A pandemia da Covid-19 e a volta do ativismo estatal, por Alfredo Saad Filho e Fernanda Feil

A pandemia pode significar o início do fim do neoliberalismo e o começo de um novo período, com melhores perspectivas econômicas

Imagem: iStock

A pandemia da Covid-19 e a volta do ativismo Estatal

Por Alfredo Saad Filho, King’s College London, Reino Unido, e Fernanda Feil, Universidade Federal Fluminense, Brasil

Os estímulos fiscais sem precedentes despendidos pelas economias desenvolvidas durante a pandemia, associado ao pacote de estímulos dos EUA que trouxe o Estado ao protagonismo abrem espaço para a hipótese de que a crise da Covid-19 pode significar o início do fim do neoliberalismo e o começo de um novo período histórico, com melhores perspectivas de prosperidade econômica. Apesar desses movimentos não significarem uma ruptura, parecem indicar mudanças no neoliberalismo e provavelmente o começo de uma nova fase no nível global.

O neoliberalismo passou a se tornar hegemônico entre o fim da década de 1970  e início de 1980. A forma mais significativa dessa fase, estágio ou modo de existência do capitalismo é a financeirização, ou seja, a subordinação da reprodução econômica e social a acumulação financeira, a hegemonia das finanças na economia, na sociedade e na formulação de políticas econômicas e sociais.

O neoliberalismo e a financeirização transformaram economias, sociedades e políticas públicas, criando condições favoráveis para sua reprodução com o fim da guerra fria, vencida pelo ocidente; com o declínio das tradicionais formas de resistência; com a desregulamentação e abertura financeira, comercial e de capital; e pela conquista hegemônica da ideologia.

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Na esfera econômica o mundo experimenta o paradoxo econômico do neoliberalismo: as condições favoráveis de acumulação estão associadas a inabilidade de promover a prosperidade para a maioria da população, na maior parte dos países. Desde a grande Crise Financeira Global que se iniciou no biênio 2007/2008, as taxas de investimento e de crescimento econômico vem registrando tendência de queda.

Por sua vez, na esfera política, especialmente a partir da década de 1990, o neoliberalismo está associado a plataforma de política democrática, ainda que essa democracia seja altamente circunscrita. Particularmente, essa característica inclui um aparato institucional designado para garantir a perpetuidade do neoliberalismo e isolar a política econômica de qualquer forma de inferência externa. Esse isolamento é traduzido em limite ao espaço de uma oposição legitima. 

Nesse sentido, dado que nenhuma política alternativa é possível, na prática, não há necessidade para debate na economia. E como não há vacum em política, esse espaço foi preenchido pela cultura, depois religião, seguido por nacionalismo e racismo.

Na sombra dessas derrotas e da hegemonia do neoliberalismo na ideologia e na mídia, os grupos considerados como “perdedores econômicos” sob o neoliberalismo foram levados a enquadrar suas decepções, ressentimentos, medos e esperanças sob o prisma individualista, e de conflitos éticos e do prisma do “privilégio indevido” dado pelo Estado aos “pobres indignos”, minorias, estrangeiros e países estrangeiros.

O paradoxo político do neoliberalismo é que a institucionalização da democracia neoliberal minou os fundamentos da própria democracia: as estruturas de representação ficaram sem resposta, as políticas públicas ficaram indiferentes à maioria, e surgiram divisões profundas entre os oprimidos e dentro da classe trabalhadora.

O terceiro paradoxo do neoliberalismo é o paradoxo do autoritarismo. As crises econômicas e políticas do neoliberalismo levaram à personalização da política e ao surgimento de líderes “espetaculares” autoritários de direita não controlados por instituições intermediárias “estabilizadoras”, como as estruturas partidárias, os sindicatos, os movimentos sociais e a lei. Isto se tornou evidente com a eleição de Narendra Modi na Índia, em 2014, o voto Brexit e a eleição de Donald Trump, em 2016, a eleição de Jair Bolsonaro, no Brasil, em 2018, para citar alguns.

Esses líderes chegaram ao poder no contexto de crises, particularmente a Grande Crise Global, mas também durante as crises políticas que paralisaram o Estado e as instituições de representação. A frustração em massa se intensifica e alimenta o descontentamento, no qual os líderes navegam, criando mais ressentimentos e novos conflitos. Eles não podem parar, ou sua popularidade diminui, porque não podem resolver os problemas reais. Isso significa que o neoliberalismo autoritário é intrinsecamente instável, e sua dinâmica oferecerá crescente proeminência e alcance à extrema direita, e, talvez não intencionalmente, alimentará novas formas de fascismo.

Uma pandemia atinge qualquer contexto de crise econômica e política. E o que a pandemia fez foi intensificar essas contradições. Nessas circunstâncias, a pandemia se tornou uma história de fracassos catastróficos no Ocidente. Cada país é diferente, mas em geral, nós tivemos o fracasso do neoliberalismo, das privatizações e do populismo autoritário.

Pode-se concluir que as crises da saúde pública e da economia refletiram escolhas políticas, o desmantelamento deliberado das capacidades das políticas públicas e do aparelho de Estado, as falhas de implementação espantosas, e uma subestimação chocante da ameaça. Nesse sentido, o neoliberalismo foi transformado durante uma pandemia, e podemos estar entrando em uma nova fase.

Politicamente, esta é uma fase de escalada da repressão, porque, hoje, o neoliberalismo se sustenta principalmente pela coerção e pela escalada da repressão contra a dissidência, inclusive por meio do monitoramento eletrônico.

Economicamente, esta é uma fase de estagnação econômica rasteira, desequilíbrio monetário, instabilidade financeira e pressões inflacionárias irregulares e imprevisíveis.

Este é também um neoliberalismo desesperado pela dinâmica que não consegue encontrar há 40 anos, de modo que os EUA podem finalmente enfrentar a China e abordar alguns aspectos da mudança climática. Estas são as razões do impulso para o chamado desenvolvimento sustentável verde, mas é muito pouco e muito tarde para enfrentar a China, ou para enfrentar o desastre ambiental.

A lição é que o neoliberalismo está encurralado, tanto a longo prazo, como a curto prazo. O neoliberalismo abandonou uma noção de uma relação próxima com a democracia. E, na sua forma anterior, ele não consegue atingir crescimento rápido, geração de renda e melhoria do bem-estar social. A perversidade do neoliberalismo se tornou transparente, e perdeu legitimidade.

Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF

Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas. O grupo objetiva estimular o diálogo e interação entre Economia e Política, tanto na formulação teórica quanto na análise da realidade do Brasil e de outros países. Twitter: @Geep_iesp

O Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB) desenvolve estudos e pesquisas sobre economia brasileira, em seus diversos aspectos (histórico, político, macroeconômico, setorial, regional e internacional), sob a perspectiva da heterodoxia. O NEB compreende como heterodoxas as abordagens que rejeitam a hipótese segundo a qual o livre mercado proporciona a melhor forma possível de organização da economia e da sociedade.

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