A nova partilha do debate político, por Paulo Fernandes Silveira

Mesmo a parcela mais pobre da população, aquela que não tem acesso a esses meios de comunicação, não fica imune à grande circulação de informações do mundo contemporâneo.

A nova partilha do debate político

por Paulo Fernandes Silveira

“Nós não precisamos transformar espectadores em atores. Nós precisamos é reconhecer que cada espectador já é um ator em sua própria história” Jacques Rancière.

Em decorrência da internet e da telefonia móvel, estamos vivendo uma nova partilha do debate político. Mesmo a parcela mais pobre da população, aquela que não tem acesso a esses meios de comunicação, não fica imune à grande circulação de informações do mundo contemporâneo. Pessoas que não tiveram acesso à educação formal, aos livros, ao cinema, ao teatro e à mídia impressa, passaram a comentar e a tomar posição sobre diversos assuntos relacionados à economia, à cultura e à política.

Desde as manifestações políticas de 2013, as “smart mobs” organizadas a partir desses meios de comunicação, o país tem enfrentado uma onda conservadora com expressivo apoio popular. Alguns atores trouxeram outros elementos para o centro do debate político: o culto de temas religiosos e comportamentais, de temas relacionados à violência urbana e de temas articulados à cultura de massa. Não por acaso, políticos identificados com esses temas venceram as últimas eleições.

Nas redes sociais e na imprensa livre, intelectuais de esquerda formulam as mais diversas alternativas para tentar reverter essa onda conservadora. Em seus discursos, muitos ainda parecem estarrecidos com os resultados das últimas eleições, nas quais: trabalhadores pobres votaram em empresários neoliberais, negros votaram em racistas e mulheres votaram em defensores da misoginia. De um modo geral, esses intelectuais de esquerda pretendem provocar alguma conscientização nessas pessoas.

Numa entrevista, Marilena Chaui confessa ter birra com a ideia de “conscientização” incorporada por educadores de esquerda. Segundo a filósofa, a consciência não pode ser trazida por outra pessoa, pois ela só pode ser conquistada na ação concreta de resistência e de luta dos próprios sujeitos sociais e culturais.

Num ensaio sobre a educação e o teatro, Jacques Rancière faz uma crítica semelhante a ideia de “conscientização”. Segundo o filósofo, dramaturgos de esquerda, como Brecht e Artaud, partem do pressuposto de que suas peças devem arrancar os espectadores da sua passividade, levando-os à conscientização e à ação.

Contra essa perspectiva, afirma Rancière: “O espectador é ativo, assim como o aluno ou o cientista. Ele observa, ele seleciona, ele compara, ele interpreta. Ele conecta o que ele observa com muitas outras coisas que ele observou em outros palcos, em outros tipos de espaços. Ele faz o seu poema com o poema que é feito diante dele. Ele participa do espetáculo se for capaz de contar a sua própria história a respeito da história que está diante dele” (Rancière, 2010, p. 115).

Aquele que pretende promover conscientização, silencia e embrutece quem ele imagina não ser capaz de fazer isso por conta própria. De alguma maneira, os vencedores das últimas eleições aceitaram a presença dos novos atores da partilha do debate político. Quem sabe os intelectuais de esquerda aprendam a dialogar com esses novos atores, com todas as suas idiossincrasias, com seus temas e demandas específicas.

Paulo Fernandes Silveira (FE-USP e IEA-USP)

Redação

2 Comentários

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  1. Excelente, Paulo Fernandes Silveira! Defendo sempre a necessidade de educação para as pessoas menos preparadas (um eufemismo). Ao pensar assim me sinto, quando reflito, frustrado. Haveria muito que fazer antes de se obter algum resultado, lá, quando só retassem escombros de civilização, considerando o ritmo em que as coisas andam. Entre as coisas a fazer e com que se preocupar está: que educação oferecer por quem. Me proporcionaste, com teu ponto de vista (e inúmeras vezes se avanços importantes a partir da escolha do ponto de vista), um insight valiosíssimo. As pessoas (qualquer pessoa) podem fazer e fazem suas escolhas apoiadas em suas vivências. Apresentaste uma resposta excelente ao que a partir dos pressupostos que elencastes.

  2. Olá Paulo, muito obrigado pela leitura e comentários. Há uma coisa muito boa na entrada desses novos atores para o debate, quem sabe eles não sejam tão identificados com os políticos ultra-conservadores. Abraços.

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