Se o genocídio de pretos continuar Lula poderá ser derrotado
por Ion de Andrade
A eleição de Lula pelas periferias e rincões foi um pacto não escrito de tirar do fascismo, não somente os de cima, mas sobretudo os de baixo. Derrotada a democracia, a gangrena normalizada para os de baixo ganhará a sociedade.
Tema recorrente e até aqui sem remédio, o genocídio dos pretos pelas forças policiais continua gerando estudos e estatísticas que mostram, sobretudo, que continuamos no mesmo lugar.
A edição do dia 16 de novembro do UOL traz a seguinte matéria: “Em oito estados, 90% das vítimas da polícia são negras” (clique aqui para ler). Na média, esses estados mataram um preto ou preta a cada quatro horas, sete dias por semana, 365 dias por ano…
Estaria o Brasil condenado a isso de forma irremediável? Ou haveria algum remédio legal capaz de tirar o país dessa maldição interminável?
O cenário mundial, no que se refere ao genocídio colonial hoje é sombrio e dia após dia vamos sendo atualizados de outra (outra ou a mesma?) barbárie cruel, a que acontece em Gaza.
Em Gaza, porém, para além da militância nas redes sociais, nas ruas ou com orações, pouco podemos fazer, enquanto brasileiros, para que a paz seja reestabelecida. Já no que se refere às nossas periferias e aos nossos pretos, vítimas também de um Estado colonial cruel e sanguinário, tudo está em nossas mãos.
De fato, o verdadeiro genocídio de negros no Brasil se dá também pela ação de um velho Estado colonial, o Estado brasileiro. Ele reproduz nas nossas ruas, periferias e favelas, sob uma roupagem tropical, problema muito semelhante ao que é enfrentado pelos palestinos em Gaza: o nazifascismo para os de baixo.
Esse é, portanto, o capítulo brasileiro da luta, sem trégua e sem horizonte de término, do respeito aos direitos humanos e aos valores democráticos, independentemente das diferenças de raça, cor e credo. Enfrentar e resolver o capítulo brasileiro, no entanto, é tarefa nossa.
É também, portanto, em nome dos palestinos inocentes, mortos e feridos, das famílias destroçadas, dos amores perdidos para sempre e de todas as vítimas do apartheid de todos os tempos, que devemos reacender o ânimo para enfrentar o genocídio dos brasileiros pretos, pretas e pobres, que sob o manto de uma terrível normalidade constituem a nossa Gaza eterna.
Como, obviamente, não podemos nos render à barbárie, nem cruzar os braços, estamos obrigados a encontrar saídas no campo da legalidade. É sob a democracia que estamos incumbidos, não somente de sermos solidários com a tragédia vivida por outros povos, mas também de enfrentar o macabro capítulo brasileiro da barbárie universal.
Por esse viés, mas também pela necessária lealdade de projeto do atual governo de enfrentar o racismo, e quero aqui salientar a minha percepção de que há muita coisa sendo feita, como comprova o pacote de medidas contra o racismo lançado pelo governo há dois dias (clique aqui para ler) o genocídio do povo negro não poderá deixar de ter uma ação focada por parte do governo federal ou terá havido aí, historicamente falando, um erro crasso.
Esse é o contexto em que emergem dois fenômenos, a eleição de Millei na Argentina e as últimas sondagens referentes à popularidade do presidente Lula que, pela primeira vez não tiveram um resultado positivo, tendo pesado contra o governo questões relacionadas com a Saúde e com a Segurança Pública.
Portanto, como vemos, no que toca à Segurança Pública, cuja responsabilidade de gestão recai sobre os estados, seus maus resultados oneram politicamente o governo federal. Isso significa que as forças policiais matam pretos nos estados e a opinião pública responsabiliza o governo Lula.
É verdade que há, por parte da nossa população, uma dualidade na percepção subjetiva da ideia de segurança: dos setores médios para cima o temor maior vem da criminalidade e dos setores médios para baixo, o temor maior vem das forças policiais.
Resolver os desafios da Segurança Pública de forma universal deverá, portanto, levar em consideração, ao mesmo tempo, a violência oriunda da criminalidade, o que parece estar, de alguma forma, em andamento e o genocídio dos pobres e pretos pelo Estado, problema esse que está inteiramente órfão de uma iniciativa contundente.
Na construção do projeto de lei contundente e definitivo que pretenda ser um dos remédios para coibir o genocídio, alguns elementos referenciais devem estar presentes. Quais são eles?
- O do homicídio do cidadão (com ou sem passagem pela justiça) pela força policial ocorrido em circunstância que exclua a legítima defesa do policial, ou outro excludente de ilicitude;
- O da tramitação rápida do pagamento da multa indenizatória pelo Estado à família da vítima (para nosso exercício, vamos pensar em sessenta dias – sob pena de multa para o gestor estadual – e em três milhões de reais por vítima para que pese no orçamento público);
- O da prisão preventiva do autor do crime e do seu comandante imediato até o recebimento da multa pela família da vítima (sessenta dias) considerando: (a) a sua periculosidade para a sociedade em geral e (b) o risco que oferecem à família da vítima em particular. Tais fatores atendem legalmente os requisitos para a prisão preventiva.[1]
- O da garantia do direito de regresso (recuperação do valor da multa paga à família da vítima) ao Poder Público (a) pelos agentes envolvidos no crime, (b) pelo Secretário de Segurança e (c) pelo Governador do estado, proporcionalmente à sua remuneração;
- O da perda dos direitos políticos para (a) os envolvidos diretamente no crime, (b) o Governador do estado (ou Prefeito do município se o ato envolver a guarda municipal) e (c) o Secretário de Segurança. A perda dos direitos políticos poderia se dar quando a ocorrência viesse a se repetir além de n vezes num ano calendário. O parâmetro do número de vezes por ano para que a ocorrência produza a perda dos direitos políticos para as autoridades públicas merece uma análise mais fina que leve em consideração (i) os indicadores civilizatórios alvo da lei, (que deverão se tronar progressivamente cada vez mais rígidos) e (ii) o contingente existente de forças policiais em cada estado, que é variável, devendo existir proporcionalidade.
Na prática ocorreria o seguinte:
Nos casos de homicídio pela força policial, excluída a legítima defesa, haveria:
- Prisão preventiva do autor do disparo e do seu comandante imediato até o pagamento da multa indenizatória pelo Poder Público (sessenta dias, no máximo);
- Pagamento de multa de três milhões de reais pelo Poder Público à família da vítima em prazo máximo de sessenta dias;
- Cobrança do montante correspondente à multa ao Governador do Estado, ao Secretário de Segurança e aos envolvidos no homicídio proporcionalmente aos salários recebidos por cada um;
- Cassação dos direitos políticos (a) dos envolvidos diretamente, (b) do Governador do estado e (c) do Secretário de Segurança para a eleição seguinte de acordo, para os dois últimos, com o número de ocorrências por ano estabelecido na lei.
É pouco provável que o genocídio de pretos e pobres no Brasil permanecesse sem controle sob a vigência de uma lei como essa que responsabilizaria material e politicamente o Secretário de Segurança e o Governador do estado com algo que seria um prato cheio para a oposição: a inelegibilidade.
Mais do que isso, o mais provável é que, se estivesse vigente, o número de homicídios de cidadãos pelas forças policiais caísse de maneira vertiginosa, considerando o empenho pessoal que o Governador do estado e o Secretário de Segurança passariam a ter no sentido de evitar um ônus material e político para si.
A decretação sumária da prisão preventiva dos agentes envolvidos diretamente, por sua vez, teria presumivelmente o condão de tornar menos nervoso o dedo do gatilho.
Compondo a maioria dos mortos, os pretos e pretas do Brasil seriam os principais beneficiados e as mães dos jovens negros poderiam talvez até começar a dormir antes que eles chegassem em casa vindos da balada ou da visita à namorada.
Embora a Segurança Pública recaia sob os ombros dos estados, a gravidade do problema envolve a União o que se torna mais crítico pelo fato de que nenhum estado, nem aqueles governados pelas forças progressistas, apresentam resultados melhores, muito ao contrário, aliás. Queiramos ou não, é a credibilidade de Lula a que sofre mais.
Isso significa provavelmente; se nada for feito para coibir o genocídio e para dar tranquilidade às mães e às famílias pretas e pobres do Brasil, num momento, como o atual em que o fascismo está à espreita, e tendo Lula sido eleito pelas periferias, que são, por excelência, os locais desse massacre cotidiano; que o desespero, a descrença e a exaustão do povo possam ensejar uma derrota eleitoral de Lula com a generalização de um fascismo que, por hora só morde os mais pobres e os pretos.
É hora, diante da catástrofe geológica vivida pelos Argentinos, de saber interpretar lições.
[1] REQUISITOS PARA PRISÃO PREVENTIVA SEGUNDO O STJ: A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.
O ART. DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL DIZ:
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova de existência do crime e indícios suficientes da autoria.
Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia
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