 1 Lóg Raciocínio capcioso, feito com intenção de enganar. 2Argumento ou raciocínio falso, com alguma aparência de verdade. 3 pop Dolo, engano, logro.

  4. Sofisma

    sofisma 
    so.fis.ma 
    sm (gr sóphisma) 1 Lóg Raciocínio capcioso, feito com intenção de enganar. 2Argumento ou raciocínio falso, com alguma aparência de verdade. 3 pop Dolo, engano, logro.

  5. Ver para crer

    Realmente, um filme que tem ser visto por todos, particularmente aqueles que estao conscientes da fragilidade dos valores que sustentam a vida civilizada.

    O golpe de estado na Indonesia, em 1965, e promovido pelos militares indonesios com ajuda e incentivo dos americanos levou ao assassinato de 2.8 milhoes de pessoa sob a “justificativa” de que eram comunistas.

    E muitas das pessoas que realizaram tal facanha ainda estao la’, serelepes e fagueiras como nunca, se orgulhando do que fizeram, e inclusive falando em programas de TV (nacional) sobre a patriotica contribuicao que deram para “sanear” o pais.

    Hoje a Indonesia e’ um “paraiso” neoliberal, onde o “mercado” e sua filosofia dominam completamente e sem qualquer oposicao politica, apesar da imensa corrupcao e pobreza que caracterizam o pais.

  6. A brutalidade em estado puro

    Quando esse filme saiu nas salas de cinemas francesas, foi muito bem recebido pela critica, todas lembrando o horror dos criminosos que praticam suas barbaries em nome do Estado e mesmo passado tanto tempo se jubilam ou tentam dar justificativas para seus atos. Tem um personagem, não lembro mais o nome, que lembra o cabo Anselmo. A unica diferença é que esse do filme não nega as barbaries cometidas. Não nega sua animalidade. 

  7. Estarrecedor!

    Também assisti ao filme semana passada; é estarrecedor o que vemos na tela!

    Eu fiquei sem acreditar; não tinha a mínima ideia de que na Indonésia as coisas chegaram a esse ponto, da idolatria à tortura e aos torturadores, da completa submissão dos governantes à sociedades paramilitares e à gângsteres de toda espécie, que se vangloriam de seus atos abertamente. 

    Creio não haver justiça naquele país, não sei ao certo como funciona este poder por lá.

     

     

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