Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Lula, é preciso zerar a matança de pretos e pobres, por Ion de Andrade

No Brasil, sem política para conter o extermínio, os crimes são atribuídos apenas ao policial que apertou o gatilho, nunca ao governador.

Fernando Frazão – Agência Brasil

Lula, zerar a matança de pretos e pobres é mais importante do que zerar o desmatamento

por Ion de Andrade

O dia de ontem, 29/08/2023 foi marcado por uma carta aberta da EDUCAFRO pedindo Intervenção Federal na Segurança Pública da Bahia, (clique aqui para ler). Não por não merecer, pois merece para além da conta, é improvável que haja uma intervenção federal na Bahia, mas a entidade que pede é representativa daqueles que vêm sendo o alvo de um extermínio continuado, permanente e sem remédio em todo o Brasil, hoje, na Bahia, e ontem em São Paulo e no Rio.

A carta foi motivada pelo homicídio de mais um jovem negro quilombola pela polícia baiana no que a comunidade local denominou de execução. O jovem José William dos Santos Barros, de 26 anos, da comunidade quilombola de Alagadiço, foi atingido nas costas. Na mesma semana no RN um policial esbofeteou outro jovem negro no contexto de um desafio de hip hop transmitido online por um canal do Youtube, o que viralizou, flagrando e provavelmente também atenuando o que teria ocorrido e o que ocorre aos montes às escondidas.

Esses fatos na Bahia e no RN seguem os eventos bem conhecidos do Guarujá em São Paulo e do Alemão no Rio e, obviamente, centenas e centenas de outros fatos anônimos que pela banalidade do mal sequer foram publicados nos jornais.

Tudo isso ocorre, portanto, independentemente de que força política governa cada estado, revelando que, apesar do discurso, são todas coniventes, ou omissas com essa engrenagem. O fenômeno é, de há muito, trivial em cada estado e cidade da federação e em todos e não há política pública para conter o que acontece no Brasil de forma sistêmica.

Repete-se aqui o que temos sinalizado como maior consenso da República: a exclusão de pobres e pretos de tudo o que dê sentido à vida e, no limite, da própria vida.

Crime generalizado contra os direitos humanos, imprescritíveis por natureza, pela condição de extermínio subjacente a boa parte deles, precisaríamos de algo como um julgamento de Nuremberg capaz de por na cadeia grandes personagens da República de todos os matizes partidários, responsáveis que são pelo Poder Executivo de cada estado exterminador ao qual a polícia militar esteja ligada, num contexto em que não há estado que não mate pretos (muitos sem qualquer passagem pela polícia) em proporção incomparavelmente superior ao que existem nas suas populações…

Não por falta de mérito, mas por falta de instrumental jurídico real para além dos Poderes como eles realmente são, (a Casa Grande) tal julgamento não acontecerá com nenhum governador, pois, a cada turno, os que estiverem no Poder, não sendo processados ou punidos, acobertarão os da oposição que por simetria também não serão processados ou punidos, viabilizando a continuidade pelo século dos séculos da sanha assassina ou omissa ante o morticínio uns dos outros por turno. Isso garante, como quinhão inato do pobre e dos pretos, o fascismo eterno e o extermínio como hipótese cotidiana, independentemente de quem governe.

Esse é o maior problema brasileiro da atualidade e perante ele os estados brasileiros ou atuam como protagonistas diretos e assumidos dos crimes ou como omissos e coniventes com suas polícias que, nunca deixam de ser elogiadas nas cerimônias oficiais.

Embora na maioria das vezes por omissão e não por ação, por ignorância e não deliberadamente, os governadores são responsáveis por suas polícias, tanto quanto o Estado alemão foi responsável pelo extermínio nos campos de concentração e não somente o soldado Fritz que abria a torneira do gás. Isso é juridicamente verdadeiro porque o crime de extermínio inclui o ato de matar (sempre do executor) e o de deixar morrer (muitas vezes da autoridade).

No Brasil, sem política sistêmica para conter o extermínio, os crimes são sempre atribuídos apenas ao policial que apertou o gatilho, nunca ao governador. Mas o que fez a institucionalidade para evitar? Por que se omitiu? Por acaso não sabia? Indenizou, ao menos as famílias em sinal de algum reconhecimento da gravidade do ocorrido? Visitou a família? Na verdade, esses massacres nunca tiraram o sono de ninguém. Exceto ao virarem escândalo.

Poderíamos tentar nos comparar, (para nos esconder), aos Estados Unidos que também são um país que mata e encarcera pretos e pobres. Mas a verdade é que, segundo a imprensa, só a polícia baiana, (a Bahia tem 15 milhões de habitantes) matou mais gente num ano do que toda a polícia americana no mesmo período, país, os Estados Unidos, que têm 340 milhões de habitantes.

Alguém tem que dar um basta!

Pode ser um Executivo estadual, afinal as polícias militares, estão ligadas aos governos estaduais e esse estado fictício poderia inspirar os demais.

Pode ser o Executivo Federal que deve fazer cumprir a lei e que pode como quer a EDUCAFRO na Bahia até mesmo intervir nos estados.

Pode ser o Legislativo endurecendo a punição para esse tipo de crime e pode ser o Judiciário que pode exigir dos demais Poderes providências e punir com multas milionárias os omissos e os assassinos que estão no Poder e o conjunto do Estado brasileiro. E podem ser todos de forma articulada.

Vejo que o governo Lula se posiciona com grandeza e com a noção da dimensão histórica que tem para o Brasil de hoje e para o futuro. Portanto quero crer que, nesse contexto, é esse governo Lula que está melhor posicionado para tomar uma iniciativa definitiva e histórica frente ao problema. O Ministro Flávio Dino, aliás, vem dando inúmeras demonstrações de firme apego aos valores democráticos e do cumprimento à risca da lei e da Justiça.

Seja quem for, a tarefa histórica de dar um basta à matança de pretos e pobres no Brasil não pode mais ser adiada, é desumano, já é fascismo para os “de baixo”, mas pode nos devolver ao fascismo para todos pela confusão política provocada pela revolta dos humilhados e aterrorizados que têm tudo para não confiar na democracia.

Atenção, a polícia militar não está “somente” matando pretos e pobres, está matando a humanidade, a democracia e o futuro do Brasil.

Como diria Hemingway: “Nunca pergunte por quem os sinos dobram. Eles dobram por você!

Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Ion de Andrade

Médico epidemiologista e professor universitário

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