Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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“Pesquisa” do CFM invisibilizou Resolução que prejudica o SUS e as especialidades médicas, por Ion de Andrade

Poucas semanas depois a “pesquisa” foi suspensa de forma tão deselegante quanto foi iniciada, sem explicação sequer aos que a ela responderam

Jornal da USP

“Pesquisa” do CFM invisibilizou Resolução que prejudica o SUS e as especialidades médicas

por Ion de Andrade

O Conselho Federal de Medicina (CFM) tem um entendimento bem conhecido da definição de limites estritos das competências que considera específicas à medicina frente às demais profissões da saúde sendo relativamente comuns as divergências com outros Conselhos profissionais das demais profissões, pois a sua ação é nesse sentido identitária e beligerante.

Sem querer entrar no mérito dessa dinâmica em que cada Conselho defende o que entende ser da sua competência profissional, é importante guardar a ideia em mente de que a defesa das prerrogativas e competências médicas são, nos limites do entendimento do próprio Conselho, uma prioridade para ele.

Em 19 de dezembro de 2023, entretanto, no apagar das luzes do ano, o Conselho Federal de Farmácia (CFF) lançou a sua Resolução 760 (clique aqui para ler)  que cria uma nova categoria farmacêutica: a do “medicamento injetável”.

Ela confere ao profissional farmacêutico poderes (a) de prescrever universalmente  os medicamentos injetáveis e (b) de continuar a vendê-los, uma dinâmica que opera em benefício, em primeiro lugar da indústria farmacêutica, que obteve com a Resolução um prescritor universal que, diferentemente do médico, também vende o medicamento.

Na primeira semana de janeiro, entretanto, o CFM que presumivelmente deveria ter tido, de primeira hora, forte reação contrária a essa Resolução do CFF lançou uma pesquisa, sem aprovação prévia num Comitê de Ética, (feita às pressas), sem metodologia baseada em evidências clínicas, (de baixa qualidade) para todos os médicos e médicas do Brasil sobre um assunto que sabidamente seria rejeitado pela sociedade como um todo.

Poucas semanas depois a “pesquisa” foi suspensa de forma tão deselegante quanto foi iniciada, sem explicação sequer aos que a ela responderam e sem que nenhuma iniciativa pública tenha sido divulgada pelo CFM quanto à Resolução do CFF que já está em vigor. Talvez o CFM possa ter entrado com alguma ação na justiça federal contra a Resolução, mas a sua não divulgação é difícil de entender.

E o que diz a Resolução do Conselho Federal de Farmácia?

Antes de entrar no que diz a resolução 760, vale salientar ao leitor que não existe uma categoria farmacêutica que possa ser chamada de “medicamento injetável”. Entre os medicamentos injetáveis estão produtos que atendem a clínicas tão variadas quanto a obstetrícia ou a psiquiatria, passando pela oncologia, pela anestesia, pela pediatria ou pela infectologia!

É importante que o leitor saiba também que em geral o profissional médico, cuidando da sua própria segurança profissional, não se arrisca facilmente a prescrever, sobretudo medicamentos injetáveis, sem ter experiência clínica com eles, ou quando esses medicamentos pertencem a outra especialidade clínica que não é a sua.

Finalmente é importante que o leitor entenda que não vai nesse artigo qualquer intenção de criar guerra entre profissões, até por que as resoluções dos Conselhos Regionais de Farmácia que regulam a profissão do farmacêutico, não incluem a prescrição de medicamentos entre as suas atribuições e o decreto que regulamenta a profissão do farmacêutico, o 20.377 de 1931, tampouco prevê tudo o que a Resolução 760 estabelece.

A resolução diz:

Art. 3º – O profissional farmacêutico poderá prescrever produtos injetáveis, industrializados e/ou manipulados, sempre em conformidade com a via de administração, dosagem e posologia adequadas, em estrita observância aos protocolos decorrentes de estudos clínicos que comprovem ou possuam evidências cientificas e de acordo com a legislação e as áreas de atuação regulamentadas pelo Conselho Federal de Farmácia.

Art. 4º – Em caso de danos causados aos pacientes, comprovadamente decorrentes de erro, imperícia, imprudência e/ou negligência no ato da prescrição e/ou administração de produtos injetáveis, o profissional estará sujeito as penalidades previstas no código de ética da profissão farmacêutica, sem prejuízo das responsabilidades civil e criminal previstas em lei.

Art. 5º – Para a administração de produtos injetáveis deverá existir procedimentos específicos, de forma a atender às normas de segurança do profissional e do paciente, de forma a abranger minimamente as seguintes etapas:

a) realizar a consulta farmacêutica, contemplando, quando for o caso, a anamnese;

b) elaborar, participar e implementar planos terapêuticos clínicos específicos para cada paciente, mediante protocolos de vigilância farmacológica de medicamentos, quando for o caso, visando a assegurar o seu uso racionalizado, a sua segurança e a sua eficácia terapêutica, conforme dispõe o artigo 13, inciso IV, da Lei Federal nº 13.021/14;

c) disponibilizar, em duas vias, o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) assinado pelo paciente e/ou responsável, e prestar orientação farmacêutica, com vistas a esclarecer ao paciente a relação benefício e risco, a conservação e a utilização de fármacos e medicamentos inerentes à terapia, bem como as suas interações medicamentosas e a importância do seu correto manuseio, em observância ao artigo 13, inciso VI, da Lei Federal nº 13.021/14;

d) avaliar a prescrição e ao identificar incompatibilidades, informar ao paciente e contatar o prescritor, quando for o caso, sempre por escrito, de forma a se resguardar, nos termos do artigo 41 da Lei Federal nº 5.991/73, aplicável por analogia ao caso em concreto;

e) solicitar e interpretar exames complementares, para fins de acompanhamento farmacoterapêutico sistemático do paciente, mediante elaboração, preenchimento e interpretação de fichas farmacoterapêuticas, nos termos do artigo 13, inciso V, da Lei Federal nº 13.021/14;

f) fornecer e documentar instruções ao paciente dos procedimentos adotados, assim como orientar sobre os serviços de saúde de suporte, quando necessário;

g) encaminhar o paciente ao profissional competente quando o caso estiver fora dos limites de sua atribuição;

h) administrar produtos injetáveis somente quando não houver qualquer dúvida quanto à sua qualidade e/ou procedência;

i) manter, obrigatoriamente, o sigilo e a confidencialidade das informações relacionadas à atuação profissional, em observância a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei Federal nº 13.709/18), e eventuais orientações complementares da Autoridade Nacional de Proteção de Dados;

j) elaborar e executar o Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos decorrentes das atividades de injetáveis, em observância à Lei Federal 12.305/10.

§ 1º – É impositivo que o farmacêutico possua capacitação em situações de urgência e emergência, contemplando o reconhecimento precoce de sinais e/ou sintomas de complicações/intercorrências como, por exemplo, a anafilaxia, dispondo também de um roteiro/protocolo de ação para cada uma destas situações.

§ 2º – Deve o estabelecimento de saúde dispor dos contatos disponíveis de serviços emergenciais, a exemplo do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), da unidade do corpo de bombeiros e do hospital mais próximo.

Art. 6º – Fica o farmacêutico obrigado a encaminhar, aos sistemas oficiais de notificação, queixas técnicas, eventos adversos pós procedimento, ocorrências de incidentes e/ou erros de aplicação, incluindo a investigação de possíveis falhas no processo que possam ter contribuído para tal incidente e/ou erro, consoante dispõe o artigo 13, inciso I, da Lei Federal nº 13.021/14.

Em nenhum momento a Resolução do CFF vincula a prescrição do paciente ao diagnóstico clínico, fazendo parecer que ela pode ser um ato da discricionariedade do profissional farmacêutico e não uma contingência terapêutica.

A única vez em que as palavras “diagnóstico” e “tratamento” aparecem na Resolução 760 é quando ela cita a decisão do STJ referente aos Fisioterapeutas e Terapeutas Ocupacionais que, no âmbito das suas profissões, passaram a poder prescrever terapêuticas consoante a sua clínica específica.

O CFF cita essa decisão para atribuir ao farmacêutico a possibilidade de prescrever independentemente da clínica, desde a neonatologia até a geriatria, pois não há restrição na Resolução, já que o critério maior é autorização universal da prescrição do dito “medicamento injetável”.

A resolução retira a clínica e o paciente do centro da preocupação do profissional posicionando a administração de um produto, que sem diagnóstico, sequer pode mais ser denominado de terapêutico.

Ora obviamente toda prescrição deve decorrer de um diagnóstico clínico, sem o qual há, de fato, exercício ilegal da medicina com ameaça à segurança do paciente, razão porque no topo da Resolução ela é preventivamente punitiva contra o profissional prescritor.

De fato, o CFF se desresponsabilizando enquanto colegiado ante esses riscos incontornáveis, no artigo 4o da referida Resolução, se isenta, atribuindo a responsabilidade, inclusive potencialmente criminal, ao profissional que prescreve o medicamento da nova categoria fictícia dos “injetáveis” que é então instruído a aplicar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ao paciente que receberá o produto…

A Resolução parece também querer atenuar os riscos inegáveis nos quais ela se aventura sinalizando, no seu artigo 3o que as prescrições vejam só, devem ser feitas nas posologias e doses estabelecidas (!) e baseadas em protocolos clínicos científicos, sem mencionar a necessidade do diagnóstico prévio, nem o fato de que tais protocolos são estabelecidos pelas sociedades médicas de especialidade, que não são especialistas em medicação injetável, mas em clínicas específicas, cujo propósito, a arte e a ciência é justamente o de unir o diagnóstico ao tratamento!!!

Como é possível então que o CFM, em lugar de desenterrar o machado de guerra em janeiro de 2024 para enfrentar o que é o maior ataque, não somente à medicina, mas à segurança do paciente, e ao SUS tenha lançado em lugar dessa luta, uma pesquisa tão precária que já foi descontinuada ainda em janeiro?

A Resolução 760 do CFF cria inúmeros problemas sistêmicos para a Saúde. Ela:

  • desvaloriza as Sociedades Médicas de Especialidades, (que tiveram papel digno na Covid, sempre apontando para a ciência), assumindo o papel prescritor de todas elas;
  •  desorganiza as portas de entrada do SUS, (a atenção Básica e as urgências) e toda a sua arquitetura ao criar uma espécie de “atendimento médico”, sem médico para quem não tem plano de saúde (pois os que têm continuarão indo ao médico);
  • Ameaça a segurança do paciente que passa a fazer jus a uma prescrição desprovida de diagnóstico clínico, assentada num Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e não na competência clínica e dever de ofício do profissional legalmente habilitado;
  • Dá às centenas de milhares de farmácias privadas do país a possibilidade de vender o medicamento injetável (do analgésico ao psicotrópico) em princípio sem prescrição médica, desde que faça parte da família dos injetáveis! E
  • Faz coincidir a prescrição com a venda num mesmo profissional, o que tem potencial de gerar uma explosão no consumo, operando em favor do interesse financeiro da indústria farmacêutica!

Os ganhos para a indústria farmacêutica serão, potencialmente, astronômicos.

Vale salientar que, no seu código de ética, o profissional médico está proibido de vender medicamentos e a sua condição de prescritor universal o proíbe do interesse pela venda.

Na outra ponta, é ético que, não podendo prescrever o farmacêutico possa, desinteressado pela prescrição, vender o medicamento.

Num ofício datado dos primeiros dias de janeiro, a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD) pediu providências ao CFM contra a resolução 760 do CFF. Até o dia 30/01/2024, o Conselho não havia respondido.

Em nome do SUS, da segurança dos pacientes e da medicina, a entidade deverá também protocolar denúncia junto à Procuradoria Geral da República para que essa Resolução seja suspensa e as motivações do CFF apuradas.

O Ministério da Saúde e o Conselho Nacional de Saúde devem se inteirar do conteúdo dessa Resolução e tomar as iniciativas cabíveis, pois há risco de anarquia para o SUS.

A pergunta que precisa ser respondida pelo CFM à sociedade brasileira é:

Por que nos primeiros dias de janeiro, por meio de uma pesquisa anti-vacina, feita às pressas e de má qualidade, o CFM invisibilizou a Resolução 760 do CFF, publicada duas semanas antes que invade competências médicas, prejudica o SUS, ameaça a segurança dos pacientes e beneficia a indústria farmacêutica?

Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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